domingo, 28 de junho de 2020

Politicamente Correto: o Bolo da Noiva em tempos de pandemia




Terá sido politicamente correto os italianos chamarem 'Bolo da Noiva' ao monumento em memória de Vitor Emanuel II? E será politicamente correto chamar Bolo da Noiva em vez de Bolo dos Noivos? E será politicamente correto cortar o Bolo e servi-lo a cinquenta convidados em tempos de pandemia? 

Vou começar primeiro pelos aperitivos, e brindar-nos com um excerto do “Amor nos tempos de cólera” de Gabriel Garcia Márquez. E depois vamos ao politicamente correto.

          O doutor Juvenal Urbino tinha sido aos vinte e oito anos o mais cobiçado dos solteiros. Voltava de uma longa estada em Paris, onde fez estudos superiores de medicina e cirurgia, e logo que pisou terra firme deu mostras definitivas de que não perdera um minuto do seu tempo. Voltou muito mais atilado e senhor de si, e se nenhum dos seus companheiros de geração parecia tão severo e tão sábio quanto ele em sua ciência, também nenhum havia, por outro lado, que dançasse melhor a música da moda ou improvisasse melhor ao piano. Seduzidas por suas graças pessoais e pela certeza da sua fortuna familiar, as raparigas do seu meio faziam rifas secretas no jogo de ver quem o prenderia, e ele também fazia as suas apostas em relação às moças, mas conseguiu manter-se em estado de graça, intacto e tentador, até que sucumbiu sem resistência aos encantos plebeus de Fermina Daza. Gostava de dizer que aquele amor tinha sido fruto de um equívoco clínico. Ele mesmo custava a crer que tivesse acontecido, menos ainda naquele momento da sua vida, quando todas as suas reservas passionais se concentravam na sorte da sua cidade, da qual dissera com demasiada frequência e sem pensar duas vezes que não havia outra igual no mundo. 

          Em Paris, passeando de braço dado com uma noiva casual num outono tardio, quase não conseguia conceber felicidade mais pura que a daquelas tardes douradas, com cheiro rústico das castanhas nas brasas, os acordeões sentimentais, os namorados insaciáveis que não acabavam de se beijar nunca nas esplanadas dos cafés, mas mesmo assim dizia a si mesmo com a mão no coração que não se dispunha a trocar por tudo aquilo um único instante do seu Caribe em abril. Era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado.
          Mas quando voltou a ver do convés do navio o promontório branco do bairro colonial, os urubus imóveis nos telhados, a roupa dos pobres estendida a secar nas sacadas, compreendeu até que ponto tinha sido uma vítima fácil das burlas caritativas da saudade. O navio abriu passagem na baía através de uma colcha flutuante de animais afogados, e em sua maioria os passageiros se abrigaram nos camarotes fugindo à pestilência. O jovem médico desceu a ponte do navio vestido de alpaca perfeita, guarda-pó sobre o fato, com uma barba de Pasteur juvenil e o cabelo repartido em risca nítida e pálida, e com bastante domínio de si para dissimular o nó na garganta que não era de tristeza e sim de terror. No molhe quase deserto, guardado por soldados descalços e sem farda, esperavam-no as irmãs e a mãe com os amigos mais queridos. Achou todos macilentos e sem futuro, apesar dos ares mundanos, e falavam da crise e da guerra civil como algo remoto e alheio, mas todos tinham um tremor evasivo na voz e uma incerteza nas pupilas que desmentiam as palavras. Quem mais o comoveu foi a mãe, uma mulher ainda jovem que se havia imposto na vida com a sua elegância e o seu ímpeto social, e que agora murchava a fogo lento na aura de cânfora dos seus crepes de viúva. Ela sem dúvida se reconheceu no constrangimento do filho, tomando a dianteira de lhe perguntar em defesa própria por que vinha ele com essa pele transparente como parafina. — É a vida, mãe — disse ele. — Fica-se verde em Paris. Pouco depois, derretendo-se de calor junto a ela na carruagem fechada, não aguentou mais a inclemência da realidade que se metia aos borbotões pelo postigo. O mar parecia de cinza, os antigos palácios de marqueses estavam a ponto de sucumbir à proliferação dos mendigos, e era impossível encontrar a fragrância ardente dos jasmins por trás das emanações mortais dos esgotos abertos. Tudo lhe pareceu mais mesquinho do que quando partira, mais indigente e lúgubre, e havia tantas ratazanas famintas na lixeira das ruas que os cavalos do carro tropeçavam assustados. Do longo caminho do porto até sua casa, no coração do bairro dos Vice-Reis, não viu nada que lhe parecesse digno de suas saudades. Derrotado, virou a cabeça para que a mãe não o visse, e se pôs a chorar em silêncio. O antigo palácio do Marquês de Casalduero, residência histórica dos Urbino de Ia Calle, não era o que se mantinha mais altivo no meio do naufrágio. O doutor Juvenal Urbino fez essa descoberta com o coração em pedaços logo que entrou no saguão tenebroso e viu o repuxo poeirento do jardim interior, e os canteiros sem flores por onde andavam lagartos, e reparou que faltavam muitas lajes de mármore, e que outras estavam partidas, na vasta escada de balaústres de cobre que levava aos aposentos principais. Seu pai, um médico mais abnegado do que eminente, tinha morrido na epidemia de cólera asiática que assolou a população seis anos antes, e com ele morrera o espírito da casa. Dona Blanca, a mãe, sufocada por um luto previsto para ser eterno, substituíra por novenas vespertinas os célebres saraus líricos e os concertos de câmara do marido morto. As duas irmãs, contra suas graças naturais e sua vocação festiva, eram carne de convento. O doutor Juvenal Urbino não dormiu nem um instante da noite da chegada, assustado pela escuridão e o silêncio, e rezou três terços ao Espírito Santo e quantas orações ainda sabia para conjurar calamidades e naufrágios.

