sexta-feira, 19 de junho de 2020

Origem da vida


Ainda não há certeza quanto à origem do que chamamos vida. Não há certeza se ela começou: desde o princípio, exclusivamente aqui neste planeta a que chamamos Terra, e que James Lovelock a rebatizou de Gaia; ou se foi trazida para cá por um meteorito, ou mais do que um, entre os muitos que desde a sua formação caíram na Terra. Não é que isso faça alguma diferença para desvendar o seu mistério, mas pelo menos ainda o torna mais grandioso. Portanto, em teoria, não se pode descartar a hipótese de ela ter vindo de outro lado há mais ou menos quatro mil milhões de anos. Quatro mil milhões de voltas completas que a Terra deu, entretanto, em torno do Sol. Seja como for, durante esse tempo, que à escala do tempo de vida de uma criatura humana parece uma eternidade, gerou-se uma diversidade de formas de vida imensa, um número incalculável delas já extintas.

Os múltiplos estudos científicos - dos processos que teriam permitido aos elementos químicos que compõem os organismos atingirem o grau de organização estrutural e funcional que caracteriza a vida - têm envolvido não apenas biólogos, mas cientistas de outras áreas como a física, a química e a astronomia. Os modelos propostos para a origem da vida são tentativas de recriar a história desta evolução e é importante destacar que não existe, na maioria das etapas deste processo, nenhum consenso entre os cientistas. 

A primeira questão que se coloca prende-se com o requisito fundamental, que diz respeito à disponibilidade dos elementos químicos essenciais à vida: carbono, hidrogénio, oxigénio, azoto, fósforo e enxofre. Ora, estes elementos existem em abundância por todas as galáxias. Por outro lado, a natureza das reações bioquímicas conhecidas exige que as temperaturas reinantes permitam a existência de água em estado líquido. O facto de que nos organismos actuais todas as funcionalidades presumem a existência de compartimentos individualizados – as células – demonstra que a celularidade foi certamente um facto decisivo na história primitiva dos sistemas vivos. As primeiras células emergiram da sopa primordial. Dos fósseis mais antigos que foram encontrados até 2017, que é a evidência directa da vida na Terra, deduz-se que a vida na Terra apareceu entre os 3,8 a 4,3 mil milhões de anos atrás. Para sobreviver num ambiente primordial seria necessário que estes organismos primitivos fossem capazes de sintetizar os seus próprios nutrientes. E outro requisito necessário para a continuidade da vida teria de ser a possibilidade de transmissão de informação.

A descoberta, em 1979 - na Fossa das Galápagos (Corliss, Baross, Hoffman) - de um rico ecossistema alimentado por compostos provenientes da atividade hidrotermal e portanto, independente dos processos fotossintéticos, serviu de base à hipótese de uma origem autotrófica para a vida. Há, contudo, abordagens mais abstratas acerca da origem da vida. Ao invés de partirem da natureza dos constituintes químicos dos sistemas vivos, guiam-se, sobretudo, pelas suas propriedades funcionais. Um dos modelos mais conhecidos nesta concepção é o dos hiperciclos, propostos por Manfred Eigen, como protótipos dos ciclos metabólicos primitivos. E Kauffmann, com base em modelos puramente matemáticos, defende que coleções suficientemente complexas de compostos químicos podem vir a "cristalizar" ciclos metabólicos. A ideia de que o funcionamento dos processos metabólicos atuais pode fornecer pistas importantes para a compreensão da bioquímica dos primeiros seres vivos é a base de uma visão metabólica da origem da vida, onde se destacam os estudos de Harold Morowitz e Christian de Duve

Segundo a hipótese de evolução prebiótica delineada por Morowitz, as primeiras protocélulas formaram-se há cerca de 3,9 mil milhões de anos, quando o planeta arrefeceu com oceanos baixos, quando as primeiras rochas já se tinham formado e o carbono já se combinara com os outros elementos fundamentais da vida para constituir uma grande variedade de compostos químicos. Dentre esses compostos havia substâncias oleosas, as parafinas, que são longas cadeias de hidrocarbonetos. A mistura dessas parafinas com a água, e com diversos minerais nela dissolvidos, deu origem aos lípidos; estes, por sua vez, condensaram-se numa diversidade de gotículas e constituíram também películas finas de uma ou duas camadas. Sob a influência da acção das ondas do mar, as películas fecharam-se espontaneamente em vesículas, e assim começou a transição para a vida. 

Depois os químicos descobriram que certas moléculas pequenas, que se ligam a membranas, apresentavam propriedades catalíticas. É provável que tenha sido a entrada do azoto na química das protocélulas a levar à formação desses primeiros catalisadores. Com o aparecimento dos catalisadores, a complexidade molecular aumentou rapidamente, porque os catalisadores criam redes químicas aumentando a velocidade das reacções químicas sem sofrer transformação nesse processo, tornando possível a ocorrência de certas reacções que, sem eles, não aconteceriam. As reacções de catálise são processos importantíssimos e essenciais na química da vida. 

