segunda-feira, 8 de junho de 2020

A Doença da Reclusão no Alto Xingu



A Doença da Reclusão no Alto Xingu, a síndrome que insere no ritual da reclusão pubertária entre indígenas da região do Alto Xingu, em antropologia é a sua dimensão simbólica que é tratada. Esta abordagem contrasta com a abordagem clínico-epidemiológica clássica da medicina dita “ocidental”, que em termos clínicos é classificada como uma neuropatia periférica de origem possivelmente tóxica, embora o tratamento epidemiológico dos dados evidencie relações com acontecimentos de ordem cultural. Esta doença é um exemplo das dificuldades com que a medicina moderna se depara, através dos seus métodos de diagnóstico, para enquadrar a síndrome sob um ponto de vista bio-psíquico-social no seu próprio contexto.

A ponderação dos determinantes culturais (no sentido dos sistemas simbólicos), no processo saúde-doença, produz níveis de perceção distintas da perceção reducionista e fragmentária da medicina moderna. Os fatores culturais revestem-se de importância quando há factores comportamentais que influenciam o curso das doenças. Por outro lado, a interpretação fenomenológica das doenças é condicionada pelas representações ontológicas, e categorias cognitivas, dos agentes de saúde em presença no terreno. Neste caso, a produção científica do conhecimento que dá corpo às categorias da medicina ocidental, também não está imune à cosmogonia que enquadra os sistemas simbólicos na cultura da sociedade ocidental pós-moderna, que nos últimos anos se tornou também permeável a ideologias diversas.

Por volta de 1979 passou a ser notada pelos profissionais de saúde do Parque Nacional Indígena do Xingu, situado no norte do estado de Mato Grosso, a ocorrência de casos de uma síndrome aguda cujos sinais e sintomas incluíam parestesias e anestesia nas extremidades dos membros inferiores e superiores, paralisia, vómitos com sangue, cefaleias, sendo que alguns casos culminaram na morte. Os pacientes que sobreviviam apresentavam um quadro de paralisia que aos poucos ia regredindo. Um estudo epidemiológico posterior, em 1986, revelou que a síndrome foi responsável por cerca de 90% dos óbitos ocorridos na faixa etária de adolescentes do sexo masculino, entre os 11 e 19 anos. Entre os Kuikuro, dos rapazes que estavam em idade de se submeterem à reclusão pubertária, no ano de 1985, 20% relataram ter sofrido os sintomas da síndrome.

Atendendo à limitação dos recursos de saúde, e dada a coerção que os indígenas exerciam sobre os profissionais de saúde ao nível local, os pacientes passaram a ser removidos e transportados por via aérea para hospitais de Brasília e São Paulo. Acrescia ainda o interesse dos investigadores médicos para estabelecer a causa de um tão estranho quadro clínico. Os óbitos, que ocorriam acima do que é expectável naquela faixa etária, exigiam uma maior atenção. Um profissional envolvido no atendimento de um caso foi inclusive vítima de ameaças por parte de parentes de um doente que veio a morrer durante o tratamento. Por outro lado, constava a ocorrência de morte em xamãs, com o mesmo quadro clínico. 


Estava-se perante um quadro clínico que envolvia uma sobreposição de categorias epistemológicas distintas: a categoria tradicional indígena; a categoria biomédica; e a categoria antropológica. Em primeiro lugar a síndrome acomete maioritariamente adolescentes do sexo masculino, depois de se terem submetido, pelo menos uma vez, à reclusão pubertária. Esta reclusão obriga a um conjunto de restrições alimentares, sexuais e comportamentais. Segundo, o quadro clínico à luz da medicina ocidental, classificado predominantemente como uma neuropatia que afecta a sensibilidade e a mobilidade, compatível com toxidade devido a consumo de plantas ditas medicinais por parte dos indígenas.

Com o acúmulo de casos da síndrome, uma pesquisa clínico-epidemiológica foi então desenvolvida com o objetivo de caracterizar a categoria nosológica, acompanhar o comportamento epidemiológico da doença e estabelecer associações causais. Como resultado, após um acompanhamento de quase dez anos, foi estabelecida a categoria nosológica: “neuropatia periférica de origem exógena ou tóxica”. Por fim, a síndrome passou a ser referida pelos profissionais de saúde como “a doença da reclusão”, categoria híbrida que conjuga a perceção da doença na cultura tradicional, com a classificação internacional de doenças da organização Mundial da Saúde. Na conceção indígena, esta morbilidade está associada à força sobrenatural dos elementos que eles evocam. Em todo o caso, a categoria – “doença de reclusão” – fundamentada em argumentos clínicos e epidemiológicos, ainda não está definitivamente estabelecida.

