sexta-feira, 31 de julho de 2020

O consumido(r) na Gramatologia de Jacques Derrida


Estava no restaurante Atena a beber um mazagrã (*) com o Carlos, enquanto esperávamos que chegassem os outros para almoçarmos, quando a certa altura ouvi da mesa ao lado - um fulano de meia idade, que conversava com outro um pouco mais novo, dizer: "Só a felicidade geral importa. A morte de um cientista a poucos dias de terminar uma investigação que traria a solução para o tratamento desta nova doença - a Covid-19 - seria sem dúvida uma morte pior do que a morte do maior corrupto da banca."

Resumindo: Enquanto o cientista prometeria trazer uma maior felicidade geral, o banqueiro, com um fartar vilanagem para luxúria pessoal, trouxe grande infelicidade para muitos. E eu pensei, ora aqui está um filósofo com uma perspetiva comparativista a avaliar o mérito pessoal da morte. A natureza do mérito levanta questões complexas. Será que a morte é mesmo um mal em termos absolutos? Ou será apenas em termos relativos? 

Há quem defenda que a morte nunca é um mal para quem morreu. É o repouso de um estado de potência. É um regresso ao estado antes de ter nascido. No entanto, quase toda a gente se comporta como sendo um mal. Na nossa inocência, ninguém quer morrer, e faz tudo o que esteja ao seu alcance para não morrer. Já para não falar que para muitos, a negação do mal da morte tem implicações morais. Porque se a morte não fosse um mal, estaria aberta a impunidade para matar. Nesse caso a sorte dos homicidas ficaria ao sabor: ou da impunidade; ou então também não haveria nenhum mal condená-los à forca. Mas estou a ser irónico.

Por causa do chamado "distanciamento social", já há alguns metodólogos a avaliar o aperto de mão: o efeito de não apertar a mão numa entrevista para a seleção de emprego; ou o não aperto de mão num encontro entre duas pessoas para fechar um negócio. E a forma como a outra pessoa nos aperta a mão antes de mais nada, pode fornecer-nos muita informação sobre essa pessoa e muitas vezes sobre o desfecho de um contrato ou um negócio. Sabe-se que nas entrevistas para selecionar pessoas, por exemplo, para uma determinada função profissional, as primeiras impressões contam muito. As razões para haver tantas frases feitas como "nunca terás uma segunda oportunidade de causar uma primeira impressão" é que isto é geralmente reconhecido como verdadeiro.


Dando uma vista de olhos na Gramatologia  de Jacques Derrida (**) – O advento da máquina e da técnica, reproduzindo processos que inicialmente começaram por ser uma sequência de gestos repetitivos do homem na transformação da matéria - chego à conclusão que é um dos exemplos, para Jacques Derrida,  da sua gramatização para a extrapolar à motricidade corporal em geral. Há que lembrar que no âmbito da gramatização de Jacques Derrida, a 'palavra' faz parte  dessa gramatização da motricidade corporal, na medida da utilização do sistema dos órgãos da fala – maxilares, língua, faringe e sopro pulmonar – para falarmos. A 'palavra' ocupa em Aristóteles um primeiro lugar naquilo a que ele chama o primeiro motor no seu sistema das quatro causas: material; formal; eficiente; final. Seria a quintessência. 

Derrida joga com conceitos de 'diferença' e 'desconstrução' para recorrer às metáforas da Física, o que lhe causou alguns dissabores quando os físicos perderam a paciência e resolveram ridicularizá-lo. Mas polémicas à parte entre académicos barricados na guerra das duas culturas: físicas e humanísticasQuintessência (quinta essência) é uma alusão a Aristóteles, que considerava que o Universo era composto de quatro elementos principais - terra, água, ar e fogo -, mais um quinto elemento, uma substância etérea que permeava tudo e impedia os corpos celestes de caírem sobre a Terra. Em 1998, três astrofísicos da Universidade de Pensilvânia - Robert Caldwell, Rahul Dave e Paul Steinhardt - reintroduziram o termo para designar um campo dinâmico quântico que é gravitacionalmente repulsivo.
A dinamicidade é a propriedade mais atraente da quintessência. O maior desafio de qualquer teoria de energia escura é explicar o facto de ela existir na medida exata.

O tempo passou, Aristóteles ficou para trás, até que no século XIX a gramatização mnemotécnica prosseguiu o desenvolvimento hipomnésico do Ocidente no modo industrial, a máquina a reproduzir a motricidade do corpo humano que o produtor fazia com as mãos, abria o mundo com as mãos desde o tempo do homo habilis. E de produtor e artesão passou a operário. E assim se proletarizou. E no século XX a caminho do XXI, a digitalização transformou-o completamente num consumidor da época hiperindustrial do capitalismo. O que teve por consequência agora também na proletarização do próprio consumidor. Um consumidor que, na sua própria subsistência, prefere comprar barato, ainda que esse barato seja à custa da escravização de Uigures forçados a trabalhar em campos de concentração.

Os filósofos franceses, os que se reclamam descendentes de Edmund Husserl, como é o caso de Jaques Derrida, malgré a linguagem deles ser uma 'linguagem de pássaros', que usa termos como o termo que agora vou usar – epoché – há muito que preconizam que o devir do sistema técnico necessita de um duplo redobramento epocal. Uma dupla interrupção do curso vulgar das coisas. Trata-se de uma mutação técnica em que é suspenso o estado de coisas que tem vigorado até aqui. E o aqui, e agora, pode designar-se por tempo pós-pós-moderno, que ainda não tem nome verdadeiro. Tal coisa, passaria por uma primeira epoché (uma primeira suspensão da ordem estabelecida); e seria preciso que a sociedade efetuasse depois uma segunda suspensão, para que se constituísse uma época propriamente dita, e esta sim, teria um nome verdadeiro.

