quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A América já não é o que era?



No meu tempo de existência, John Fitzgerald Kennedy foi o presidente que de modo consistente e sistemático, mais pensou a sua ação política no quadro do respeito por uma tradição e uma cultura políticas. Mas agora é a insídia, a ignomínia, a corrosão. Donald Trump não podia estar mais nos antípodas relativamente à matriz fundacional da América. Uma afronta à memória dos seus fundadores. 

Já depois da formação dos EUA, a tradição constitucional americana foi um dos principais produtos de exportação do país. Ainda antes da existência da atual Constituição Federal, elaborada pela Convenção de Filadélfia em 1787, o conjunto das Constituições estaduais, traduzidas em França, pela mão de Benjamin Franklin, que representou junto da corte de Luís XVI os interesses do novo país, serviria de inspiração na produção da primeira Constituição francesa depois da Revolução, aprovada em 1791.

Os Estados Unidos da América nascem de uma união de treze estados que uniram esforços para se tornarem independentes do Reino Unido. Finda a guerra da independência em 1783, vieram ao de cima as deficiências estruturais. Havia o Congresso, mas não tinha capacidade para conduzir uma política com impacto de nível federal. Os Estados viviam em competição permanente, procurando fazer valer as suas prioridades económicas, políticas e sociais. Foram estas circunstâncias que levaram à realização de uma Convenção em Filadélfia, em 1787, da qual resultou uma Constituição Federal que entrou em vigor em 1788.

O poder legislativo ficou entregue a um Congresso, formado por um Senado e por uma Câmara dos Representantes, muito diferentes na sua composição. A Câmara dos Representantes constituída por membros eleitos diretamente pelo povo dos diversos Estados, em proporção com o tamanho populacional de cada Estado. As eleições são bienais desde o início, apesar das várias críticas a um sistema que coloca os representantes num estado permanente de candidato. Para o Senado, apenas substituindo um terço em cada ato eleitoral, também de dois em dois anos, do que resulta que cada terço só vota a ir a votos passado seis anos. E por outro lado, quem elege o Senado não é o povo diretamente, mas o parlamento de cada Estado. Este sistema tem em vista um corpo mais preparado, que ao mesmo tempo permite reforçar a lealdade dos senadores em relação aos seus respetivos Estados. Cada estado, todos igualmente, independentemente do seu tamanho, elegem dois senadores.

Ao Presidente dos Estados Unidos compete o poder executivo. E também é o chefe supremo das Forças Armadas. É eleito de quatro em quatro anos, podendo fazer dois mandatos. Mas quanto ao número de mandatos nem sempre foi assim. Houve épocas em que era possível mais de dois mandatos. Ora, o processo eleitoral do Presidente é singular, pois para ter ao mesmo tempo legitimidade popular, e estar de harmonia com o caráter federal, a eleição passa pelo chamado Sistema do Colégio Eleitoral, em que a cada estado cabe um número específico de eleitores. O Colégio Eleitoral é hoje composto por 538 membros. Significa isto que para vencer a presidência, um candidato necessita de conquistar pelo menos 270 votos eleitorais. Em cada Estado, o candidato vencedor leva todos os mandatos. Este sistema tende a valorizar a votação dos estados mais pequenos e menos populosos. Para efeitos práticos, cada cidadão do Alasca ou do Delaware tem uma maior influência do que cada cidadão do Texas ou de Nova Iorque. Assim, nem sempre é vencedor o candidato que teve maior número de votos populares, porque o que determina é o esquema do Colégio Eleitoral. Como o candidato que recebe a maioria dos votos em cada estado conquista a totalidade dos votos do Colégio Eleitoral, os votos do candidato derrotado não contam para o resultado.

Para completar o edifício institucional da soberania dos Estados Unidos, há ainda três complementos ao sistema: o poder judicial, a Carta de Direitos e as autoridades estaduais. O Supremo Tribunal tem por missão zelar pela aplicação dos preceitos constitucionais, mas também de ajuizar litígios interestaduais. A Carta de Direitos reforça a capacidade dos tribunais para vigiarem a ação dos órgãos legislativo e executivo, e assim protegerem os cidadãos contra eventuais abusos de poder. Os governantes estaduais e demais instituições dos vários estados constituem uma partilha de soberania entre o poder local e o poder federal, contribuindo assim para todo um sistema de equilíbrios, traduzido na conhecida designação de checks and balances.

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