quarta-feira, 24 de junho de 2020

As sociedades tomadas pelo medo e pela autocensura


Embora insetos, como as abelhas, se reconheçam em grupo, não reconhecem os elementos do grupo a título individual. Ou seja, a este nível não existe personalidade. Mas todos os primatas reconhecem os elementos do grupo a título individual. É comum nos macacos dois ou mais indivíduos fazerem alianças e ajudarem-se mutuamente contra outros membros do grupo com quem entram em conflito, não apenas ao nível do parentesco, mas também fora dele. Os primatas guardam recordações das relações interpares anteriores.

A distância dos humanos em relação aos outros primatas, no que diz respeito à cultura, é enorme. A superioridade dos humanos em relação aos macacos na aprendizagem e criação de culturas começa desde logo pelas características dos seus genes, ainda que as diferenças dos seus genomas seja mínima. O maior contributo, para a diferença significativa que existe entre o grau de complexidade das sociedades humanas e das sociedades de chimpanzés, é dado em primeiro lugar pelos genes. E só em segundo lugar uma pequena parte se deve à aprendizagem e aos factores externos do meio ambiente.

Juízos de valor não fazem parte da neutralidade científica. Por isso também não faz parte da ciência qualquer cedência a certos princípios de correcção política, que a iniba de dizer que os cérebros humanos não são tábuas rasas, que proporcionem a todas as pessoas por igual a mesma capacidade de aprendizagem de tudo o que a experiência lhe possa dar. Einstein e Leonardo foram aquelas pessoas excepcionais que sabemos, devido mais às propriedades dos seus cérebros receitadas pelos genes, do que pela aprendizagem adquirida no seu meio ambiente, ainda que não sejam de desprezar as oportunidades dos contextos e contingências que puderam aproveitar. Uma forma de aprendizagem humana é observacional, tanto ao nível das soluções práticas, como ao nível da linguagem. Mas a aprendizagem por observação também se faz noutros animais. O que a espécie humana tem, que os outros animais não têm, é a linguagem, que por sua vez a grande fonte e meio da cultura. 

Um outro aspecto a considerar é o da informação. Ao nível da informação, há muita analogia que se pode fazer entre a informação veiculada pela linguagem, e a informação veiculada pelos genes. Os sistemas genético e linguístico são capazes de transmitir um número indefinidamente grande de mensagens recorrendo à sequência linear de um pequeno número de unidades distintas. Na genética, é a sequência de apenas quatro bases que leva à especificação de um grande número de proteínas. E estas, através das suas interacções, determinam um número indefinidamente grande de formas ao nível da filogénese. Na linguagem, é a sequência de cerca de trinta a quarenta unidades de som diferentes - os fonemas – que constroem um número infinito de palavras, frases e significados.

À semelhança do que se passa ao nível das transições na biologia, o mesmo se passa ao nível das transições entre culturas que vão emergindo ao longo do tempo e de sucessivas sociedades. As sociedades modernas só chegaram ao ponto a que chegaram, chamado mundo global ou aldeia global, porque se foram criando laços de cooperação cada vez mais alargados ao longo do tempo linear. No passado, as sociedades eram mais pequenas, constituídas no máximo por algumas centenas de indivíduos, e com pouca divisão de tarefas para além, talvez, da tarefa entre o homem e a mulher. Mas actualmente as sociedades são constituídas por muitos milhões de indivíduos dependentes uns dos outros devido à especialização e fragmentação extensa das tarefas. Portanto, o que tem de imperar hoje em dia, para o bem e para o mal, é a cooperação entre indivíduos em grande escala por extensos territórios. Mas a cooperação, para funcionar, tem de estar dependente tanto das empatias, como da formulação racional de leis e contratos que satisfaçam o interesse de todos.

O contrato social, que em resumo é do que estamos a tratar, é muito difícil de obter à escala global, uma vez que estão em causa não apenas interesses de ordem material, mas também outros interesses idiossincráticos que abrangem mitos, rituais, e outros compromissos e cumplicidades que foram gerados por longos períodos de tempo, selando de forma permanente lealdades de grupo muito fortes. E é por isso que emergem de tempos a tempos irracionalidades movidas por interesses próprios anti-sociais, que ao conduzirem a manifestações de carácter xenófobo, acabam por levar a fenómenos de inevitável destruição social.

Esta avalanche de atentados às pessoas nas sociedades ocidentais, seja aos vivos, seja através de ataques às estátuas dos mortos, está a inquietar muitas pessoas no Ocidente. A questão central coloca-se em saber em que medida as sociedades ocidentais continuam a ser capazes e a estar dispostas a preservar o tipo de civilização em que vivem construída ao longo de muitas gerações. E de continuar a educar os indivíduos necessários para manter os pilares fundamentais do seu modo de vida. Hoje, são cada vez mais os autores especializados nestas questões sociais a diagnosticar, sobretudo nas sociedades europeias, pulsões negativas de tipo depressivo que as podem arrastar para um estado social consequentemente suicida. Uma sociedade, dominada pela rejeição maciça e voluntária dos seus próprios valores fundadores, não pode sobreviver por muito tempo. Alguns investigadores apontam a globalização como um factor acelerador da desconstrução dos valores tradicionais.

O ponto central do problema, colocado aqui por tais analistas da sociologia, consiste num certo tipo de doença da identidade. E as elites e principais dirigentes políticos pouco têm feito para colmatar essas necessidades, entre as quais avulta a falta de segurança dos cidadãos e de esperança no futuro. Verifica-se uma falta de vontade e de coragem dos actuais dirigentes do centro democrático europeu para dar uma resposta consistente e satisfatória a essas necessidades. O que é muito mau porque só vai restar a esses cidadãos entregar o seu voto de confiança a demagogos populistas das franjas extremas de um lado e de outro do espectro político partidário, cujas soluções são sempre radicais e violentas. 


Concluindo, o que é mais preocupante, é o facto de o verdadeiro perigo não estar do lado dos supostos inimigos do ocidente branco, ainda que jogue a favor dos seus próprios interesses, mas do lado de dentro do próprio Ocidente. O problema está no complexo de culpabilização, que é vantajoso para os seus inimigos, uma vez que se podem alimentar dele. O que se passou nos anos de 1990 com a fragmentação da ex-Jugoslávia, tem servido de caso de estudo sociológico, e de modelo para perceberem como funciona o ódio e a crueldade das guerras tribais entre vizinhos, guerras essas que continuam a existir nos dias de hoje. Como é que o instinto humano evoluiu tão pouco, ao ponto de perpetuar esse tipo de guerras tribais? Como é que se podem transformar mitos e rituais antigos e obsoletos em mitos e rituais que em vez de gerarem ódio gerem tolerância. Que em vez de xenofobia gerem cosmopolitismo mantendo uma diversidade cultural saudável. Que rituais são esses que é preciso desenvolver para que não tenhamos de pagar um alto preço pela onda de desagregação social que estamos a ver passar à frente dos nossos olhos?

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