domingo, 20 de setembro de 2020

Memória de Elefante - António Lobo Antunes

António Lobo Antunes, no seu primeiro romance - Memória de Elefante, 1979 - relata um dia da vida de um médico psiquiatra, regressado de Angola onde havia cumprido no final dos anos 60 a sua missão como médico militar na chamada guerra do ultramar. É um romance com ressonâncias joyceanas, como o Ulisses, narrado na terceira pessoa (pelo autor narrador), mas com bastantes interferências da primeira pessoa através de falas do médico, ou comunicação dos seus pensamentos. É a história começa logo de manhã no Hospital Miguel Bombarda, onde exerce clínica. E termina às cinco da manhã do dia seguinte numa varanda frente ao mar do apartamento do Monte Estoril onde habita, depois de uma noite passada com uma prostituta. 

A narrativa romanesca de António Lobo Antunes apresenta uma concatenação prosódica que faz muito do seu estilo e estesia. É por isso que Lobo Antunes não esgota a velha questão da prosa poética e da poesia em prosa. É a prosódia do texto que modela o enunciado poético de modo a que ele nos pareça como tal. Lobo Antunes é original no modo como o caráter vincadamente romanesco adquire marcas poéticas, não apenas pela qualidade lírica que por vezes assume, mas pelo tipo de tratamento que a sua ficção admite. O autor é o primeiro a entender os seus romances como possíveis textos poemáticos.

A prosódia tem a ver com a vertente de proferição, o que dá para perceber quando lemos, pelo menos certas partes do texto, em voz alta. Tal como na poesia, faz toda a diferença na nossa entrada no encadeamento do texto pela via sonora. É ao-fim-e-ao-cabo a matriz da nossa linguagem que foi para ser falada e entrar pelos ouvidos. A escrita é já um novo estádio da nossa evolução, que deu a primazia à visão, e à invenção da escrita.

Foi a partir deste entendimento que surgiram as controversas questões pontuadas pela pergunta: afinal o que é a literatura? Ritmo e musicalidade tende a desaparecer na literatura. Nada que se pareça com as narrativas dos antigos bardos dos tempos dos primeiros celtas irlandeses, ou dos tempos homéricos.

Ler memória de elefante hoje, um romance de 1979, ainda surpreende pela sua frescura. Independentemente do seu forte caráter autobiográfico, o que avulta é o uso da metáfora insólita num constante tom humorístico. Diálogos desconcertantes, exacerbando o grotesco, projetam no leitor imagens fabulosas manifestadas pela expressão discursiva numa torrente incessante de desdobramentos.

Em resumo: A intriga é centrada numa personagem referida como "o médico psiquiatra", mas nunca aparece o nome, o que chama a atenção desde logo para a questão do romance ter um forte cunho autobiográfico. António Lobo Antunes é, de facto, médico psiquiatra, e fez a guerra colonial em África. 




Respigos

Percorre a autoestrada e a Marginal. Menção do senhor Ferreira, porteiro do prédio do seu apartamento, e da tapeçaria dos tigres. Passa por Caxias, pelo Mónaco. Lembrança da gaivota que, na semana anterior, viera morrer contra o para-brisas. Segue em direção do Casino.
Todas as noites, aproximadamente àquela hora, o psiquiatra fazia o percurso da autoestrada e da Marginal para voltar ao pequeno apartamento desmobilado onde ninguém o esperava, empoleirado no Monte Estoril num prédio excessivamente luxuoso para a sua timidez. A secretária do porteiro, no átrio enorme de vidro e de metal, com um lago, plantas de Jardim Botânico e vários desníveis de pedra, possuía um painel de botões através dos quais uma voz sem corpo de Juízo Final ecoava nos diversos andares os seus mandamentos domésticos, com sonoridades divinas de balde roto ou de garagem à noite.
O médico quedava-se sempre de auscultador em punho, esquecido da chamada, a examinar estupefacto tão abracadabrante realização. A mulher do senhor Ferreira, que nutria por ele a simpatia instintiva que despertam os órfãos, saía da cozinha a enxugar as mãos ao avental: "Muito gosta o senhor doutor dos tigrezinhos." E postava-se ao lado do psiquiatra, de cabeça à banda, a contemplar orgulhosamente os seus bichos, até o senhor Ferreira surgir por seu turno e debitar, na célebre voz divina, a frase que resumia para ele o clímax da admiração artística: "Esses sacanas até parece que falam."

