segunda-feira, 15 de junho de 2020

O significado de “nova ordem” no contexto da liberdade humana


Sabe-se que, ao nível da organização humana, de tempos a tempos há processos, ditos limite, ou revolucionários, que se desencadeiam aparentemente de forma espontânea a partir de um acontecimento, que pode nem sequer ser um acontecimento inédito ou tão extraordinário que não tenha acontecido anteriormente. Ainda que seja um acontecimento de grande importância para quem dele faz parte, ou é directamente atingido. Ou seja, carrega para essas pessoas um forte significado

O que está aqui em causa nesta análise, é quando um acontecimento com um significado local se transforma num acontecimento com significado global. Para isso é preciso que a informação circule rapidamente pelas redes da organização. E assim, pode haver um momento em que a informação se amplifica de tal maneira que o status quo, a chamada ordem estabelecida, não consegue absorvê-la e amortecer os seus impactos. Quando isso acontece, atinge-se um ponto de instabilidade. O resultado é um estado de caos, confusão, incerteza e dúvida. É, geralmente, deste estado caótico, que tem de surgir um novo significado, em torno do qual se vai organizar a "nova ordem".

A "nova ordem" não é inventada por ninguém, mas surge espontaneamente no decurso da criatividade colectiva da organização. Mais raramente, pode-se atingir um estádio limite tal que pode descambar  em colapso. Este fenómeno, tanto ocorre ao nível das sociedades humanas, como ao nível das espécies em geral. E assim como há extinções para civilizações, também há extinções para espécies biológicas. É uma questão de grau, que muitas vezes não passa de uma crise existencial. Pode ser, por exemplo, o caso de uma pandemia, em que os agentes que deviam controlar o fenómeno, não o conseguem controlar, dado o elevado grau de estranheza e imprevisibilidade. Os especialistas, precisamente por não serem generalistas, tomam consciência que os seus conceitos básicos não são adequados para compreender o inesperado. É em alturas como esta que alguns cientistas, em estado de angústia, são invadidos por uma intuição que os impele a reclamar por um novo paradigma científico. A experiência da tensão e da crise que precede o surgimento de uma novidade é bem conhecida dos artistas, que muitas vezes se sentem assoberbados pelo processo de criação com disciplina e paixão. Os especialistas são os melhores, mas apenas no período estável do paradigma enquanto dura. Na passagem de um paradigma científico para outro novo, portanto na fase da revolução, é mais produtivo o cientista-com-visão-holística, do que o especialista.

Uma das características das estruturas de pensamento com planeamento e significado teleológico é o seu antropomorfismo, que consiste em projectar características humanas na acção de entidades não humanas. Mas isso não significa que a acção nos acontecimentos a esse nível da natureza, seja puro acaso. Os fenómenos emergentes na natureza obedecem a mecanismos de auto-organização - não de forma isolada, mas de forma correlacionada. Agora, a natureza ter um objectivo, um plano ou uma finalidade, isso não. Essa é uma condição, ou uma característica exclusivamente humana. E mesmo neste caso, nem sempre. As organizações humanas contêm estrutura dos dois tipos: emergentes e projectadas. São as estruturas emergentes que proporcionam a novidade, a criatividade e a flexibilidade.

A nova concepção - evolução como parte da auto-organização da vida - é o resultado de prolongadas pesquisas feitas no campo da microbiologia, que mostraram que as mutações constituem apenas um dos três caminhos de mudança evolutiva. Os outros dois são: a troca de genes entre bactérias; e a simbiogénese (a criação de novas formas de vida através da fusão de diversas espécies). O recente mapeamento do genoma humano mostrou que muitos genes humanos também fazem parte de bactérias, o que dá mais uma achega à teoria da simbiogénese. Em seu conjunto, esses avanços da genética e da microbiologia representam uma admirável mudança conceptual no contexto da teoria da evolução, uma visão sistémica na qual a mudança evolutiva é entendida como uma manifestação da auto-organização da vida.

Na vida anda tudo ligado. É nas ligações e não nas moléculas que está o segredo da vida. E é nas ligações que está o conhecimento. À medida que a complexidade das ligações entre as estruturas que corporizam a vida ia aumentando ao longo de milhões e milhões de anos, assim como a relação dessas estruturas com o ambiente não vivo, assim ia também aumentando a complexidade cognitiva até chegar à consciência humana. Portanto, faz mais sentido ver a vida nas relações sistémicas, do que nos seus componentes químicos. Ou seja, na rede de processos metabólicos autogeradores. O mais importante dos processos vitais é o surgimento espontâneo de uma nova ordem, a base da criatividade intrínseca da vida.