A Acetil-S-Coenzima no metabolismo energético teria sido precedida por compostos derivados da esterificação de ácidos carboxílicos com tióis – os tioésteres. Num estudo de 2015, Sutherland e colaboradores decidiram trabalhar esses produtos químicos retroactivamente para ver se eles poderiam encontrar uma rota para o RNA a partir de matérias-primas ainda mais simples. O cianeto de hidrogénio é abundante em cometas, que choveram de forma constante durante as primeiras centenas de milhões de anos de história da Terra. Os impactos também teriam produzido energia suficiente para sintetizar cianeto de hidrogénio a partir do hidrogénio, carbono e azoto. Ainda existem muitos saltos a serem explicados.

Abiogénese significa a geração da vida a partir da matéria não viva. Actualmente o termo é usado em referência à origem química da vida a partir de reacções em compostos orgânicos originados abioticamente. O consenso científico actual é que a abiogénese ocorreu aproximadamente entre 4,4 mil milhões de anos, quando o vapor de água condensou pela primeira vez na Terra, e 2,7 mil milhões de anos atrás, quando havia uma proporção de isótopos estáveis de carbono, ferro e enxofre. Mas há outras teorias, que admitem a possibilidade ter origem externa.  
A panspermia é a hipótese de que os seres vivos não se originaram na Terra, mas sim noutro ponto do universo, tendo sido transportados pelo espaço cósmico, possivelmente sob forma de esporos. Seus defensores argumentam que o lapso de tempo necessário à evolução da vida seria maior que os 4,5 mil milhões de anos desde a formação da Terra, mas não oferecem nenhuma ideia de onde ou como a vida teria realmente surgido. Observe-se, porém, que a possibilidade de compostos orgânicos simples formados em cometas ou em outros pontos do espaço é aceite por muitos defensores do modelo clássico para a origem da vida. Em 2016, cientistas anunciaram que a nave espacial Rosetta fez várias detecções do aminoácido glicina na nuvem de gás e poeira circundando o cometa 67P. 

A proposição para uma etapa da evolução da vida na Terra chamada RNA world foi feita por Walter Gilbert em 1986. Walter Gilbert, propôs uma etapa na origem da vida que envolvia a existência de moléculas auto-replicadoras constituídas por ARN. O ARN é actualmente um mediador entre o ADN e as proteínas na maioria dos seres vivos, mas Gilbert propôs que nos primeiros estágios da vida, o ARN era o material genético principal. Além de propriedades auto-replicadoras, o ARN tem também actividade catalisadora de reacções químicas. Apenas em 2009 cientistas conseguiram criar ribonucleótidos em laboratório a partir de elementos mais básicos, sob condições provavelmente existentes na Terra jovem. A hipótese do mundo do ARN assume que o ácido ribonucleico foi a primeira forma de vida na Terra. Tendo desenvolvido a seguir uma membrana celular em seu redor, para se converter na primeira célula procariótica. Esta hipótese propõe que o mundo actual com vida baseada principalmente no ADN e proteínas foi precedido por um mundo em que a vida era baseada em ARN.  Apenas posteriormente é que o ADN e as proteínas tomaram conta da vida.

Pela descoberta das ribozimas, moléculas de ARN que possuem actividade catalítica e participam de importantes reacções nas células. Vírus ARN, como é exemplo o SARS-CoV-2, fitas simples de um número pequeno de nucleotídeos, só são capazes de se replicarem à custa da maquinaria de transcrição da célula hospedeira. Há cientistas que lhes chamam fósseis moleculares. Sob o ponto de vista químico e estrutural, no entanto, é difícil imaginar como o ARN se tenha formado de uma maneira não-enzimática. Dessa forma, aponta-se que antes do ARN, as primeiras moléculas que possuíam actividade enzimática e a capacidade de guardar informação, eram polímeros que não deixaram registos fósseis ou remanescentes nas células. Acerca do ADN, também ainda não se sabe tudo. Ele deve ter-se formado já depois de terem surgido as proteínas, uma vez que grande número de proteínas são necessárias para a sua síntese. A formação da desoxirribose é um processo bastante complexo. A desoxirribose, comparada com a ribose, forma cadeias mais estáveis, o que faz com que o ADN possa se alongar sem perigo de se romper. É um depósito mais seguro para a informação genética.

Dando agora um salto qualitativo no processo evolutivo das espécies vivas, e acompanhando os últimos aperfeiçoamentos que têm sido feitos na conceção darwinista da evolução
as mutações constituem apenas uma das explicações do processo-organizativo da vida. A troca de genes e a simbiogénese são também processos de criação de novas formas de vida, um caso de fusão de espécies.  No decorrer dos primeiros dois mil milhões de anos de evolução biológica, as bactérias e outros microrganismos foram as únicas formas de vida na Terra. Tiveram tempo para inventar todas as biotecnologias essenciais à vida: a fermentação, a fotossíntese, a fixação do azoto, a respiração e diversas técnicas de movimentação rápida. A rede planetária de bactérias foi a principal fonte de criatividade evolutiva. A hipótese de um terceiro caminho na evolução deve-se sobretudo a Lynn Margulis - a evolução pela simbiose, com implicações profundas para todos os ramos da biologia: organismos diferentes a viver em íntima associação uns com os outros e, até uns dentro de outros. Margulis, porém, foi um passo além e propôs a hipótese de que simbioses prolongadas, envolvendo bactérias e outros microrganismos, que viviam dentro de células maiores, teriam criado formas multicelulares de vida. Essa hipótese revolucionária foi proposta por Margulis em meados da década de 1960 e transformou-se já numa teoria plenamente desenvolvida, conhecida agora como "simbiogénese", que postula a criação de novas formas de vida através de arranjos simbióticos permanentes como o principal caminho pelo qual evoluíram todos os organismos superiores. Quando certas bactérias pequenas entraram em simbiose com células maiores, o resultado foi um passo evolutivo gigantesco com a ascensão do reino animal e vegetal. 