Desembocou em Caxias com as ondas a pularem sobre a muralha em cortinas verticais. Não havia lua e o rio confundia-se com o mar no espaço negro à sua esquerda, gigantesco poço deserto de luzes de navios: os candeeiros vermelhos do Mónaco assemelhavam-se, atrás dos vidros húmidos do restaurante, a fanais anémicos na tempestade: jantei aqui quando me casei, pensou o psiquiatra, e nunca mais houve um jantar miraculoso assim: até da carne assada subia um gosto de surpresa; no fim do café descobri que não era necessário, pela primeira vez, levar-te a casa, e isso disparou-me nas tripas uma alegria formidável, como se tivesse começado, a partir de então, a minha vida de homem, aberta apesar da iminência da guerra numa vigorosa perspectiva de esperança. Lembrou-se do automóvel que a avó lhes emprestara para a lua-de-mel e que fora o último carro do marido e do seu trabalhar ronceiro de berço, lembrou-se da impressão esquisita da aliança no dedo, do fato que estreara nessa tarde e do seu cuidado patético com os vincos. Amo-te, repetia ele em voz alta agarrado ao volante como a um leme quebrado, amo-te amo-te amo-te amo-te amo-te, amo o teu corpo, as tuas pernas, as tuas mãos, os teus olhos patéticos de bicho: e era como um cego continuando a conversar com uma pessoa que saiu pé ante pé da sala, um cego aos berros para uma cadeira vazia, tacteando o ar, palpando com as narinas um odor que se evaporava. Se vou agora para casa fodo-me, disse ele, não me acho em condições de enfrentar o espelho do quarto de banho e aquele silêncio todo à minha espera, a cama fechada sobre si própria à maneira de um mexilhão pegajoso. E recordou-se da garrafa de aguardente da cozinha e que podia sempre sentar-se no banco de madeira da varanda, de copo na mão, a ver o modo como os prédios desciam de cambulhada para a praia, arrastando os seus terraços, as suas árvores, os seus jardins torturados: acontecia-lhe adormecer ao relento, de cabeça encostada ao estore, com um barco que saía da barra a viajar-lhe dentro das pálpebras cansadas, e lograr desse jeito alguma espécie de sossego, até que um indício de claridade roxa, misturada com pardais, o despertasse obrigando-o a tropeçar na direcção do colchão à laia de criança sonâmbula para o seu chichi nocturno. E ao banco da varanda aderiam excrementos solidificados de pássaros, que arrancava com as unhas e sabiam ao cré da infância, devorado às ocultas no decurso das breves ausências da cozinheira, ditadora absoluta daquele principado de caçarolas.
Frente ao casino - no topo de uma espécie de Parque Eduardo VII em ponto pequeno - a noite marítima, os comboios e os versos de Dylan Thomas. O jogo no Casino. Recordação da tia Mané, que gostava de jogar. A mulher do leopardo de plástico.

