domingo, 6 de setembro de 2020

Crime sem castigo em terras tchekhovianas


« O que fazer quando o regime russo recorre sistematicamente ao envenenamento dos seus opositores – dentro e fora das fronteiras da Rússia? A resposta não é fácil. Nos últimos dias foi possível observar como as democracias têm dificuldade em encontrar uma resposta comum, simultaneamente eficaz e credível. Alexei Navalny, uma das caras mais emblemáticas da oposição a Vladimir Putin, encontra-se internado e a recuperar num hospital de Berlim, graças à pressão internacional que levou a Rússia a aceitar a sua transferência. Navalny, como outros antes dele, foi envenenado com um agente químico de fabrico exclusivamente militar – o novichok, fabricado pela União Soviética nos anos 70 e 80 – no aeroporto de Tomsky, na Sibéria Ocidental, quando se preparava para embarcar com destino a Moscovo, depois de uma acção de campanha contra a corrupção, o seu tema de eleição. O Kremlin nega qualquer responsabilidade. A Europa pede um inquérito rigoroso. A NATO também. 

Foi a própria Angela Merkel quem pressionou directamente Putin para autorizar a transferência do dissidente russo para Berlim. Foi ela quem anunciou, na quinta-feira, que Navalny tinha sido “inequivocamente” envenenado, classificando o acto de “tentativa de homicídio”. A chanceler intimou o Kremlin a apurar responsabilidades, exigindo um inquérito transparente. 

O passado recente ensina-nos que, de um modo geral, as palavras de condenação e as decisões tomadas pelas instituições europeias não têm capacidade de dissuasão junto de Putin, que prossegue o seu comportamento criminoso e cínico. Foi o que fez novamente, ainda que as suas palavras tenham perdido toda a credibilidade. E teve, mais uma vez, a prestimosa ajuda de Donald Trump. »
« Está aqui o maior problema das democracias: como enfrentar os ditadores quando o líder da maior e mais poderosa democracia do mundo olha para o lado e age de acordo com uma lógica que não tem nada a ver com os valores e os interesses das democracias ocidentais? 

Em 2014, quando Obama estava na Casa Branca, a chanceler foi determinante para a aplicação de duras sanções económicas contra Moscovo na sequência da agressão à Ucrânia e da anexação da Crimeia. Até agora, a União Europeia sempre renovou essas sanções. Mas a ambiguidade alemã face à Rússia não desapareceu. Tem raízes históricas e traduz um interesse económico imediato. Foi um escândalo quando o chanceler social-democrata Gerhard Schroeder (1998-2005) alinhou com Putin na construção de um gasoduto ligando directamente o território russo à Alemanha para abastecê-la de gás natural produzido russo. Não houve consequências. Na altura, a Alemanha justificou o empreendimento alegando não querer ficar dependente do gasoduto que atravessava a Ucrânia e cuja torneira Putin mandava fechar de cada vez que havia em Kiev manifestações pró-europeias. Os Bálticos e a Polónia protestaram veementemente, sem qualquer resultado. »

Para a Rússia, como para todas as grandes potências, cem anos é uma boa medida de pensamento em relação ao futuro. Um século atrás, quem teria adivinhado que as Forças Armadas americanas estariam estacionadas a poucas centenas de Km de Moscovo, na Polónia e nos países bálticos? A Rússia como conceito remonta ao século IX e a uma insignificante federação de tribos eslavas orientais conhecida: Rus Kievana, baseada em Kiev e outras cidades ao longo do rio Dniepre, no que hoje é a Ucrânia.

Os mongóis, expandindo seu império, atacavam continuamente a região a partir de sul e leste, acabando por invadi-la no século XIII. A Rússia nascente realocou-se então a nordeste, na cidade de Moscovo e em torno dela. Essa Rússia primitiva, conhecida como Grande Principado de Moscou, era indefensável. Não havia montanhas nem desertos, e poucos rios. Em todas as direções estendia-se o terreno plano, e em toda a estepe ao sul e a leste estavam os mongóis. O invasor podia avançar no lugar de sua escolha, e havia poucas posições defensivas naturais para ocupar.