O termo 'politicamente correto' é usado para descrever expressões, políticas ou acções que evitam ofender, excluir e ou marginalizar grupos de pessoas que são vistos como desfavorecidos ou discriminados, especialmente grupos definidos por género, orientação sexual ou raça. Actualmente, quando o termo aparece no discurso político e mediático, geralmente é usado com sentido crítico pela direita, uma vez que na sua história está conotada com a defesa das minorias pela esquerda política. Nos EUA, o termo tem sido amplamente usado em livros e revistas, mas na Grã-Bretanha, o uso se limita principalmente à imprensa popular. Segundo o autor John Wilson, as forças de esquerda do "politicamente correto" autoproclamaram-se censores de uma cultura dominante que se tornou cautelosa, higienizada e com medo da sua própria sombra. Grupos que, sendo preciso, se opõem a certas visões científicas para não ferir suscetibilidades. Eles não dizem censura, dizem "correção política" para descrever o que consideram inapropriado numa narrativa social de esquerda. Esse termo tinha um uso residual antes da década de 1990. Já havia sido amplamente usado no debate sobre o livro de 1987 de Allan Bloom, The Closing of the American Mind. E ganhou mais uso em resposta ao livro de Roger Kimball, Tenured Radicals (1990), e ao livro de 1991 do autor conservador Dinesh D'Souza's, Illiberal Education, no qual ele condenou o que viu como esforços liberais no sentido da autovitimização, acçõesa afirmativas e mudanças no conteúdo dos currículos escolares e universitários através da linguagem.


À medida que os movimentos de esquerda ganhavam poder político, a frase passou a ser associada a acusações de aplicação dogmática da doutrina em debates entre comunistas e socialistas na América. De acordo com uma versão, o politicamente correto começou como uma piada entre estudantes radicais, quando todo o grupo revolucionário tinha uma linha de conduta sobre tudo, com alguns exemplos gritantes de comportamento sexista ou racista de seus colegas, imitando o tom de voz dos Guardas Vermelhos ou do Comissário da Revolução Cultural: "Não é muito 'politicamente correto', camarada!" Um artigo de Richard Bernstein de outubro de 1990, no New York Times, é creditado como o difusor do termo. E é a partir de 1991 que os conservadores americanos o começam a usar como pejorativo, significando "polícia do pensamento" - u
ma terminologia crítica para uma série de políticas na academia em torno da vitimização, apoiando o multiculturalismo por meio de acções afirmativas, sanções sobre o discurso de ódio contra minorias, e revisão de currículos. Os líderes de opinião liberais argumentaram que os conservadores e reacionários, que usaram o termo, o fizeram para desviar a discussão política das questões substantivas da resolução da discriminação e desigualdade social. Alguns comentadores conservadores ocidentais argumentam que "o politicamente correto" e o multiculturalismo fazem parte de uma conspiração com o objetivo final de minar os valores judaico-cristãos. Sustentam que o politicamente correto tem origem na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.

Hoje, a politically correctness designa a 'língua de pau' descrita por George Orwell no livro "984". Induz um discurso político hipernormativo fundado na interdição moral, mediática e jurídica de todos os termos que possam contradizer, de perto ou de longe, o núcleo duro semântico de bem-pensante. Esta "polícia" da linguagem contribuiu para engendrar, por um efeito mecânico, uma verdeira "polícia do pensamento" que não necessita de se apoiar na força visto estar implantada, como um "vírus semântico", no nosso sistema psíquico, o qual irá instaurar um dispositivo de autorrepressão e autocensura.

A teoria da dissonância cognitiva explica por que motivo é tão difícil convencer através de factos incontestáveis alguém que está doutrinado ou que se rege por uma utopia. Daí a persistência suicidária. Entre um dogma enraizado no nosso psiquismo e a realaidade, quem vence é o dogma. Nós, somos os próprios agentes da nossa desinformação. O efeito da dissonância cognitiva, um fenómeno muito estudado em psicologia, e ultimamente nas neurociências cognitivas, o primeiro cúmplice do desinformador é o próprio cérebro, sempre que essa desinformação estiver em consonância com um determinado programa mental que se enraizou entretanto dentro de nós. Há um adágio popular que ilustra muito bem esta dissociação cognitiva: "O pior cego é aquele que não quer ver; ou "Não acreditamos no que vemos, mas vemos aquilo em que acreditamos"; ou "fazer como a avestruz, meter a cabeça na areia".

Conta-se a história, que é possível que seja apócrifa, de um tal Dr. Vicent de Paul D`Argent, médico e professor na Universidade de Nimes, que em 1647 fez a um aldeão, chamado Angel, um transplante de córnea. Provavelmente ele seria um cego congénito. E o que foi um sucesso para a medicina da época, não o foi para o malogrado Angel, porque assim que passou a ver, tinha horror com o que via. Disse que o mundo que ele imaginava era muito melhor. Pediu ao cirurgião que arrancasse os seus olhos. O caso foi parar ao Vaticano e acabou no tribunal de Paris. A verdade é que Angel ganhou a causa. Assim entrou para a história como o cego que não quis ver.

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