No topo de uma espécie de Parque Eduardo VII em ponto pequeno bordado de palmeiras hemofílicas cujos ramos rangiam protestos de gavetas perras, de hotéis de Visconti habitados por personagens de Hitchcock e de guardadores de automóveis manetas, de olhos de fome escondidos nas palas dos bonés como pássaros ávidos presos na rede franzida das sobrancelhas, o edifício do Casino assemelhava-se a um grande transatlântico feio adornado entre vivendas e árvores, batido pelas ondas de música do Wonder-Bar, pelos gritos de gaivotas roucas dos croupiers e pelo enorme silêncio da noite marítima em torno de que subia um odor denso de água de colónia e de mênstruo de caniche. Os comboios partindo para Lisboa da estação do Tamariz levavam consigo, nos bancos vazios, os versos desse Dylan Thomas de que tanto gostavas. 
Dylan Thomas foi o tipo de quem tive até hoje mais ciúmes, pensou o psiquiatra abandonando o automóvel à sombra protectora de um autocarro de turistas, cujo condutor explicava a um chofer de táxi maravilhado os méritos íntimos das francesas de uma certa idade, capazes de tornarem o coito leve e de fácil digestão como um suflé de espargos. Odiei desesperadamente Dylan Thomas e os poemas tumultuosamente convincentes com que esse gordo bêbado ruivo viajava contigo a países interiores a que eu não possuía acesso, vizinhos dos sonhos de que me chegavam esbatidos ecos através das palavras soltas que mastigavas num êxtase de sereia naufragada. Odiei Dylan Thomas sem que o soubesses sequer, disse o médico caminhando sobre a relva húmida da noite na direcção do convés do Casino e dos seus tripulantes mascarados de grooms majestosos trocando cinzeiros em gestos lentos de vestais, odiei esse rival defunto vindo do nevoeiro das ilhas do norte com um sorriso de corsário pensativo nas bochechas inocentes, esse sacana galês que rebentava os grossos diques da linguagem com ventosas frases cheias de sinos e de crinas, esse amante de espuma, esse fantasma de sardas, esse homem que morava numa garrafa de uísque como os barcos dos coleccionadores, ardendo na sua chama de álcool com dolorosa graça de fénix refractária. Caitlin, disse o psiquiatra trocando com o porteiro cabalísticos sorrisos vagos de Chirico, Caitlin de Nova Iorque te chamo under the milk wood neste novembro de 1953 em que morri, com uma ilha a desvanecer-se na paisagem da cabeça cercada pela raiva voraz dos albatrozes, Caitlin um dia destes desço ao Tamariz e tomo um comboio eléctrico para o país de Gales onde me esperas diante de um chá tão triste como a cor dos teus olhos, sentada na sala em que nada mudou, com um espesso fumo de pub a separar-te, sólido, da pressa dos meus beijos. Caitlin este mugido aflito de farol é o meu berro de boi saudoso que te procura, este apito modulado de locomotiva o canto de amor que sou capaz, este barulho de tripas um comovido sobressalto de ternura, estes passos na escada o meu coração ao teu encontro: vamos voltar ao princípio, passar a vida a limpo, recomeçar, jogar crapaud ao serão, beber licor de ginja, deixar o caixote do lixo lá fora, num estrépito de palhaço pobre, entre o espanto dos vizinhos e dos gatos, abrir uma lata de caviar e comer lentamente os grãozinhos de chumbo até que, tornados cartuchos de caçadores furtivos, disparemos um para o outro no fogo-de-artifício de uma explosão final, e será um pouco essa, Caitlin, a nossa maneira de partirmos.
O médico trocou duas notas de conto de réis em fichas de quinhentos escudos e instalou-se na sua banca francesa favorita, quase vazia de parceiros por estar a dar jogo irregular. Sentia nas costas o frenesim das mesas de roleta, cuja morosidade o impacientava, com os croupiers contando intermináveis pilhas de fichas e um cortiço de apostadores à volta, inclinados para o pano verde num apetite de louva-a-deus. O psiquiatra reparou especialmente numa inglesa muito alta e muito magra, com um vestido de alças dependurado do cabide das clavículas, reluzente ainda de cremes para o sol, as mãos esqueléticas a escorrerem fichas que colocava sobre os ombros dos outros em gestos angulosos de grua. O croupier anunciou Pequeno, o pagador recolheu as fichas perdentes e dobrou as ganhantes: o médico viu que a mulher sentada à sua esquerda anotara três pequenos seguidos depois de dois grandes, de modo que empurrou quinhentos para a zona do Grande e ficou à espera. Primeiro apalpar, disse-se ele, conforme a técnica da minha mãe na praça: ao menos que o tanto tê-la visto regatear fruta de alguma coisa me sirva. E sorriu de imaginar o que a mãe, criatura prudente e comedida, julgaria se o topasse ali arriscando quantias que ela considerava exorbitantes, deitando-se tarde para chegar ainda mais tarde ao hospital no dia seguinte, a descer velozmente o plano inclinado de uma ruína segura: histórias trágicas de fortunas evaporadas no Casino corriam tetricamente nos serões da família, narradas em tom cavo pelos aedos da tribo. A tia Mané, octogenária histórica cujo sorriso abria um ziguezagueante caminho através de pinturas e de cremes ressequidos, sumira as pratas da casa ao bacará e utilizava uma cautela de penhor em lugar de bilhete de identidade. – Pequeno, disse o croupier pousando o copo dos dados e embrenhando-se de imediato em conversa sussurrada com o fiscal, de cabeças docemente inclinadas como apóstolos da última Ceia: Jesus e S. João partilhando as delícias