Entra em cena Ivan o Terrível, o primeiro czar. Ele pôs em prática o conceito de ataque como defesa – isto é, começar a se espalhar consolidando-se em casa e em seguida avançar para fora. Isso levou à expansão. Ali estava um homem para corroborar a teoria de que os indivíduos podem mudar a história. Sem sua personalidade, que misturava completa crueldade e antevisão, a história russa teria sido muito diferente.

A nova Rússia havia iniciado uma expansão moderada sob o comando de Ivan o Grande, avô de Ivan o Terrível, mas essa expansão se acelerou depois que o jovem Ivan chegou ao poder em 1533. Ela avançou a leste para os Urais, ao sul para o mar Cáspio e ao norte em direção ao Círculo Ártico. Ganhou acesso ao mar Cáspio e mais tarde ao mar Negro, tirando proveito das montanhas do Cáucaso como barreira parcial entre os russos e os mongóis. Uma base militar foi construída na Chechênia para deter quaisquer atacantes potenciais, fossem eles a Horda Dourada mongol, o Império Otomano ou os persas.

Houve reveses, mas durante o século seguinte a Rússia abriria caminho através dos Urais e se introduziria na Sibéria, terminando por incorporar toda a terra até à costa do Pacífico, no extremo leste. Agora os russos tinham uma zona de proteção parcial e um interior – profundidade estratégica –, um lugar para o qual se retirar em caso de invasão. Ninguém iria atacá-los em grande número a partir do mar Ártico, nem avançar a muito custo pelos Urais para chegar até eles. A sua terra estava a tornar-se o que conhecemos hoje como Rússia. E para chegar a ela a partir do sul ou do sudeste era preciso ter um exército enorme, uma linha de suprimentos muito longa e avançar lutando para transpor posições defensivas.

No século XVIII, a Rússia – sob Pedro o Grande, que fundou o Império Russo em 1721, e depois sob a imperatriz Catarina a Grande – voltou-se para o oeste, expandindo o império a fim de se tornar uma das grandes potências da Europa, impulsionada sobretudo pelo comércio e o nacionalismo. Uma Rússia mais segura e poderosa foi capaz então de ocupar a Ucrânia e chegar aos Cárpatos. Ela se apoderou da maior parte do que conhecemos hoje como países bálticos – Lituânia, Letónia e Estónia. Assim, estava protegida de qualquer incursão por terra nesse caminho ou a partir do mar Báltico.

Agora havia um enorme anel em torno de Moscovo, que era o coração do país. Começando no Ártico, ele descia pela região báltica, passava através da Ucrânia, depois pelos Cárpatos, o mar Negro, o Cáucaso e o mar Cáspio, oscilando de volta em torno dos Urais, que se estendiam até ao Círculo Ártico. No século XX a Rússia comunista criou a União Soviética. Por trás da retórica de “Trabalhadores de todo mundo uni-vos”, a URSS era simplesmente o Império Russo em ponto maior. Após a Segunda Guerra Mundial ela se estendia do Pacífico a Berlim, do Ártico às fronteiras do Afeganistão – uma superpotência em termos económicos, políticos e militares que só tinha rival nos Estados Unidos.

A Rússia é o maior país do mundo, duas vezes maior que os Estados Unidos ou a China, cinco vezes maior que a Índia, 25 vezes maior que o Reino Unido. Entretanto, possui uma população relativamente pequena, de cerca de 144 milhões de habitantes, menor que a da Nigéria ou do Paquistão. Seu período de cultivo agrícola é curto, e o país esforça-se para distribuir adequadamente o que é cultivado pelos onze fusos horários que Moscovo governa.

Até aos Urais, a Rússia é uma potência europeia, na medida em que faz fronteira com a massa de terra da Europa, mas não é uma potência asiática, embora faça fronteira com Cazaquistão, Mongólia, China e Coreia do Norte, e tenha fronteiras marítimas com vários países, inclusive Japão e Estados Unidos.

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