No jargão da fenomenologia husserliana, epoché significa suspensão do juízo, que Husserl dizia: ‘pôr entre parênteses’. Seria a atitude de não aceitar nem negar uma determinada proposição ou juízo, no sentido de se opor ao dogmatismo que a aceita sem mais. Chamo a atenção que, ao contrário da epoché dos sofistas gregos, que chegavam a negar a existência, a epoché fenomenológica implica a "contemplação desinteressada" de quaisquer pressupostos naturais ou psicológicos da existência. Em outras palavras, a suspensão de juízo fenomenológica não põe em dúvida a existência. Os antigos céticos gregos emitiam juízos sobre a existência, ao ponto de duvidarem da nossa existência, ceticismo esse que serviu de mote a Descartes, do qual resultou a a tal sentença: "Penso, logo existo".

Assim, pelo que pensam estes filósofos franceses, das duas uma: ou se processa na sociedade ocidental este redobramento (duplo dobramento), e assim se afirmará uma nova vontade de futuro, que estabelecerá, portanto, uma nova ordem que se traduz num novo modo de vida; ou a não se verificar, será a decadência das democracias industriais desacreditadas. Segundo essas teses, o modelo industrial assente na divisão produção/consumo levou à ‘cretinização’ dos consumidores deliberadamente organizada pelo capitalismo, cujo pináculo da perfeição se concretizou na propaganda dos canais televisivos. É segundo esta doutrina que os que se reconhecem como os mais esclarecidos dos millennials, também conhecidos por geração Y, fazem questão de afirmar que não veem televisão.

Segundo tais doutrinas, a democracia hoje é uma farsa, em que os cidadãos subsistem, mas não existem. Mas até essa subsistência não será duradoura, porque a psyché do demos (o espírito do povo), que sobrepôs o pathos ao eros no movimento demencial das massas, conduziu inexoravelmente à liquidação do narcisismo primordial. E por sua vez, essa liquidação conduz à liquidação da lei, isto é, daquilo que constitui a condição de um demos: a diferença entre o facto e o direito. O modelo industrial caduco liquida assim o político e faz da democracia uma farsa da qual só podem surgir descrença e descrédito.

É viajando - não apenas pelo nosso pé, mas também pelo pé de outros que escrevem ou fazem reportagens filmadas, para depois as lermos ou as vermos através da Internet, ou na TV - que ficamos a saber que afinal não somos só nós os desenrascados, ou a dar a volta por cima. Por exemplo, basta passear pelas ruas de Quito, no Equador, para constatar a imaginação e a esperteza dos equadorenhos para ganhar algumas moedas e encher a barriga no fim do dia. Eu pergunto: como é possível viver com tão pouco? Mas, se calhar, eles perguntariam como podemos viver nós com tanto. Para quê? Nas ruas de Quito um massagista espera por clientes ao ar livre. Tem uma cadeira de plástico para os sentar ali, no meio do passeio a atrapalhar os transeuntes, e tratar-lhes dos entorses e torcicolos. Em janeiro, um dos meses mais quentes e húmidos do ano no Equador, rapazes e raparigas vendem limonadas, com o garrafão numa mão e os copos de plástico na outra. Questões de higiene à parte, miúdos indígenas, provavelmente descendentes dos Incas, sentam-se na berma da estrada de um lado e do outro com uma corda de sisal a atravessar a estrada, a fazer de portagem. Os carros param, eles pedem dinheiro, e sempre acabam por receber alguma coisa. Quito é património da UNESCO desde 1978.

Muitas pessoas estão preparadas para tudo. Esse é o paradoxo dos preparativos. Preparamo-nos, quer para viver o dia-a-dia, quer para não viver. De um dos lados temos aqueles para quem o mundo é essencialmente seguro e ordenado. Do outro temos aqueles para quem o mundo é o caos, regulado pelo Acaso, onde o perigo espreita na próxima esquina da vida. Lucrécio, no De Rerum Natura, descreve que o Universo é formado por milhões de átomos em movimento, e que o comportamento desses átomos é suscetível de saltos bruscos. É assim que o mundo funciona, previsível só até certo ponto, mas profundamente imprevisível a partir daí. Um pouquinho de negligência de Deus, para com as criaturas, não foi mau de todo, porque senão, como havíamos de ter livre arbítrio?

(*) Mazagrã, nome masculino, é uma bebida fria de café adoçado que teve origem na Argélia. Na versão portuguesa: gelo picado, açúcar, limão, um café expresso e água das pedras. Jacques Derrida nasceu na Argélia. Fica ao critério do leitor decidir se foi coincidência ou não.

(**)  Gramatologia  de Jacques DerridaObra de referência no debate crítico sobre o conjunto do pensamento ocidental – o 'logocentrismo' – a Gramatologia (ou ciência de possibilidade de ciência) visa o rompimento dessa condição 'logocêntrica', mantida e alimentada dentro de uma conceção estrita de 'escritura'. À procura de uma conceção mais ampla, que abarque um sistema total, aberto a todas as cargas de sentidos possíveis, Derrida coloca em questão mais uma vez a discutível oposição forma/conteúdo, examinando-a tal como ressurge dentro da linguística a partir de Saussure.

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