do Espírito Santo. O pagador retirou a ficha do médico numa manobra destra de língua de camaleão caçando uma mosca imprevidente. A mulher anotou, conscienciosa, o Pequeno, era gorda e loira, já gasta, e usava um casaco de peles sintético nos ombros moles: o perfil dela assemelhava-se ao de Lavoisier no retrato oval do livro de Física do 4.o ano do liceu, e jogava duzentos e cinquenta escudos de cada vez na determinação raivosa de quem perde obstinadamente. Do lado oposto da mesa uma velha coçada atirava vinte escudos teimosos para os ases na esperança de um milagre. Dois sujeitos com ar de mestres-de-obras prósperos hesitavam de fósforo nos dentes: a pastilha elástica dos naturais de Tomar, pensou o psiquiatra apostando de novo no Grande, chocos com tinta, Mercedes Diesel amarelo torrado e Vila Mélita na fachada da casa. A mulher do leopardo de plástico absteve-se. Saiu um 12, um 13, um 14, um 12, um 18: os mestres-de-obras colocaram cinco mil escudos cada no Pequeno. Um rapaz ruivo surgiu da nuca do médico e lançou quinhentos no Grande: já me fodi, pensou o psiquiatra sem razão aparente a não ser um aperto avisador no esófago. Estendeu o braço para o seu dinheiro e ia pescá-lo quando o croupier levantou o queixo e disse Pequeno com uma indiferença cruel. Croupiers e analistas puta que vos pariu.
A mulher gorda sorriu-lhe: faltava-lhe um incisivo em cima e possuía as gengivas pálidas de Vasco da Gama ao quadragésimo dia de avitaminose. "Grande, proclamou o croupier que se ria respeitosamente de uma piada qualquer do fiscal." É curioso como as graças dos superiores têm sempre humor, verificou o médico repetindo a frase surpreendida de um irmão seu a quem a bajulice espantava como um fenómeno incompreensível: o pagador debruçou-se para o croupier que lhe repetia a anedota do chefe, o qual aprovava gravemente com um sorriso solene, ajeitando o ângulo dos colarinhos: "É ou não é, Meireles?" O Meireles, que trocava fichas a um corcunda, ergueu as sobrancelhas sem levantar os olhos do trabalho, na careta entendida com que as tias do psiquiatra respondiam, durante a contagem das malhas do tricot, às perguntas dos sobrinhos. Será que cresci, que cheguei realmente a crescer, interrogou-se o psiquiatra correspondendo com o joelho à pressão de anca da mulher do leopardo de plástico, a avaliá-lo de viés com lenta pálpebra sabida, cresci de facto ou permaneci um puto assustado de cócoras na sala entre gigantescas pessoas crescidas que me acusam, fitando-me em silêncio numa hostilidade horrível, ou tossindo de leve, a coberto de dois dedos, a sua desaprovação resignada? Dêem-me tempo, pediu ele a essa roda de ídolos da Ilha de Páscoa que o perseguia de um amor ferozmente desiludido, dêem-me tempo e serei exactamente o que vocês desejam como vocês desejam, sério, composto, consequente, adulto, prestável, simpático, empalhado, miudamente ambicioso, sinistramente alegre, tenebrosamente desingénuo e definitivamente morto, dêem-me tempo, give me time […]
Tempo, repetiu o médico, necessito imperiosamente de tempo para me vestir de coragem, colar todos os meus ontens no álbum de retratos. A mulher gorda pousou-lhe no braço as unhas compridíssimas vermelhas escuras: o punho dela, idêntico ao de um lagarto ressequido, ornava-se de uma pulseira símile-filigrana, com uma enorme medalha de Nossa Senhora de Fátima tilintando contra uma figa de marfim, e o psiquiatra sentiu-se prestes a ser devorado por um réptil terciário em cujas mandíbulas o sangue do baton revelava claramente monstruosas intenções assassinas. Os olhos do dinossauro fixavam-no na intensidade postiça do rímel, sob as sobrancelhas depiladas até à espessura de uma curva de tira-linhas, e o peito subia e descia numa cadência de guelra, conferindo aos seus múltiplos colares o balançar de rins dos botes ancorados. Os dedos treparam aracnideamente a manga do médico beliscando-lhe de leve o polegar, enquanto a coxa absorvia completamente a sua e um salto aguçado lhe premia o pé, a arrancar-lhe o calcanhar numa carícia malévola. O corcunda, instalado à esquerda, chupava ruidosamente pastilhas para a garganta disseminando no ar um aroma de inalações de asmáticos: se eu fechasse com força as pálpebras por um segundo poderia supor-me sem esforço no quarto de Marcel Proust, escondido atrás da pilha de cadernos manuscritos da Recherche du Temps Perdu: c’est trop bête, assim costumava ele definir o que escrevia, je peux pas continuer, c’est trop bête. Querido tio Proust: o papel de parede, a lareira, a cama de ferro, a tua difícil e corajosa morte: mas achava-me na realidade instalado a uma mesa de jogo do Casino, e a solidão roía-me por dentro como um ácido doloroso: a ideia da casa vazia apavorava-me, a solução de tornar a dormir na varanda fazia-me gemer de antecipados lumbagos. De alma em pânico enxotei a derradeira ficha para o Grande: se ganhar vou direito ao Monte, enfio-me nos lençóis e masturbo-me a pensar em ti até o sono vir (receita de sucesso relativo); se perder convido esta jibóia idosa para uma orgia modesta de acordo com o casaco de plástico dela e os meus jeans no fio, e à medida de um fim de mês penoso: ignorava sinceramente qual destas duas catástrofes escolher, dividido com horror idêntico entre o isolamento e o ofídio.
Conversa monologada da prostituta que trouxe do Casino. Levá-la no carro em direção a uma boite onde comem e dançam.

