quinta-feira, 4 de junho de 2020

Os Cínicos


Pela etimologia – grego: kynikós; latim: cynĭcucínico é cão. Na medicina do tempo de Hipócrates uma tosse cínica era uma tosse de cão. Mas na filosofia grega cínico significava outra coisa: filósofo que apregoava o menosprezo absoluto pelas normas e preceitos sociais, assim como pelos pensamentos e opiniões normalmente aceites pela sociedade. E em contrapartida, apelava à vida honesta, singela e honrada. 
Por volta do século XIX, a ênfase sobre os aspetos negativos da filosofia cínica levou ao entendimento moderno de que o cinismo significava uma disposição de descrença na sinceridade e bondade das motivações e ações humanas, com desprezo pelas convenções sociais. 

Nos dias de hoje um cínico é um hipócrita, um sem vergonha que se está nas tintas para as normas de conduta aceites pela sociedade. Viver em sociedade implica ser respeitador de uma série de regras, escritas e não escritas, que, em teoria, nos ajudam a viver melhor em comunidade. É pressuposto todos respeitarem as regras. Mas sabe-se que na prática nem todos respeitam. Embora o cinismo seja um padrão de comportamento aprendido, ele geralmente acompanha certos traços naturais de carácter. Pessoas cínicas não têm escrúpulos em usar falácias nas suas argumentações. Normalmente, o fato de muitas falácias aparecerem na mesma discussão significa que muitas delas são detetadas. Mas, os cínicos geralmente não se importam. Outra característica é o narcisismo ou o egocentrismo. E não se sentem mal com isso, mesmo sabendo que as pessoas pensam isso delas. Além disso, outra consequência desse egocentrismo é que não se importam de prejudicar outros para obter o que mais lhes interessa. Pessoas cínicas não são apenas indivíduos que não estão satisfeitos com as convenções sociais. Também desdenham uma moral em que a honestidade tem um valor supremo. Portanto, não é difícil para eles fingir que cuidam dos outros e, quando menos se espera, espetam a faca nas costas. Normalmente, as pessoas cínicas não esperam muito da sociedade como um todo. São desconfiados, mostram uma visão bastante negativa da vida, não se sentindo compelidas a ganhar a simpatia dos outros. 

Antístenes [445 a.C.- 365 a.C.] discípulo de Sócrates, é a referência dos cínicos na cultura da Grécia Antiga. Apregoava a virtude de acordo com a natureza. Um outro nome que ganhou fama foi Diógenes de Sinope [+/ - 412 a.C. - 323 a.C.]– que vivia num barril e andava descalço no inverno. Levando ao extremo as ideias de Antístenes, passou a ser considerado o protótipo dos ideais do cinismo. O cinismo espalhou-se durante a ascensão do Império Romano no século I, quase se tornando um movimento de massas. Os cínicos eram encontrados a pregar e a mendigar pelas cidades do império. A doutrina finalmente desapareceu no final do século V, embora alguns afirmem que o cristianismo primitivo adotou muitas de suas ideias ascéticas e retóricas. 
Há uma lenda que envolve Diógenes e Alexandre Magno. Um dia, quando este parou onde ele se encontrava para lhe perguntar o que ele precisava, pois gostava de lhe ser prestável como prova do respeito que nutria por ele, Diógenes respondeu: "desejo apenas que não me tapes o Sol. Diógenes não desejava nada a mais do que já tinha. Naquele momento do que precisava era aquecer-se ao Sol. Os cínicos, assim como Sócrates, nada de escrito deixaram. O que se sabe sobre eles foi narrado por outros, em geral, críticos das suas ideias. 



Os cínicos gregos e romanos clássicos consideravam a virtude como a única coisa que era preciso para a eudaimonia, ou seja, a felicidade. A eudaimonia era adquirida através de práticas ascéticas que ajudavam o indivíduo a tornar-se livre de coisas como riqueza, fama e poder. Possuíam autarquia, que significava viver de harmonia com a natureza. Condição de autossuficiência do sábio, a quem bastava ser virtuoso para ser feliz. O termo grego original é autárkeia. Assim, um cínico não tinha bens e rejeitava todos os valores convencionais. Viver de acordo com a natureza requer apenas as necessidades básicas para a existência. Os cínicos adotaram Héracles como seu herói. O treino era de dois tipos: mental e corporal. Com o exercício constante era assegurada a liberdade para as ações virtuosas. Boa saúde e força eram coisas essenciais, seja para o corpo, seja para a alma. Nos trabalhos manuais e outras artes se podia ver que os artesãos desenvolviam habilidade manual extraordinária através do treino. Era o caso dos tocadores de flauta e dos atletas, adquirindo habilidade pela sua própria labuta incessante.

Nada disso significava que o cínico se afastava da sociedade. O cínico vivia sob o olhar público e eram completamente indiferentes em face de qualquer insulto que recebessem por causa do seu comportamento pouco convencional. Diz-se que foram eles que inventaram o cosmopolitismo. Quando perguntavam a Diógenes de onde ele era, ele respondia que era um "um cidadão do mundo", (kosmopolitês).

Vários filósofos antes dos cínicos, como os pitagóricos, defenderam ideias de vida simples.. No início do século VI a.C. há referência a um sábio da CítiaAnacársis – que exortava o modo de vida simples dos Citas enquanto criticava os costumes dos gregos. De importância também foram os contos de filósofos da Índia que eram chamados pelos gregos posteriores de gimnosofistas. Adotavam  um ascetismo rigoroso juntamente com um desrespeito pelas leis e costumes estabelecidos. Por volta do século V a.C., os sofistas tinham começado um processo de questionamento sobre muitos aspectos da sociedade grega, como a religião, a ética e a lei. No entanto, a influência mais imediata para a escola cínica foi Sócrates. Embora não fosse um asceta, ele professou amor pela Virtude, indiferença pela riqueza material, e desdém pelo senso comum. Sócrates também partia do princípio de que a felicidade não depende de nada externo à própria pessoa, ou seja, coisas materiais, reconhecimento alheio e mesmo a preocupação com a saúde, o sofrimento e a morte, nada disso podia trazer a felicidade. E segundo os cínicos, é justamente a libertação de todas essas coisas que pode trazer a felicidade que, uma vez obtida, nunca mais poderia ser perdida. Portanto, para além do discurso, não podia deixar de ser importante o modo de vida do cínico, que deveria ser conforme as ideias defendidas. Para eles a virtude reside, sobretudo, na conduta moral do homem, naquilo que lhe é intrínseco, e não nas conquistas materiais, nem na aparência exterior.

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