quinta-feira, 18 de junho de 2020

O canhão do meio-dia




Em 1847, o Papa Pio IX decidiu que todos os dias, um canhão dispararia ao meio-dia, e depois do disparo do canhão as igrejas começariam a tocar os sinos. Pelo menos era possível saber quando era meio-dia. No início o canhão disparava do terraço do Castelo Sant’Angelo. A partir de 1904 ele foi transferido para o Gianicolo, uma das colinas com dois mirantes de onde se desfruta a mais bela panorâmica de Roma. Após a tradição ter sido suspensa durante as guerras mundiais, desde 1959 o canhão dispara pontual e diariamente ao meio-dia. O disparo é executado pelos militares do exército italiano, bem na direção da estátua equestre de Giuseppe Garibaldi. O canhão fica no mirante anterior, com a vista para a cidade. Do outro mirante vê-se a cúpula da basílica de São Pedro. São uns 15-20 minutos de caminhada do Trastevere até lá. 
Segundo uma velha anedota - Um adolescente perguntava-se como o canhão sabia que devia disparar exatamente ao meio-dia. Então, um certo dia, subiu a encosta, e indagou junto do artilheiro como fazia para saber a hora certa do meio-dia. O soldado, sorrindo para o rapaz, respondeu: "É o comandante que me dá o sinal para disparar o canhão. Onde ele tem o relógio não sei". O jovem então abordou o oficial de comando, que com orgulho lhe mostrou o preciso e finamente construído medidor de tempo. Mas o rapaz, não estando ainda satisfeito com o esclarecimento do comandante, perguntou-lhe por onde acertava o seu engenho. "Ah! Isso é fácil. Eu uma vez por semana vou lá abaixo à cidade e aproveito passar pela loja do relojoeiro, e sincronizo o meu pelo relógio que ele tem exposto na vitrine. O venerável relógio por onde várias pessoas na cidade também usavam para acertar a hora". No dia seguinte, o jovem visitou o relojoeiro para lhe perguntar como ele acertava o grande relógio da vitrine. “Pelo único meio confiável que qualquer pessoa daqui já tenha tido”, replicou o homem. “Acerto pelo canhão do meio-dia!”
Esta deliciosa anedota a propósito do canhão do meio-dia capta a nossa maneira habitual de confiar no que está convencionado, nos usos e costumes, e não temos de nos dar ao trabalho, como aquele jovem, a fazer perguntas por tudo e por nada. Como é que o merceeiro sabe que a sua balança pesa o Kg certo? Ou como sabe o carpinteiro se o metro que usa não engana? Uma medida é, simplesmente, um padrão ou uma marca pela qual nós calibramos ou avaliamos alguma coisa. Naquele tempo as pessoas tinham o tiro de canhão para marcar a divisão entre o período da manhã e o da tarde. Uma vez que a medida existe, é como se sempre tivesse existido, quem somos nós para questionar isso? As medidas tornaram-se parte do perfil das coisas, parecendo pertencer ao mundo em si. 

Mas cada padrão ou marca veio ao mundo como resultado de uma decisão humana. A natureza não fornece réguas, balanças, nem – embora dias e anos recorram com regularidade – pontos de origem para marcar o tempo. Somos nós que os fabricamos, com o auxílio de objetos como os relógios de sol e os mecânicos. Amiúde conferimos as nossas medidas comparando-as com outros padrões. Ou assumimos que tais padrões devam existir em algum lugar. Mas a escolha pode ser arbitrária. O resultado pode ser ao mesmo tempo arbitrário e circular: nós definimos uma medida por algum elemento do mundo, e esse elemento pela medida. O meio-dia é o momento em que o canhão dispara. E o canhão dispara porque é meio-dia. 

A arbitrariedade e a circularidade simplesmente refletem o modo típico como as pessoas escolhem medidas: improvisamos com algo que esteja ao nosso redor. Culturas por todo o globo vêm criando medidas desde o alvorecer da história. Durante o nascimento da ciência moderna, nos anos 1600 e 1700, os cientistas na França tentaram desenvolver um sistema universal de medição que pudesse ser partilhado por todos os países e que estivesse ligado a características imutáveis da natureza. Tiveram êxito no primeiro objetivo, mas não no segundo. Finalmente, meio século atrás, uma organização internacional de cientistas conseguiu vincular uma unidade de medida, o comprimento, a um fenómeno natural: a luz. Outras medidas, como a do tempo, em breve também passaram a ser relacionadas a fenómenos naturais. A última medida fundamental ou “base” a não estar ligada a um fenómeno natural era a massa, cuja unidade era definida por um bloco de metal guardado num cofre nos arredores de Paris. Hoje, a nova geração de cientistas, vincula todas as unidades básicas de medida aos termos das constantes físicas, de modo a produzir um sistema “absoluto” de medição. Pela primeira vez na história, se todos os padrões básicos de algum modo se perdessem, poderiam ser recuperados e o mundo teria exatamente os mesmos padrões de medidas que antes.

Um dos principais métodos antigos para medir a hora era a meridiana ou o relógio solar. Na época do imperador Augusto existia o Horologium Augusti - um enorme obelisco egípcio do século VI a.C., do faraó Psamético II, trazido no ano 10 a.C. de Heliópolis para Roma. O obelisco era um meridiano que fazia a vez do “ponteiro”. Depois de ruir entre os séculos IX e XI, foi reerguido onde se encontra hoje  na Praça Montecitorio, em 1792, por ordem do papa pio VI. Ela é conhecida por abrigar o Palazzo Montecitorio, sede da câmara dos deputados de Itália, um imponente edifício encomendado pelo para Inocêncio X como residência da família Ludovisi.



Por muito tempo eram as igrejas a indicarem pelo menos a manhã, o meio-dia, a tarde e a noite com o badalar dos sinos. Era também o convite para que os fiéis participassem pelo menos nas missas matutinas e vespertinas. Mas em muitos sítios, quando eu era jovem, a marcação do meio-dia fazia-se por sirenes dos bombeiros, ou de fábricas, baseada no sinal da Emissora Nacional. As novas tecnologias da comunicação há muito que deixaram de fazer depender exclusivamente da sirene, a menos que as tecnologias falhem. Numa vila, não me recordo onde, uma idosa, vizinha da associação de bombeiros, passou pelo quartel dos bombeiros para agradecer o simples facto de continuarem a tocar a sirene ao meio-dia. E explicou porquê. Porque lhe conferia uma sensação de conforto, de bem-estar. Ao ouvir a sirene tocar sabe que há alguém disponível para ajudar e, por outro lado, dá-lhe jeito para organizar as tarefas da lida da casa. O quartel havia mudado de lugar. E ultimamente, como os bombeiros operavam com bips, não fazia sentido manter a sirene. Não tardou o protesto dos habitantes da vila. O toque da sirene dos bombeiros ao meio-dia era, em si mesmo, uma instituição. Recuperada a antiga sirene, hoje, continua a tocar no centro histórico da vila. Não para cumprir a função de antigamente, diz um residente, mas para aquecer o coração dos que a ouvem. 

Sem comentários:

Enviar um comentário