"Você tem mesmo a certeza de que é médico?" Perguntou-lhe o ofídio olhando-lhe com desconfiança os jeans rapados, a camisola gasta, a desordem descuidada dos cabelos. Estavam ambos no pequeno automóvel do psiquiatra (Não sei se caibo nesta coisa), junto ao impressionante autocarro de turistas que recebia de volta a sua carga de americanas velhas em vestidos de noite, de óculos suspensos do pescoço por fios de prata como as chuchas dos bebés, acompanhadas de sujeitos rubicundos parecidos com o Hemingway dos retratos finais. "Eu não costumo desconfiar das pessoas mas nunca se sabe", acrescentou ela examinando policialmente a cédula profissional que o outro lhe estendia, e já vou tendo a minha conta de barretes. Acredita-se acredita-se e vai na volta truca: passa para cá a carteira ó ai ó linda e fica-se na estrada a ver navios. Você desculpe, não é nada consigo, paga o justo pelo pecador como dizem os padres e nunca é demais acautelar. Tenho um primo por parte do meu pai enfermeiro em São José, no Serviço Um, o Carregosa, conhece? Baixo, forte, careca, um bocado gago, maluco pelo Atlético? Usa o emblema por cima da bata, jogou nos juniores, a mulher dele entrevou-se, só diz raisparta raisparta? O senhor perdoe as minhas prudências mas o Mendes dizia-me sempre: Dóri (chamo-me Dóri) põe-te a pau com os estranhos que mais vale prevenir do que remediar, até ouvi essa a uma senhora que tirou os peitos no instituto do cancro, apanhava malhas, agora apanha balões de soro, está quase tão mal como o Mendes, coitado, que depois da revolução teve de emigrar para o Brasil que remédio, deixou-me uma carta querida a garantir que me mandava para ao pé dele, que nunca gostara de ninguém como me amava a mim, era só uma questão de meses até arrumar a vida dele e pronto, mulatas nem vê-las que cheiram mal. Mais mês menos mês tomo o boingue para o Rio de Janeiro, ele é doutor de finanças e económicas não vai secar sem sacar emprego que nunca vi competência como o Mendes, trabalha que nem cão o desgraçado apesar de fraquinho dos pulmões e ao depois não é só isso, é a delicadeza, os modos, a forma de tratar uma mulher, adivinha o que a gente quer, nunca me bateu, quase todas as semanas eram flores, eram jóias, eram jantares no Comodoro, eram cinemas. Eu dizia-lhe, é claro, ó filhinho não é necessário tanto luxo mas o Mendes sabia que eu me pelava, não fazia caso, era um santo de altar, estou a vê-lo com as patilhas muito bem tratadas (dei-lhe uma filichaive no Natal), a camisa rosa negra impecável, o verniz das unhas a brilhar. Pausa. "Porque é que você não põe uma gravata de seda natural, um casaco piêdepule, fixador brilcrime na cabeça? Nunca vi um médico tão mal amanhado, tão à mecânico, os doutores devem de ter representação, não é, quem é que se quer tratar com um psiquiatra pope esgadelhudo? Eu quando vou à caixa exijo respeito, seriedade, percebe-se logo pela cara das pessoas se são competentes ou não, não achas, os especialistas como deve de ser usam colete, têm bêémedablius prateados, casas com lustres, torneiras doiradas que são peixes a deitar água, entra-se lá nota-se o dinheiro que o quinane anda pela hora da morte, diga-me lá o que se faz hoje na vida sem dinheiro, eu sem dinheiro sinto-me a morrer, é a minha gasolina, topas, tirem-me a minha carteira de crocodilo e fico perdidinha da silva, estou habituada aos luxos que é que queres, talvez não acredites mas o meu pai era professor de veterinários em Lamego."

