sábado, 27 de junho de 2020

Bactérias resistentes aos antibióticos



O renomado cirurgião americano William H. Stewart declarou em fins da década de 1960: “é hora de fecharmos o livro das doenças infecciosas e declararmos a guerra ganha”. A previsão ocorreu na era de ouro dos antibióticos. Bactérias eram arrasadas com a chegada da penicilina e sulfamidas. Depois nunca mais pararam: cloranfenicol, cefalosporinas, vancomicina, tetraciclina, eritromicina, só para mencionar uma pequena amostra do nome de antibióticos que entretanto o engenho humano inventou (entre aspas)Um paciente internado, debilitado pela febre, recebia alta hospitalar curado de infecções que, no passado, o condenariam à morte. A ciência, eufórica, abusava das novas drogas milagrosas com futuro promissor. Porém, um detalhe passou despercebido: com exceção das sulfamidas, todos os antibióticos foram descobertos e não inventados. Inúmeras bactérias e fungos produziam os antibióticos, e o homem apenas os descobriu. Essas substâncias estavam na natureza há milénios e, portanto, havia enorme possibilidade de a evolução das bactérias resistirem.

Os microrganismos surgiram há mais de três mil milhões de anos e foram os primeiros seres vivos do planeta. Essas formas de vida resistiam ao calor da Terra, à radiação solar no solo, e às condições inóspitas da nossa atmosfera primitiva. Adaptavam-se às adversidades adquirindo resistência às condições químicas e físicas agressivas. Começava a batalha pela sobrevivência entre os microrganismos, e nesse cenário primitivo de disputas microscópicas, iniciou-se uma estratégia bacteriana: a guerra química. Algumas espécies bacterianas adquiriram genes que comandavam a produção de substâncias, que, eliminadas no meio, destruíam bactérias concorrentes. Eram antibióticos naturais e, logicamente, inócuos às bactérias que os produziam. Assim, a evolução selecionava as bactérias mais aptas à sobrevivência. Porém, bactérias vulneráveis e fadadas à extinção também adquiriam mutações e contra-atacavam: criavam diferentes maneiras de resistir aos antibióticos naturais eliminados pelas concorrentes. Portanto, desde essa época que as bactérias resistiam. A evolução microbiana caminhava com o surgimento de novas substâncias antibacterianas e novos genes para resistências. 

As primeiras formas de vida microscópica evoluiriam e presenciariam as futuras formas de vida complexa. Testemunhariam o nascimento de seres multicelulares. Animais marinhos surgiam e tornavam-se suscetíveis à invasão bacteriana em um mundo inundado por microrganismos. Hoje, diferentes tipos dessas moléculas antimicrobianas são encontradas em moluscos, crustáceos e peixes. Esses animais despejavam antibióticos naturais ao seu redor, e, essa carapaça química os protegia contra bactérias e fungos que se aproximassem. Com o tempo, surgiram bactérias resistentes a essas novas drogas naturais. Já se tornava rotina na história bacteriana o surgimento de resistência para sobrevivência. Por que seríamos nós a vencer esse império microscópico?

Na contínua evolução planetária, a vegetação aquática avançou para os continentes. 
Os troncos ascendiam e se engrossavam cobrindo o planeta de vegetação. Para essa conquista, as plantas precisavam vencer os microrganismos agressores, e também passaram a produzir antibióticos naturais. Mesmo assim, eram colonizadas por microrganismos que adquiriram resistência às suas recém-criadas moléculas antibacterianas e antifúngicas. Novamente, surgem formas microscópicas adaptadas ao despejo de novos antibióticos e antifúngicos, dessa vez, vindo de plantas, sementes e frutas. Fomos os últimos a lançar mão dessas drogas e, ingenuamente, achamos que éramos insuperáveis. 

Então vieram os insetos. As moscas sobrevivem às infecções também pela produção de moléculas bactericidas. As larvas de diversos insetos assim procedem, nessa fase vulnerável da vida. Bactérias e fungos ganhavam novas mutações para resistir a essa onda de substâncias antibacterianas e antifúngicas. E assim continuou a vida na Terra, com animais cada vez mais complexos. 

Enquanto as formas de vida complexas surgem e se desenvolvem, no mundo microscópico continua a guerra química entre bactérias, fungos e não esqueçamos os vírus. Os fungos eliminam substâncias antibacterianas para combater os seus grandes concorrentes pela disputa de nutrientes: as bactérias. Muitas formas bacterianas morriam ao se aproximar dos bolores repletos de arsenal químico, porém, a mutação de poucas as tornavam resistentes. Seus genes produziam substâncias que contra-atacavam as moléculas bactericidas dos fungos. Mundo macroscópico e mundo microscópico, são assim, numa permanente corrida ao armamento. 

Surgem os primatas, e, depois, os primeiros hominídeos que evoluem em diversas espécies até ao homo sapiens. E, em nós, a história não seria diferente. Nosso corpo está repleto de campos de batalha onde bactérias se digladiam pelos nutrientes emanados do nosso organismo. Bactérias inofensivas revestem a nossa pele e se infiltram nos orifícios: forram a boca, o estômago e o intestino. Esses microrganismos, sem se intimidarem, nos envolvem. Temos dez vezes mais microrganismos do que células. Cada grama de fezes carrega biliões de bactérias.

