domingo, 7 de junho de 2020

Os povos do Xingu - os Kuikuro



Como revela a pesquisa de Michael Heckenberger (2001), pode-se recuar à pré-história do Alto Xingu até ao final do primeiro milénio da nossa era. No período entre os anos 800 e 1400, estabeleceu-se aí uma população, que deixa entrever por certos vestígios, tais como uma cerâmica característica e aldeias circulares, que se tratava de ancestrais dos atuais Aruaques xinguanos, que teriam migrado a partir do ocidente. Entre os anos 1400 e 1600, erguem-se grandes aldeias fortificadas, cercadas por valetas escavadas. No final desse período, torna-se manifesta a presença de uma população de cultura diferente, numa área mais a leste, na margem direita do Rio Xingu, que a tradição oral dos actuais Kuikuro reconhece como sendo de seus ancestrais. 


O período entre os anos de 1600 e 1750 começa com os efeitos indirectos da presença europeia no continente sobre os habitantes indígenas do Alto Xingu, e termina com o confronto face a face destes com os bandeirantes. É nessa época que os Tupi, ancestrais dos Kamayurá e Aweti, se instalam. O período 1750-1884 começa com as ditas incursões bandeirantes e termina com a primeira visita de Karl von den Steinen. Período focalizado nos massacres feitos pelas incursões bandeirantes, seguidas de uma fase em que os brancos devolveram os poucos prisioneiros indígenas que haviam levado com eles e ainda lhes deram presentes, e, finalmente a chegada de Kálusi, isto é, Carlos (Karl von den Steinen). Nesse período se aproximam os Trumai e os Bakairi, consolidando o sistema multiétnico do Alto Xingu, e ainda outros povos que se mantiveram periféricos a esse sistema, como os Suyá e os Ikpeng. 

Os Kuikuro são, hoje, o povo com a maior população no Alto Xingu. Karl von den Steinen – Pesquisador da Universidade de Berlim, em 1884 - com alguns auxiliares, partiu de Cuiabá, e à medida que ia descendo pelo Rio Xingú, da nascente até à foz, ouvia e tentava registar palavras de um grupo local que naquela época habitava a aldeia Kuhikugu (o maior povoado pré-colombiano até agora descoberto na região do Xigu), e que viria a constituir o que hoje são os Kuikuro.

Steinen é lembrado nas narrativas Kuikuro como Kalusi, o primeiro branco (kagaiha) que “veio em paz”, trazendo presentes e bens para trocar. Através dele, sabemos que no Alto Xingu viviam, no final do século XIX, mais de 3.000 índios em 31 aldeias, sete das quais caribe. A memória oral Kuikuro vai além da visita de Steinen e lembra os primeiros encontros com os brancos no Alto Xingu, na segunda metade do século XVIII, a época dos bandeirantes, que, em suas expedições no interior do Brasil, capturavam e matavam os índios.

Os Kuikuro fazem parte do que pode ser chamado de subsistema caribe do Alto Xingu. Este é constituído, hoje, por quatro grupos: além dos Kuikuro, os Matipu, os Nahukuá, e os Kalapalo.  A língua dos Kuikuro é uma língua ainda viva e íntegra, usada por todos em todos os domínios, mas não na comunicação com os brancos e outros índios. A escolarização, os contactos cada vez mais intensos com o exterior, as viagens constantes para as cidades, a presença cada vez mais impositiva da televisão e de outros média na aldeia, fazem com que o conhecimento e o uso do português esteja a crescer rapidamente. O
 Alto Xingu é a única área na Amazónia Brasileira onde pode ser demonstrada com clareza a continuidade da ocupação indígena dos tempos pré-colombianos até ao presente. Por volta de 1400 as aldeias alcançaram proporções imponentes (20-50 hectares), erguidas com uma variedade de estruturas, incluindo aterros lineares que marcavam as margens de caminhos principais, praças centrais e amplos fossos, sem dúvida associados com estruturas elevadas acima do solo, como paliçadas, pontes e portais de entrada. Calcula-se que essas aldeias abrigavam à volta de mil pessoas. A oeste do rio Kuluene, habitam cerca de dez mil índios. O Kuluene, com 600 Km, é afluente do rio Xingu. Este, por sua vez, um afluente do rio Amazonas, tem cerca de 2000 Km.

As aldeias Kuikuro são aldeias circulares com praça central, estruturadas de acordo com uma orientação precisa. As praças e as estradas radiais são orientadas nas direcções cardinais (Norte/Sul, Leste/Oeste), assim como em relação a traços importantes da paisagem local, incluindo outras comunidades e locais como portos e pontes. Essa orientação não somente revela a integração de várias aldeias através do território, mas também demonstra um entendimento sofisticado do desenho arquitectónico, da astronomia e da geometria. As Malocas (casas Kuikuro), como todas no Alto Xingu, são grandes e têm uma base ovalada. A sua estrutura e a sua construção revelam um conhecimento arquitectónico extremamente complexo.

