segunda-feira, 29 de junho de 2020

A técnica


A técnica, como tudo e em todos os mundos possíveis, não é possível utilizar sem interpretar, metamorfosear, bricolar. Nesta concepção, o termo tecnologia define um conhecimento técnico e científico, material e imaterial, bem como a sua aplicação através do engenho humano a partir do conhecimento. Materializada em elementos concretos ou não, resulta de procedimentos sistemáticos, visando alcançar um objectivo intencional. 
O culto moderno da “tecnologia” - um modo de nos relacionarmos com o mundo, como se fosse um amontoado de coisas e objetos neutros, que consumimos, dominamos e deitamos fora, sem um olhar crítico sobre as suas limitações e consequências - transformou-se nos últimos tempos num pesadelo. Há muito que a técnica se dissociou dos valores da technë. A nossa violenta inflexão de "vocação" para "provocação", fez com perdêssemos a matiz: technë, do grego, frequentemente traduzido por artesanato.

A pretensão da razão, de ser capaz de conhecer o mundo exaustivamente e de o pôr inteiramente à sua disposição, deu com os burros na água. Não se pretende ir tão longe, como ao tempo dos ingénuos Ludistas. É mais uma chamada de atenção para a dialética da natureza a funcionar, o chamado efeito boomerang da réplica da Terra à nossa provocação. 

A expressão - "dar com os burros na água" surgiu no Brasil no início do século XIX, quando o escoamento da produção de ouro, cacau e café era feita por transportadores com burros e mulas de carga. O facto era que muitas vezes esses burros, devido à falta de estradas adequadas, passavam por caminhos muito difíceis e regiões alagadas, onde os burros morriam afogados. Daí em diante o termo passou a ser usado para se referir a alguém que faz um grande esforço para conseguir algum feito e não consegue ter sucesso.
O Ludismo foi um movimento de trabalhadores ingleses do ramo da fiação e tecelagem, no início do século XIX, e que se notabilizou pela destruição de máquinas como forma de protesto. Os Ludistas consideravam que a maquinaria era usada "de maneira fraudulenta e enganadora", para contornar práticas laborais consolidadas pela tradição. A princípio, os ataques ludistas foram enfrentados a tiro pelos proprietários das máquinas. Afinal o movimento foi reprimido por forças militares, e o endurecimento da legislação britânica resultou em penas severas para os participantes do movimento. A verdade é que os artesãos sublevavam-se porque as máquinas lhes estavam a roubar o trabalho, colocando-os na miséria.

Em “A questão da técnica”, Heidegger interroga a essência da técnica. Nessa interrogação, a técnica ao ser tomada como questão, elimina à partida as suas possibilidades de investigação. Com efeito, a técnica se for tomada como objeto, pode eventualmente comportar uma investigação que nos leve à essência. Mas tampouco a técnica é submetida a um processo de conhecimento objetivo de modo a obter uma definição. Heidegger afasta algumas concepções habituais da técnica, para com isso libertar a sua essência. Mas não para nos apropriarmos dela, de modo a evitar o viés exclusivamente humanista. Seguindo o modelo aristotélico das quatro causas, é pelo sentido operatório - a causa eficiente - que se deve ir. Razão pela qual a ênfase recai sempre sobre a causa eficiente, que estaria mais propriamente ligada à produção de efeitos. Assim se constrói uma determinação instrumental da causalidade. Ora, a compreensão heideggeriana, a partir do significado grego de causa, caminha numa outra direção, em que a relação operacional de efetivação é substituída pela de comprometimento. As quatro causas devem ser vistas como comprometimento com a produção da coisa. Assim, a causa material corresponde à matéria de que algo é feito, uma espécie de compromisso entre uma certa matéria e a produção do objeto; na causa final, há uma espécie de compromisso entre a produção da coisa e a finalidade a que deverá servir. Na articulação das quatro causas, algo se mostra na sua matéria, na sua produção e na sua finalidade. Algo se desoculta, desvelando-se no seu modo de ser. E aquilo que tendíamos a entender como operação revela-se como um deixar acontecer. 

No funeral de Martin Heidegger, em 1976, Bernhard Welte, padre católico e professor de filosofia da religião na Universidade de Friburgo, pronunciou um breve discurso, em que descreveu o “caminho” de Heidegger como o daquele que foi “porventura o maior perscrutador deste século”. O pensamento de Heidegger, comentou também Welte, “abanou o mundo e o século”. Se a importância de um filósofo se mede pela quantidade de comentários que a sua obra recebeu e pela quantidade de traduções dos seus livros, a observação do Padre Welte é bastante exata. Escreveu-se mais livros e artigos, sobretudo de carácter devoto, acerca de Heidegger do que acerca de qualquer outro filósofo do século XX. Os seus livros foram traduzidos não só para português, francês, inglês, italiano e castelhano, mas também para árabe, chinês, croata, checo, japonês, coreano e diversas outras línguas. 

Ora, nessa altura, Rudolf Carnap, um eminente defensor do positivismo lógico, já cá não estava desde 14 de setembro de 1970, para continuar a escarnecer dessa ladainha que não podia ser nem definida nem verificada. E, portanto, Heidegger ainda teve seis anos para proferir várias conferências, pois tinha todo o caminho aberto para concluir que não podia ser derrubado pelos métodos tradicionais da verificação científica, mas podia ser sentido “imediatamente em momentos de angústia e vertigem”. 