Logo após o nascimento, ocorre uma invasão de bactérias que se espalham pela pele do recém-nascido ainda na maternidade. Carregamos esses inquilinos cutâneos para o resto da vida. As bactérias se reproduzem todo o tempo em nossa pele, nutrindo-se desse terreno fértil de células cutâneas descamadas. Utilizam água, sais minerais e gorduras jorradas dos poros da pele. Os poros, as glândulas de suor e os folículos pilosos despejam esses nutrientes para os colonizadores cutâneos. Algumas bactérias preferem áreas secas e expostas ao sol, enquanto outras, humidade e sombra. Algumas produzem moléculas voláteis que causam odor característico do local que habitam: por exemplo, os pés. Da mesma forma, bactérias nas axilas eliminam moléculas ácidas e voláteis responsáveis pelo odor característico da região. Cientistas evolucionistas acreditam que essas bactérias evoluíram com os hominídeos e contribuíram para a nossa evolução. O odor repugnante axilar repeliria outros machos que ameaçassem se aproximar do grupo. Seria uma espécie de demarcação territorial pelo macho líder. Isso, provavelmente, numa época em que o nosso olfato seria bem mais apurado, e usado com maior intensidade para relações sociais: esse órgão seria muito mais desenvolvido e sensível. Trabalhos científicos mostram que mantemos vestígios subtis dessa comunicação pelo cheiro. Recém-nascidos exalam um odor agradável ao sexo masculino, o que, no passado, os protegeu da agressão e infanticídio pelos machos. Hormonas sexuais atingem terminações nervosas do olfato, que, no passado, auxiliavam a atração sexual.

E da pele podíamos passar para outros sítios do corpo, onde inúmeras outras espécies de bactérias habitam. O nosso estômago é um deserto ácido inóspito às bactérias e, além disso, repleto dessas substâncias que funcionam como minas espalhadas com poder bactericida, e, todavia, uma bactéria em especial adquiriu capacidade para sobreviver no estômago: Helycobacter pylori. A sua estratégia consiste em utilizar compostos azotados para produção de amónio, que, englobando a bactéria e, por ter pH básico, neutraliza a acidez gástrica. A invasora permanece envolta nessa cápsula protectora de amónio e vence a acidez. O amónio agride a parede do estômago e, junto com substâncias irritantes produzidas pela bactéria, ocasiona gastrites e úlceras.

Como vemos, o nosso corpo é um campo de batalha com produção de inúmeras substâncias antibacterianas, e suas resistências. Porém, nada se compara ao que ocorre no cólon, a porção final do intestino onde bactérias e fungos disputam palmo a palmo o seu espaço nutritivo: se espalham pela superfície da mucosa intestinal constituída por vilosidades microscópicas para aumentar a área de absorção dos nutrientes da dieta. Caso esticássemos a mucosa intestinal poderíamos cobrir uma superfície de 300 m2. Esse é o campo de batalha dos microrganismos que acomodamos. São mais de trezentas espécies diferentes de bactérias que se alimentam de restos celulares descamados da mucosa, de açúcares não absorvidos da dieta, de álcool, de compostos vegetais não digeridos e muco produzido nos intestinos. As nossas bactérias produzem gorduras que acidificam o meio intestinal e auxiliam na absorção de cálcio, magnésio, ferro e vitaminas. Muitas dessas inquilinas protegem o seu território pela produção de substâncias antibacterianas que atacam bactérias intrusas. Isso também nos protege. Novamente, armas químicas lançadas na natureza forçam o surgimento de bactérias resistentes aos antibióticos naturais. Além disso, as nossas células intestinais também produzem antibióticos naturais para combater invasores. Fomos presenteados por genes da evolução que comandam a síntese desses antibióticos naturais e, mais uma vez, surgem bactérias resistentes que conseguem superá-los.

Em conclusão, bactérias e fungos evoluem há pelo menos os últimos dois terços da existência da Terra que é de 4,54 mil milhões de anos. Surgiram em ambientes constantemente inundados de antibióticos naturais que os forçaram a desenvolver resistência. Parece óbvio que seria questão de tempo para os nossos antibióticos perderem o efeito. A ciência teria que lançar novos antibióticos para repor os antigos e já inutilizados. Esta é que é a grande corrida armamentista em que estamos metidos até às orelhas desde há uns insignificantes setenta anos, se comparados com as bactérias que andam nessa guerra incomensuravelmente há muito mais tempo. E, por isso, hoje já não estamos com as bazófias dos nossos colegas dos anos 1960. Estamos, pelo contrário, algo atrapalhados com as novas provocações que os microorganismos nos estão a fazer à nossa capacidade inventiva. Para já, ainda estamos atolados neste grande imbróglio de saúde pública, à escala planetária, provocado por um insignificante coronavírus.
 

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