Os fragmentos de cerâmica antiga e recente, fornecem clara evidência da continuidade cultural ao longo de quase mil anos. O Alto Xingu é um exemplo de como tecnologias ameríndias podem sustentar populações numerosas e sedentárias. Apesar do uso do território ter sido mais intenso nos tempos pré-colombianos, os padrões xinguanos fornecem um modelo importante de como uma agricultura intensiva, no interior de um padrão rotativo de uso da terra, complexo e de longa duração, pode ser possível em meio ambiente amazónico. É um modelo que contraria os padrões de exploração da terra com o uso das tecnologias ocidentais na Amazónia. A caça não é importante. O consumo de peixe representa 15% da alimentação e os Kuikuro conhecem cerca de cem espécies de peixes comestíveis. O Alto Xingu é um mundo de águas, entre rios, igarapés e lagoas. 

A unidade básica é a família nuclear, que pode ser ampliada (família estendida) acrescentando outros parentes, como viúvos e filhos casados. A regra é que o filho recém-casado passe a morar com os sogros, participando de todas as actividades diárias e produtivas da família. Após alguns ou muitos anos, o casal pode construir uma moradia própria. A descendência é bilateral. Tipos de herança, inclusive do status de chefia, são estabelecidos igualmente por linha paterna e materna. A transmissão dos nomes próprios é feita de avós para netos, também bilateralmente; assim, um indivíduo porta todos os nomes pelos quais a sua mãe o chama e todos os nomes pelos quais o seu pai o chama. Os nomes dados alguns meses após o nascimento mudam em momentos específicos do ciclo de vida: da iniciação masculina e feminina, ao nascimento de filhos e netos. Nomes novos podem ser comprados ou, mais raramente, doados.

No Alto Xingu, as aldeias são formadas por casas comunais dispostas em perímetro ovalado, em torno de uma praça de chão batido. No centro desta praça fica a chamada casa dos homens. Além de ser um ponto de reunião masculino, a construção oculta as flautas sagradas, interditas ao olhar feminino, e que são por isso tocadas no interior da casa ou à noite no pátio, quando as mulheres estão recolhidas. O centro da praça é também o lugar onde se enterram os mortos, onde se realizam os rituais, onde os pagamentos cerimoniais são feitos, onde o chefe recebe mensageiros de outros grupos e profere os seus discursos ao grupo local; é ainda lá que os homens realizam as lutas entre membros de aldeias diferentes durante todos os encontros formais. O dono da casa é em última instância, aquele que tomou a iniciativa da sua construção. Idealmente, seu primogénito deve sucedê-lo. As principais atribuições do dono da casa são a transmissão das solicitações do líder da aldeia ao seu grupo doméstico com relação às tarefas quotidianas, que também são por ele coordenadas. 

O espaço interno da casa não comporta divisões, excepto os gabinetes onde ficam os adolescentes em reclusão pubertária. A formação da pessoa no Alto Xingu implica períodos de reclusão. No caso dos homens, passam a receber sistematicamente ensinamentos sobre as técnicas de trabalho masculino e de luta huka-huka na reclusão pubertária. Quanto mais prolongada é a reclusão, maiores as responsabilidades sociais e liderança que se deva assumir na comunidade. Nesse período, o sexo deve ser evitado para que o jovem venha a ser um bom lutador.

A unidade política por excelência no Alto Xingu é a aldeia, cujo líder actua como mediador e regulador dos conflitos, devendo ser generoso e manter a harmonia interna do grupo. O poder do chefe, de natureza marcadamente pacífica, depende da anuência do grupo, sobretudo do apoio dos líderes de grupos domésticos. Sua habilidade política se expressa pela palavra, nos discursos e exortações na praça. As regras de sucessão ao status de líder da aldeia são flexíveis e costumam suscitar muita competição pelo cargo.

Para além das especializações de cada povo, há itens produzidos em todas as aldeias do Alto Xingu, tais como bancos zoomórficos esculpidos em uma só peça de madeira; o propulsor de dardos para uso no rito do Jawari; o uso do uluri, peça feminina constituída de um pequenino triângulo de líber colocado sobre o púbis e amarrado à cintura com fio de buriti; o corte de cabelo curto e ovalado para os homens e longo com franja para as mulheres; os mesmos adereços e pinturas corporais. E
ssa uniformidade não é completa: as línguas são diferentes, há peculiaridades culturais que particularizam cada povo e, sobretudo, a identidade de cada etnia é cultivada de modo a não se diluir na sociedade do Alto Xingu.


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