terça-feira, 30 de junho de 2020

Offshores: quando o moralmente correto é superior ao legalmente incorreto




É eticamente correto que as empresas que beneficiam de esquemas, como o das offshores, não mereçam ajuda à custa de todos nós em tempos de pandemia. Agir eticamente exige que tenhamos em conta os outros. Portanto, perguntar pelo fundamento da moral é procurar saber qual é o bem último, e o que faz uma ação ser correta.

Por bem último entende-se o bem do qual os outros bens resultam. O dinheiro não é um bem último. Na procura da fundamentação moral, encontramos duas posições extremas: Kant com a sua ética deontológica e a defesa do imperativo categórico; e Stuart Mill, coma sua ética utilitarista e a felicidade para o maior número. Perante esses dois casos extremos, a melhor escolha está no meio. E assim, seguimos o conselho de Aristóteles, que dizia que no meio é que está a virtude.

Na verdade, a ética deontológica de Kant parece por vezes defender que as consequências das ações nunca contam, porque o que conta é a intenção. Kant defende que o bem último é a vontade boa. E defende que agir por dever é cumpri-lo em todas as suas circunstâncias. Ora, como na prática isto resulta numa quimera, esta doutrina acaba por ser geradora de mais hipócritas e mais cínicos.

Kant, faz do seu fundamento lei universal. Tal coisa, cai em impossibilidades práticas, que é o mesmo que dizer impossibilidades lógicas. Tudo o que demonstra é que, levada a lei à letra, a sua adoção universal seria de tal ordem que poucos a escolheriam. O utilitarismo, por outro lado, quando aponta como a boa consequência das nossas ações a felicidade para o maior número, esquece que a felicidade é um conceito muito movediço à mercê de cada um, tanto em termos qualitativos como quantitativos.

Interrogarmos, como pode a vontade como causa da ação, cuja natureza é mais mental do que corporal, ter efeito causal no mundo físico. É um exercício que faz parte da Filosofia. Vistas bem as coisas, qualquer ação tem de envolver o corpo de alguma maneira. Mas nem tudo o que o corpo faz são ações. É o caso do sonâmbulo, ou do epilético, porque é algo que acontece mais no corpo do que na mente. Para que um acontecimento, que envolve o nosso corpo, seja uma ação, a intenção tem de estar presente. Nós quando vamos na rua, e por distração damos um encontrão noutra pessoa, o que é costume é pedirmos desculpa e afirmar que foi sem querer. Portanto, todos sabemos que nem tudo o que acontece ao nosso corpo coincide com a nossa vontade. A vontade é uma propriedade mental. E embora não possa haver mente sem corpo, a vontade possui uma subjetividade que extravasa os limites físicos do corpo. E a vontade tem de certa maneira uma dependência de valores.

Nas últimas décadas tem havido um aceso debate sobre a objetividade dos valores por causa do chamado “relativismo cultural”, segundo o qual os valores morais são relativos à cultura. Mas, será que a diversidade cultural significa que todos os princípios morais são diferentes de cultura para cultura? Aquilo que cabe no conceito de bem é o que a sociedade aprova? E isto passa a ser o normal numa determinada sociedade. Uma ação normal é o que se enquadra perfeitamente no que são os limites do comportamento desejável nessa sociedade.

Quando apelamos à racionalidade no debate acerca do relativismo cultural, a dado momento começamos a verificar que algumas das suas consequências são inaceitáveis, e por isso os argumentos a favor do relativismo cultural baseado na diversidade cultural apresenta-se-nos como pouco sólido. Um exemplo chocante é a mutilação genital feminina (MGF), também conhecida por excisão feminina, a remoção ritualista de parte ou de todos os órgãos sexuais externos femininos. Geralmente um executante tradicional, utilizando uma lâmina de corte, com ou sem anestesia, faz esse trabalho em 27 países. A idade em que é realizada varia entre alguns dias após o nascimento e a puberdade. Em metade dos países com dados disponíveis, a maior parte das jovens é mutilada antes dos cinco anos de idade.

Assim, quando cruzamos os argumentos do relativismo cultural com os fundamentos da correção moral, descobrimos que não são tão plausíveis como poderia parecer à primeira vista. Não é por culturas diferentes terem códigos morais diferentes, que vamos inferir que não há verdades objetivas na moralidade. Certo e errado, moralmente, não é apenas uma questão de opinião. Certos hábitos e tradições culturais apenas resultam daquilo em que as pessoas acreditam. E esse é o erro do argumento do relativismo cultural. É claro que estamos a falar de coisas substanciais e fundamentais na vida humana. Continuará a haver muitas coisas em que haverá diferenças de opinião entre sociedades que não têm de se subordinar ao critério de certo e de errado. E também não é critério de certo o simples facto de ser o padrão da nossa sociedade. Faz sentido pensar que a nossa própria sociedade tem aspetos que justificam mudar para melhor. E faz sentido reafirmar que se na nossa sociedade existiu escravatura, isso foi um erro.

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