O mapeamento do genoma humano veio mostrar que alguns dos genes humanos são os mesmos das bactérias. Toas as inovações conceptuais e metodológicas que se operaram depois de Darwin, no contexto da teoria da evolução, trouxeram uma visão diferente, não no tipo de "acaso e necessidade", mas uma visão sistémica em que o princípio fundamental da vida é a auto-organização que também inclui no conceito o processo cognitivo. Viver implica ter que conhecer o mundo, ou o ambiente externo, para viver. As interacções de um organismo vivo - vegetal, animal ou humano - com o seu ambiente são interacções cognitivas. Assim, a cognição é um atributo inextricável da vida . A mente - ou melhor, a actividade mental - é algo imanente em todos os níveis da vida. Este conceito é daqueles conceitos a que se aplica aquela frase muito batida: “de início estranha-se, mas depois entranha-se”, porque é uma expansão radical do conceito de cognição e, implicitamente, do conceito de mente. De acordo com essa nova conceção, a cognição envolve todo o processo da vida - inclusive a perceção, as emoções e o comportamento, e nem sequer depende necessariamente da existência de um cérebro e de um sistema nervoso. 

Convém recordar que a cognição não é a representação pura de um mundo que existe independente e por si, mas antes a contínua produção de um mundo através do processo de relação que é a vida. As interacções de um sistema vivo com o seu ambiente são interacções cognitivas, e o próprio processo do viver é um processo de cognição. É claro que não é fácil, não se está aqui a dizer que é fácil compreender de que maneira surgem as experiências subjetivas a partir de uma rede que, no mínimo, para simplificar, agrega duas redes: a rede nervosa e a rede imunitária. Porque para o corpo se defender da invasão de uma bactéria ou de um vírus, o processo do sistema imunitário não é mais do que um processo cognitivo. Assim como para nos defendermos da agressão de um outro homem, ou grupo de homens, o sistema nervoso com o cérebro a coordenar, não faz outra coisa que não seja conhecer a verdadeira perigosidade do inimigo. Todo organismo vivo se renova constantemente, na medida em que as suas células se dividem e constroem estruturas, na medida em que os seus tecidos e órgãos substituem as suas células num ciclo contínuo. Apesar dessa mudança permanente, o organismo conserva a sua identidade global, o seu padrão de organização. Mas há um outro tipo de mudança estrutural num sistema vivo, que é aquele que cria novas estruturas - novas conexões numa rede autopoiética. Essas mudanças, que não são cíclicas, mas seguem uma linha de desenvolvimento, também ocorrem continuamente, quer por via das influências ambientais, quer como resultado da dinâmica interna do sistema. 

A premissa básica do que se vem explanando é: tudo está interligado, o sistema nervoso influencia o sistema imunitário, e o sistema imunitário influencia o sistema nervoso, os principais sistemas da nossa faculdade de conhecimento e de consciência. E apesar de esta premissa ser intuitiva e fundamental, a ciência moderna só muito tarde, e ainda em dificuldade, incorporou esta realidade, porque o seu radicalismo quanto à independência epistemológica da superespecialização tem dificultado a comunicação interdisciplinar. Ora, tal compreensão só se fará completamente fazendo investigação dos dois domínios de forma interdependente. O estudo da consciência subjetiva é feito por um grupo muito heterogéneo de especialidades, que divergem em muitos aspetos há muito tratados pelos filósofos, que pese a verdade, também foram apanhados nas malhas do paradigma científico moderno. A heterogeneidade tem a ver com os aspetos epistemológicos, metodológicos e ontológicos da investigação científica. Ora, o que aconteceu também com a modernidade foi que os filósofos também se especializaram. E por isso temos filósofos que se dedicam apenas à epistemologia e filosofia da ciência. E dentro dos filósofos da ciência, há alguns que apenas se dedicam à filosofia da biologia. E por aí fora. A ciência moderna levou tempo a aceitar que a Terra, na sua totalidade, que inclui matéria inerte, matéria viva e consciente, ou seja - matéria, energia, vida e mente, é um sistema que se regula a si próprio, comportando-se como uma rede auto-organizada e congregada. E descobriu demasiado tarde que essa auto-regulação está a falhar - em que o sistema terrestre se está a aproximar rapidamente do estado crítico que coloca em perigo todas as formas de vida - em parte devido ao tipo de vida humana, quer por excesso tecnológico, quer por excesso de população que de certo modo só foi possível graças à tecnologia.

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