Das 12 espécies de plantas utilizadas pelos adolescentes do sexo masculino, poucas foram identificadas botanicamente. Portanto, a associação etiológica tóxica ainda exige a continuidade dos estudos de cunho botânico, farmacológico, antropológico e epidemiológico. Um estudo de natureza interdisciplinar de tal ordem esbarra em constrangimentos mais de ordem financeira, de política científica e de prioridades institucionais, do que em termos de pessoal especializado, equipamento ou barreiras culturais.

Os adolescentes são submetidos ao tradicional rito da reclusão pubertária, sob estrita reclusão no interior de suas casas, com as restrições referidas e ingerindo misturas feitas com ervas tidas como "fortes" para crescer e tornar-se musculosos. A reclusão masculina por períodos de 3 a 7 meses, são interrompidos por intervalos de tempo variados, desde o início da puberdade, e até quase aos 20 anos, dependendo das expectativas e da origem familiar.

A reclusão pubertária feminina diferencia-se da masculina, pois as raparigas são retidas ininterruptamente num "quarto" dentro da sua residência a partir da primeira menstruação durante cerca de um ano. As adolescentes submetem-se às mesmas restrições alimentares e de atividade, ingerindo ervas consideradas "mais fracas", e restrições sexuais que alguns depoimentos apontam como menos estritas que as dos rapazes. Não há casos relatados de doença da reclusão no lado feminino, à exceção de um único caso, na aldeia Kuikuro, ainda mal-esclarecido.

Principalmente, durante a reclusão pubertária, os adolescentes encontram-se sob a "proteção" e o domínio de uma classe de seres sobrenaturais, os espíritos "donos de remédios" que podem, segundo acreditam, punir o adolescente que desobedecer às restrições, fazendo com que fiquem “aleijados”. Esta é, no seio da medicina étnica do Alto Xingu, a referência à doença de reclusão no contexto da cosmologia do Alto Xingu. Os médicos europeus mais atentos na década de 1970 a estes fenómenos admitiam a hipótese do que época era designado por “manifestação psicossomática”, pela forte carga emocional que estas práticas imprimem na mente dos indígenas. Entretanto, um ou outro caso vinham a lume descritos como uma polineuropatia e falência múltipla, com um quadro semelhante à síndrome de Guillain-Barré. Claramente imputado à provável ingestão de ervas durante a reclusão pubertária. Para a epidemiologia, contudo, ainda não há dados suficientes para comprovar aquela hipótese.

Segundo Bretas Netto et al. (1988), foi constatado no exame de sangue de um paciente a presença de organofosforados e da droga psicodisléptica "banisterina", substância com radical "indol". A imputação de uma etiologia tóxica a uma espécie vegetal específica pode ser considerada uma inferência apressada, pois tal espécie não é utilizada nos rituais daquela área cultural, ao menos no que concerne às pesquisas etnobotânicas realizadas até agora. Se a presença de elementos alucinogénicos fosse confirmada na área, isto seria um dado etnográfico original e surpreendente. Quanto à presença de organofosforados na amostra sanguínea do paciente, isso deveria ser estudado mais a fundo. Embora o inseticida Audrin realmente tenha sido usado na área durante um certo período, "para matar formigas", a presença de organofosforados no sangue do rapaz não poderia ser significativamente associada aos demais casos de neuropatia devido aos seguintes fatores:
a) tal inseticida é utilizado nas roças por adultos, sendo o adolescente recluso impedido de realizar trabalho agrícola; b) a manipulação de alimentos para o recluso é feita exclusivamente por uma mulher entre as mais velhas de sua família, consistindo basicamente de beiju e de uma bebida feita de farinha de mandioca brava ralada, seca e cozida. Ela, contudo, manipula alimentos para toda a família; c) se os casos de neuropatia estivessem associados ao uso do inseticida e à contaminação dos alimentos, por que somente os reclusos, que estão cercados por restrições de várias ordens, adoecem? Este mesmo argumento contrapõe-se à hipótese de contaminação ambiental por organofosforados.
Das etiologias tóxicas, a alimentar foi descartada por critérios epidemiológicos: o grupo de adolescentes do sexo feminino funciona como um grupo controle natural e as restrições alimentares são as mesmas, tanto para os homens quanto para as mulheres, sendo estas últimas submetidas durante períodos mais longos. O sumo de mandioca brava longamente cozido, que faz parte da dieta regular daquela população, não é ingerido pelos reclusos por inserir-se na categoria de alimentos doces, proibidos. Finalmente, a categoria “neuropatia periférica” admite outras etiologias que não a exógena tóxica. Trata-se, portanto, de uma patologia que, ao menos nos seus aspectos etiológicos, não está conclusivamente descrita.

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