"Sein = Nichts" podia ser escrita como uma equação, mas não era uma equação de resultado final nulo (nihil). ‘Nada’ significava uma presenteidade, um Ser-aí (Dasein). A negação do Nada é o Ser. Para Carnap, e já agora para os positivistas, uma tal frase seria a prova final da vacuidade de Heidegger. Mas para Heidegger era a sua compreensão pós-teológica da 'ontologia de Deus', para a sobrevivência do paradoxo da estranheza do mundo. Era uma forma de compreender o “Eu sou aquele que sou”, a unicidade do divino fora da teologia. Não significava a “morte de Deus” de um Nietzsche, mas sim um eclipse de Deus, dentro da esfera mística da humanidade. Em termos da integridade de um misticismo dramático, em termos da criatividade do pensamento, só, de facto, o podemos confrontar com outro grande pensador para enfrentar o mistério da existência: Wittgenstein. Não uma forma particular de existência, porque não faria sentido dizer: houve um tempo em que não existia nada. Perante o facto da existência, não pode haver nenhuma condescendência à exigência de prova, ou de testemunho. 

Richard Rorty foi um dos signatários de uma carta publicada no New York Review of Books em 2 de abril de 1981, defendendo as traduções Harper & Row das obras de Heidegger contra algumas críticas de Thomas Sheehan. A carta, que foi também assinada por Stanley Cavell, Hubert Dreyfus, Karsten Harries, John Haugeland e David Hoy, exprimia a gratidão ao editor e ao falecido Glenn Gray por tornar acessíveis aos leitores de língua inglesa as obras “deste filósofo imensamente importante e difícil”. Rorty, todavia, fez questão de sublinhar que não desculpava desta maneira a conduta de Heidegger, quanto ao seu filonazismo. Rorty não encontra palavras suficientemente fortes para condenar Heidegger, o homem. Este era uma “grandessíssima peste — um cobarde e mentiroso, do princípio ao fim”. Um “labrego megalómano anti-semita”. Heidegger tinha na verdade muito em comum com o próprio Hitler: “retórica racial, anti-semitismo, autodelusão... e o desejo de fundar um culto”. Nada disto, contudo, devia fazer a mínima diferença para o nosso ajuizamento da sua filosofia, e Rorty reitera a sua perspectiva de que Heidegger “foi o filósofo mais original que tivemos este século”. Temos simplesmente de compreender que, quer gostemos quer não, não se pode correlacionar a grandeza na filosofia com a decência e a bondade, como não o fazemos com a grandeza na matemática e na microbiologia. 

Há alguns anos, Anthony Quinton falou nas “solenes e disparatadas questões de lana caprina” de Heidegger. Até há bem pouco tempo, Heidegger não era levado a sério por filósofos no Reino Unido e nos Estados Unidos. Em 1969 a televisão alemã celebrou o octogésimo aniversário de Heidegger com uma série de palestras em louvor dos seus importantes feitos. Um dos oradores era o bem conhecido teólogo católico Karl Rahner. Dirigindo-se a Heidegger como seu “mestre”, disse aos telespectadores que embora tenha tido muitos bons “mestres-escola”, tinha apenas “um a quem podia chamar, reverentemente, professor”. Reconheceu agradecidamente que Heidegger “nos ensinou a ser capazes de procurar em cada coisa e em todas aquele segredo inefável que “nos subjuga". O “segredo inefável” que “nos subjuga [verflügt]” é o Ser de Heidegger.

Ao contrário de Rahner, Hannah Arendt não era teóloga nem sequer crente em Deus. Também não acreditava que houvesse um “segredo inefável” em cada coisa e em todas, mas deu-nos uma avaliação igualmente extática da façanha filosófica de Heidegger. “O vento que sopra através do pensamento de Heidegger, como aquele que ainda nos chega, após milhares de anos, das obras de Platão”, escreve, com uma incaracterística veia lírica, “não vem do século em que ele incidentalmente vive. Vem do primevo, e o que deixa para trás é algo perfeito, algo que, como tudo o que é perfeito (nas palavras de Rilke), regressa às suas origens”.

Há não muito tempo, era quase impossível encontrar um defensor de Heidegger entre filósofos anglo-saxónicos respeitáveis. Esta situação mudou nos últimos anos. Arroubos extáticos como os de Gadamer, Rahner ou Arendt são ainda raros, mas uma série de filósofos de algum renome aclamaram Heidegger como um dos grandes pensadores do século XX. Em destaque entre estes está indubitavelmente Richard Rorty, que tem amontoado encómios à obra de Heidegger desde o seu artigo “Overcoming the Tradition: Heidegger and Dewey”, originalmente publicado em 1974 na Review of Metaphysics e reimpresso no seu Consequences of Pragmatism (1982). No seu bem conhecido livro Philosophy and the Mirror of Nature, Rorty inclui Heidegger juntamente com Hegel, Marx, Frege, Freud e Wittgenstein, numa lista de “homens de génio que pensaram algo novo”.


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