Tirou um Camel de contrabando de uma horrorosa bolsa de cartão imitação de jacaré, acendeu-o com um isqueiro de baquelite a fingir tartaruga. O psiquiatra reparou que os sapatos dela, de tacões inacreditavelmente altos, necessitavam de meias solas, e que grandes vincos sem graxa estriavam o cabedal no peito do pé: saldos da Praça do Chile, diagnosticou ele. As raízes das madeixas loiras nasciam grisalhas no local da risca, e o pó-de-arroz tentava sem sucesso mascarar as múltiplas rugas fundas ao redor dos olhos e ao longo das bochechas moles, pendentes do queixo em cortinas flácidas de carne. Devia trazer as fotografias dos netos (a Andreia Milena, o Paulo Alexandre, a Sónia Filipa) no porta-moedas. "Para a semana que vem faço trinta e cinco anos, informou ela com descaro. Se prometeres pôr um smoquingue e levar-me a jantar a um restaurante decente o mais longe possível dos Caracóis da Esperança, convido-te: desde que o Mendes se foi embora tenho um vazio no coração." E apalpando-me o ombro:

"Sou uma pessoa muito afectuosa, chiça, não sei viver sem amor. Tu não deves ganhar mal, hã, os médicos esfolam, se te arranjasses, te penteasses, comprasses um fatinho na Avenida de Roma talvez ficasses jeitoso embora isso para mim, o dinheiro, o aspecto, não tenha importância nenhuma, são os sentimentos que me interessam, a beleza da alma não é? Um homem que me trate bem, me leve a passear a Sintra aos domingos e chega para eu andar feliz como um canário. Sou muito alegre percebes?, muito sossegada, muito caseira. Eu cá meu filho pertenço ao género amor e uma cabana, o meu banho de espuma, a minha depilação das pernas, conta aberta na pastelaria, não exijo mais. Tens aí duzentos escudos que me emprestes para o táxi para Lisboa que comboios, comigo, santa paciência, tens duzentos escudos com certeza, deves ganhar bem, és um cavalheiro, não aguento caramelos que não sejam cavalheiros, olha que gandulos sempre com a caralhada na boca puta que os pariu. Desculpa falar-te assim mas é que eu sou franca, não sou gaga, sei o que digo, a bem tudo a mal nada e ao depois simpatizo contigo, posso dar-te muitos gozos se gostares de mim, me compreenderes, me pagares a renda da casa, eu quero é dedicar-me, ter alguém que me leve ao cinema e ao café, me pague a renda da casa, me trate como deve de ser, goste do meu basset, me aceite. Por acaso podíamos ser felizes os dois, tu e eu, não achas, quando é que deslizas os duzentos bagos? Tens medo que isto seja conversa da fiada? Ó filho eu paixões é à primeira vista, não há nada a fazer, caíste-me no goto, deixa cá pôr os óculos para te observar melhor, te amar ainda mais."
Tirou primeiro um estojo, voltou a empurrá-lo para o fundo da carteira (Poça estes são os de longe) e extraiu de uma confusão de lenços de papel, de bilhetes de eléctrico e de documentos amarrotados, um par de lentes grossas como um caleidoscópio atrás das quais as pupilas desapareceram, dissolvidas na espessura do vidro: o psiquiatra sentiu-se examinado por um microscópio de má qualidade.
"Ai filho mas tu és novíssimo, exclamaram as dioptrias espantadas, tens para aí a minha idade, trinta e três, trinta e quatro o máximo, não? Apostava duzentas e cinquenta de percebes que tens trinta e quatro, eu nisto de anos nunca me engano, se fosse assim com o totobola já tinha aberto uma butique no Areeiro há mais de um colhão de séculos, o Mendes jurou-me pelos ossos do irmão que está debaixo da terra que me punha uma na Penha de França e logo haviam de vir os comunistas a roubar a gente, a enrabar isto tudo, foi-se o projecto por água abaixo mas se pensas que desisti estás mais enganado que um marido, aqui a Dóri é teimosa dos cascos, no amor e nos negócios sou um cão de fila, não largo, tenho a dentuça afiada. Olha lá a propósito quanto é que tens no banco, para cima de cem contos não, confessa-te aqui à Dóri, se quisesses abríamos um cabeleireiro de sociedade, Salão Dóri ficava giro não achas, letras luminosas cá fora, decência, clientela rica, empregadas escolhidas a dedo, música de fundo, cadeiras de veludo, uma coisa como no cinema, eu ficava