Um dos aspectos que nos empolga na análise da vida, e para a qual a nossa linguagem não é suficiente, é, à falta de melhores metáforas, a sua vitalidade (ou vivacidade), que no caso humano se pode traduzir por alegria, felicidade, experiências de pico (nos orgasmos ou no saciar dos melhores apetites). E isso só pode estar presente na plenitude da mente e do corpo. E é nesses momentos que que alguns seres humanos tomam consciência de fazerem parte de uma ordem maior. T
odos os organismos se mantêm por mecanismos involuntárias e inconscientes que fazem parte do processo da vida. Mas os seres humanos também se movem por mecanismos voluntárias e intencionais. É nesta dialéctica do inconsciente e do consciente intencional que devemos colocar a análise do livre-arbítrio. O comportamento humano não é completamente livre no sentido da intencionalidade, se percebermos que os organismos vivos são dotados da capacidade de auto-organização, o que significa que o seu comportamento em vez de ser determinado por uma lógica exterior que lhe é estranha, é estabelecido pelo seu próprio sistema. Ou seja, o comportamento do organismo é determinado pela sua própria estrutura, estrutura essa que é formada por uma sucessão de mudanças estruturais autónomas. 

Os sistemas sociais, como um prolongamento dos sistemas vivos, são redes geradoras de significado. Mas a produção de estruturas materiais nas redes sociais é muito diferente da sua análoga nas redes biológicas e ecológicas. Na sociedade humana, as estruturas são criadas tendo em vista uma determinada finalidade, de acordo com uma intenção predeterminada, constituindo a corporificação de um determinado significado. Por isso, para compreender as actividades dos sistemas sociais, é essencial estudá-los a partir desse ponto de vista. O ponto de vista do significado abarca um sem-número de características inter-relacionadas que são essenciais para a compreensão da realidade social. O próprio significado é em si um fenómeno sistémico, ligado a um determinado contexto. Carece de interpretação. E a interpretação é feita à luz de crenças e juízos circunstanciais. Para interpretarmos alguma coisa, ela é situada dentro de um determinado rol de conceitos, valores, crenças e circunstâncias. 

O significado é essencial para os seres humanos. Temos a contínua necessidade de captar o sentido dos nossos mundos exterior e interior, de encontrar o significado do ambiente em que estamos e das nossas relações com os outros seres humanos, e de agir de acordo com esse significado. Nós, quando agimos, temos a convicção - válida ou não - de que as nossas acções são voluntárias, intencionais e voltadas para um determinado objectivo. Para se compreender o significado de uma coisa, ela tem de ser relacionada com outras coisas no ambiente, a sua ligação ao passado, e eventualmente ao futuro. Nada tem sentido em si mesmo. Por exemplo, para se compreender o significado de um texto literário, quem o interpreta tem de determinar os múltiplos contextos das palavras e frases do texto. Pode tratar-se de uma actividade puramente intelectual, mas pode alcançar também um nível prático interessante. Quando o contexto de uma ideia ou de uma expressão inclui relações que envolvem a própria pessoa, a ideia ou a expressão tornam-se pessoalmente mais significativas. Esse sentido mais profundo do significado assume uma certa dimensão emocional e pode, inclusive, deixar a razão completamente de lado. Certas coisas são profundamente significativas para nós através do contexto oferecido pela experiência directa.

Autonomia de sistemas vivos não pode ser confundida com independência. Os sistemas vivos não existem isolados do ambiente em que vivem. Interagem com esse ambiente de modo contínuo, mas não é o ambiente que lhes determina a organização. Na vida humana, essa autodeterminação se reflecte ao nível da consciência como liberdade de agir ou decidir de acordo com convicções. O facto de as decisões serem determinadas por convicções significa que elas são determinadas por aquilo que define a natureza humana, no contexto da qual se incluem a hereditariedade e as experiências passadas. Na medida em que as pessoas não se sintam condicionadas pelas relações de poder, obviamente. O comportamento que se diz livre pressupõe uma noção de liberdade forjada numa rede social que forma uma determinada cultura.

Sem comentários:

Enviar um comentário