sexta-feira, 26 de junho de 2020

O tempo de penúria não tem aroma. Está privado da duração, que cria laços estáveis entre espaços temporais distantes


Estamos no Mosteiro Namjial, em Darahmsala


Um pauzinho de incenso está a arder e um aroma preenche todos os recantos da sala. Fico a saber que o incenso a arder no pauzinho tem a função de marcar o tempo como se fosse um relógio. Mede o tempo. Nunca me tinha passado pela cabeça que o tempo pudesse tomar a forma de aroma. O aroma do incenso intensifica o aroma do tempo. O aroma acalma e liberta.

Qualquer espírito que se esvazie do inútil tem acesso a um tempo bom. Quando se está em repouso, quando se recolhe em si mesmo, aparece o tempo bom. Lá fora o aroma é de cedros, enquanto uma lagartixa corre veloz por cima de um penedo. Agora estávamos num outro tempo, o dos Himalaias. Darahmsala ficava a muitos quilómetros de distância de Swann, onde Marcel Proust reencontrara o Tempo. E a outro tanto da Floresta Negra, onde Heidegger terá encontrado o Ser do Tempo.


Tédio de sobra ou a contemplação carinhosa do tempo. O romance do tempo perdido de Proust é uma história de paixão. O caminho que separa o lugar de partida da meta é um intervalo de angústia kierkegaardiana. A temporalidade narrativa de Proust pode definir-se como uma reacção a uma época de pressa. A busca do tempo perdido de Proust é uma reacção perante a progressiva destemporalização do Dasein, que o dissocia. Por essa altura,1927, aparecia nas livrarias o Sein und Zeit de Martin Heidegger.

Há muitas coincidências nisto tudo: de um lado a areia a correr na ampulheta do psiquiatra; do outro lado a água a correr no relógio D'Água. E a editora – que publicou o livro em que o escriba se inspirou - O Aroma do Tempo, um ensaio filosófico sobre a arte da demora, de Byung-Chul Han – é a Relógio D'Água.


Byung-Chul Han nasceu em Seul, em 1959, onde estudou Metalurgia. E em 1989 emigrou para a Alemanha sem saber sequer uma palavra de Alemão. Mas foi estudar filosofia para a Universidade de Friburgo, onde Heidegger aprendeu felizmente e ensinou infelizmente. Mas por teimosia Byung-Chul quis doutorar-se nada mais nada menos em Martin Heidegger. Depois foi para a Escola Superior de Desenho de Karlsruhe ensinar filosofia e teoria dos meios de comunicação. Aqui teve como colega Peter Sloterdijk com quem travou animadas polémicas. E daqui foi para Berlim ensinar filosofia na Universidade das Artes.

A crise do Tempo, mais do que relacionada com a aceleração, tem mais a ver com a sua dissincronia descontínua. Foi preciso ir para Darahmsala para revitalizar a vida contemplativa. A crise temporal, só será superada, no momento em que a contemplação carinhosa da angústia na vida activa, acolha de novo no seu regaço a vida contemplativa.


Sentemo-nos no chão. Poderia ser melhor sentarmo-nos num café de Santa Bárbara, é uma pastelaria que tem uma esplanada com mesas ao ar livre, em frente de uma lojeca que se chama Pic-Pic, e ao lado de uma sapataria onde se consertam malas e sapatos, isso é que era bom, a esta hora há sempre clientes que comem gelados e tomam café, num dia como este hoje, lindo dia, até os velhotes que moram nas águas-furtadas da praça Mouzinho de Albuquerque, mais conhecida por Campo Novo, deviam ir para a rua, se não fosse a Covid, ainda que levassem o chapéu era perigoso, eles sempre a cuspir para o chão e a jogar às cartas nos bancos do jardim de Santa Bárbara, estás mesmo a ver, sempre a resmungarem uns com os outros por causa da manilha. É a sua maneira de ser, deixa lá, se não fosse a Covid eles andariam por lá. Se lá estivéssemos descíamos pelo jardim de Santa Bárbara até à Câmara Municipal e depois dávamos uma guinada à esquerda e subíamos até à Sé, onde encontraríamos os primeiros bandos de turistas de passagem, de máquina fotográfica ao pescoço, alguns a tirar fotografias às torres da Sé, proporcionando uma perspectiva estranha, parecendo inclinarem-se prestes a desabar sobre os telhados das casas de comércio ao lado, agora bares e snack-bares, faz-me uma certa impressão, nos tempos do liceu, na direção da esplanada de um restaurante que não deixa ver, havia um colégio de freiras, vem-te sempre isso à cabeça quando passas lá em frente, vinhas esperar uma rapariga que se chamava Cristina, há já uma infinidade de tempo, mas agora não te apetece calcular quanto, eras outra pessoa, que estranho, mas a memória ficou nesta pessoa que és agora.

A época dos novos média é uma época de implosão. O espaço e o tempo fazem estalar o aqui e o agora. Tudo se des-distancia para fugir ao tédio, para ocupar o tempo. Estamos sempre ocupados. A demora contemplativa pressupõe que as coisas duram. É impossível alguém demorar-se detidamente perante uma sucessão veloz de acontecimentos em imagens.

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