à caixa que o meu forte é o comércio, estive dez anos na capelista do Mendes e nunca dei prejuízo à Havaneza de Arroios, fechou porque tinha de fechar, os negócios gastam-se, topas, é como a pila dos homens, a tua deve estar toda gastinha meu marau mas a Dóri compõe, é preciso é a gente saber tocar guitarra de uma corda só, e ao depois os fornecedores da Havaneza metiam a unha como o caneco e aconteceu-me encontrar o Leal, um que cantava na rádio conheces com certeza, esteve vai não vai para ir à televisão, dedicou-me músicas lindas, género romântico, até chorei já vês, uma estampa de moço apessoado não desfazendo, chegaram a convidá-lo para uma fotonovela da Crónica, a história de um engenheiro filho de uma condessa que gosta da criada da mãe que afinal é neta de um marquês e não sabia, o marquês morava em Campo de Ourique numa cadeira de rodas, eu bem que insisti com ele Ó Leal tu aceita-me, tu aceita-me o furo que andas aos caídos e tens cara de engenheiro mas o rapaz tinha orgulho e fodeu-se por isso, ainda se fosse um filme respondia-me ele, ainda se fosse um filme ia pensar desde que me deixassem dormir a sesta, um filme indiano, tinha aquela mania dos filmes indianos, quem o quisesse encontrar que o procurasse à saída do Aviz, parecia-se com o Arturo de Cordoba e com o Tony de Matos, a mesma voz, os mesmos caracóis bem penteados, a cintura assim fininha, fazia pesos e halteres às terças e quintas no Ateneu, em Caxias e na praia era uma razia nas pequenas, o Mendes aceitou a coisa, perdoou-me, ele sabia do meu temperamento e perdoava, o Leal casou-se com a dona de uma ourivesaria da Amadora, uma cabra safada que nem mamas tinha viúva de um embarcadiço que chupou umas lecas da merda no contrabando dos rádios, se calhar dava a cona da mulher no porta a porta, eu andei a pastilhas para dormir um mês, só suspirava, até o gosto pelo folhetim perdi, o Mendes fazia-me chá de tília, pobrezinho, aconselhava-me com bons modos, ó Dóri se o médico do coração deixar vou para a ginástica do Ateneu, sofria de angina do peito, coitado, para subir as escadas era uma desgraça, desatava logo a arfar, sei lá mais de quantas vezes se me ia ficando em cima, ó Dóri deixa lá que tens aqui o teu Riquinho, o Mendes chamava-se Reinaldo, Reinaldo da Conceição Mendes mas eu tratava-o por Riquinho porque ele gostava, emagreci cinco quilos com a infelicidade, ah conho que se pilhasse a ramelosa partia-lhe um chifre com os dentes, fressureira de um corno, puta esquentada, estoirou este outubro de um aneurisma abençoado, paguei uma missa de acção de graças no Beato, fiquei com a rata aos saltos para o resto da vida, o padre a latinar no altar e eu a dizer de joelhos Mal tu sabes pelo que é que rezas meu magano, viva o Benfica que já cá não está quem me enrabou." 
O médico alcançou a marginal e voltou para o Monte Estoril: havia uma boîte no sopé da colina onde não corria grandes riscos de tropeçar em pessoas que o conhecessem: envergonhava-o ser visto na companhia daquela mulher demasiado ruidosa, com pelo menos o dobro da sua idade, lutando contra a decrepitude e a miséria através de uma encenação absurda ao mesmo tempo ridícula e tocante, que o fez ter vergonha da sua vergonha: no fundo não eram diversos um do outro, e em certo sentido os seus frenéticos combates aparentavam-se: fugiam ambos à mesma solidão impossível de aguentar, e ambos, por falta de meios e de coragem, se abandonavam sem um gesto de luta à angústia da aurora como mochos aterrados. O médico lembrou-se de uma frase de Scott Fitzgerald, tripulante aflito do barco em que seguiam, deixado em terra numa viagem anterior, de coração exausto alimentado pelo oxigénio amargo do álcool: na noite mais escura da alma são sempre três horas da manhã. Estendeu a mão e afagou a nuca do dinossauro numa ternura sincera: salve, minha velha, atravessemos juntos estas trevas, declarava o seu polegar subindo e descendo ao longo do pescoço dela, atravessemos juntos estas trevas que só há saída pelo fundo consoante nos informou o Pavia antes de abraçar o seu comboio, só há saída pelo fundo e talvez que amparando-nos mutuamente lá cheguemos, cegos de Brueghel a tactear, tu e eu, por este corredor cheio dos medos da infância e dos lobos que povoam a insónia de ameaças. "Ah ah", exclamou a Dóri com um sorriso de triunfo, "atrevidote, hã?"
E apertou-me os testículos com as falanges em quebra-nozes até me fazer gritar de dor. A boîte devia estar no termo da sua viagem dessa noite: os únicos habitantes para além do empregado zarolho que nos serviu um gin e um prato de plástico de pipocas com maus modos evidentes, e da menina dos discos que lia o Tio Patinhas na sua gaiola sonora, figura de caixa de música curvada sobre si própria como um feto, eram dois homens sonolentos apoiados ao balcão, de narizes equinos mergulhados em alcofas de bagaço, e que miraram a mulher terciária, que rebolava à minha frente as ancas gigantescas, com a atenção distraída que se confere a uma ruína sem interesse. As luzes do tecto, pulsando molemente ao compasso de um tango, aclaravam o palco pindérico da minha execução: cadeiras de ferro de esplanada de café, um televisor apagado numa prateleira alta, cascas e pegadas circulares de copos no tampo das mesas: morreu na miséria, explicavam os livros de leitura acerca dos poetas defuntos, barbudos esqueléticos suspensos em atitudes pensativas, meditando provavelmente no que empenhar a seguir, ou fabricando na cabeça alexandrinos preciosos. A Dóri que regressava com a aproximação da madrugada a uma juventude de criada de servir doirada pelas sólidas promessas matrimoniais de um primo soldado, pediu uma sandes de paio com unto, de que ofereceu ao médico, numa guinada de súbita delicadeza, a trincadela inaugural: mastigava de boca aberta como as camionetas de cimento, e dançaram trocando meigamente pedaços de côdea (Papa quido que tás maguinho), à laia de náufragos repartindo, fraternais, a ração da jangada. O zarolho acotovelou os equinos do bagaço e ficaram-se os três a observá-los numa estupefacção imóvel, siderados pelo abracadabrante quadro de um adolescente envelhecido ao colo de uma baleia paleolítica de grande juba frisada. Foda-se, pensou o médico aterrado, inalando o perfume semelhante a gás de guerra de 14 que se soltava em rolos letais da nuca da mulher, o que faria eu se estivesse no meu lugar?
E por fim, na varanda do apartamento, às cinco horas da manhã, com a prostituta lá dentro a dormir. Olha o mar e monologa, dirigindo-se à mulher ausente e a um futuro ironizado.
São cinco horas da manhã e juro que não sinto a tua falta. A Dóri está lá dentro a dormir de barriga para cima, de braços abertos crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da boca, avança e recua ao ritmo da respiração num ruído húmido de ventosa. Bebemos ambos a aguardente da cozinha pelo púcaro de folha, sentados nus na cama que o gás de guerra tornou inabitável carbonizando até as folhas estampadas das fronhas, escutei-lhe as confidências prolixas, enxuguei-lhe o choro confuso que me tatuou o cotovelo de um arbusto de rímel, puxei-lhe o cobertor até ao pescoço à laia de um sudário piedoso sobre um corpo desfeito, e vim para a varanda arrancar os dejectos endurecidos dos pássaros. Está frio, as casas e as árvores nascem lentamente do escuro, o mar é uma toalha cada vez mais clara e perceptível, mas não penso em ti. Palavra de honra que não penso em ti. Sinto-me bem, alegre, livre, contente, oiço o último comboio lá em baixo, adivinho as gaivotas que acordam, respiro a paz da cidade ao longe, desdobro-me num sorriso feliz e apetece-me cantar. Se eu tivesse telefone e me telefonasses agora deverias encostar cuidadosamente o auscultador à orelha numa expectativa de búzio: através das espiras de baquelite, vindo de quilómetros de distância, desta varanda de betão suspensa sobre o fim da noite, terias, juntamente com o eco do meu silêncio, o vitorioso eco do meu silêncio, o piano amortecido das ondas. Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. Talvez mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira: podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.

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