quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Limite de Idade – de Vitorino Nemésio




Aproveito o poente enquanto há sangue lampo / E, ambos surdos à borda da lareira, / 
Atiço positrões improváveis no campo. 

e suplica à Adrenalina: «Leva-me lenta ao porto/ Da Morte… 


Vitorino Nemésio - neste "Limite de Idade" - une perfeitamente o humor negro, a poesia e as ciências naturais. Nemésio refere-se amiúde à bactéria Escherichia coli. 
Limite de Idade, 1972, é um título que se deve obviamente a um momento da carreira do autor, talvez o momento mais triste da sua vida: a passagem à situação de reformado. À Epígrafe segue-se Canada-Flight, as viagens entrópicas do poeta pelas grandes cidades do Canadá. O livro culmina com o Cão Atómico. Neste último subcapítulo o poeta não esquece a decadência sentimental da Europa: 
Eurátomo da Europa, sem núcleo, / Neutrão sem massa, / Erva de Átila em que tudo calca e passa, / Tu, que deste a cabeça ao Toiro / E a Jove a mão, / Onde puseste o coração? 

…O Senhor teve pena do seu servo / E guiou a mão de Becquerel / E pôs um raminho de polónio / Ao peito de Madame Curie, / Mas veio o Diabo e queimou tudo / Num cogumelo venenoso / E imitou o chumbo no plutónio /…
Nemésio
dedicou Limite de Idade a Aurélio Quintanilha, que era dos Açores, eminente geneticista português, pai de Alexandre Quintanilha, e também Professor de Biologia. Nemésio, numa entrevista a Natália Correia dizia: “Eu sei é que, onde se diziam estrelas e boninas do campo, eu digo eletrões”. Explica os seus "biopoemas" como resultado, não premeditado para verter em verso, de uma série de leituras aturadas a que foi levado por uma curiosidade imensa - transformada em desafio à sua condição de homem de letras - em penetrar, ao nível conceptual e metodológico: no mundo da microfísica e da física matemática, tido como inacessível ao comum dos mortais. E também no da Vida, na sua dimensão biológica mais profunda: a da estrutura molecular, das funções desempenhadas pelos vários componentes celulares, as biomoléculas, e das contínuas transformações a que estão submetidas, garantes da criação, desenvolvimento e manutenção de todos os organismos, cada qual com os seus atributos específicos.

Vitorino Nemésio [1901-1978] chegou a dizer que não seria de estranhar se um dia voltássemos a ver os velhos, com uma manta, subirem à montanha para terminarem aí os seus dias. Se pensarmos bem, é o equivalente dos Lares dos dias de hoje. Levá-los para um Lar institucionalizado. E nem num caso, nem noutro, isso deveria ser visto como degradante. Tanto num caso como noutro pode ser assumido com dignidade. É melhor assumir com frontalidade a natureza das coisas, do que ser hipócrita. O que é preciso é que, tal como noutros domínios, a comunidade o assuma como deve ser, sem aldrabices. Não vale a pena estarmos com conversa fiada e dizer que “infelizmente é uma necessidade dos tempos que correm, e tal e coisa e um par de botas”. As habitações exíguas, o trabalho, as condições económicas, e obviamente a exigência demográfica para a procriação, obrigam as pessoas a adotar procedimentos que só com muito esforço adaptativo é possível cumprir. Agimos assim, de certa forma, inconscientemente, não cuidando de saber que qualidade de vida esperamos ter quando chegar a nossa vez de pegar na manta e zarpar. 

Numa entrevista, Vitorino Nemésio  diz: “Ü leitor comum não precisa de conhecer o código específico das ciências respetivas - este está lá, tácito. Quem tiver preparação, percebe. Quem não ... contenta-se com a leitura poética”. O código genético, de carácter universal, estabelece afinal, sem qualquer ambiguidade, a relação unívoca entre cada tripleto de bases dos ácidos nucleicos e cada um dos vinte aminoácidos que integram maciçamente a enorme variedade de proteínas conhecidas. 

Nemésio pretendia então dedicar-se a um ensaio sobre as suas raízes açorianas, contando com o desterro para lhe afinar e exacerbar essa consciência de si embalado de novo pelas suas raízes, como quem se abeira da morte fazendo tenções de renascer. O medo de andar de avião nem sempre é um receio de ver aquela maravilha revestida a lata interromper-se a meio do voo e vir por ali, a pique, estampar-se em terra ou no mar. Talvez seja mais a inquietação diante de um milagre frio, desses que a técnica tornou tão comuns nos nossos dias, e que provocam mesmo nos espíritos finos as maiores suspeitas. Por inquietação dos instintos, esses em que confia o animal para quem são precisas algumas gerações antes que a incompreensão se dissolva, assim, ele dá por si, num voo ansioso, aleijando-se muito sempre que um balanço estranho lhe eriça os pelos da imaginação, e desata nuns filmes em que se vê como um Dante montado na espantosa lata a ser conduzido pelo inferno. 
Pode-se estar no Mundo acaso pairando num canudo/ Blindado de asas, recheado de decúbitos na oblíqua?

"Os reatores do avião serão sucata um dia, / Nós seremos chumbados a maçarico / Pelos hospedeiros da funerária, / A viagem terá seu termo ou não, biosférico, / E tudo finalmente se arranjará/ Na rosa dos ventos elísios / A 1400 Km à hora, com um empurrãozinho à cauda.
Depois da dificuldade de atravessar o Atlântico, foi o medo de viajar de avião que, mesmo quando a TAP começou a ter voos diretos para a Terceira, levou a que só relutantemente Nemésio tenha regressado à sua ilha, tornando-se dela um visitante de circunstância, que permanecia por curtas estadias. E, no entanto, ele imaginava-se a regressar em definitivo, quando as obrigações para com o mundo e a vida civil estivessem cumpridas, teria o seu dia de “libertação íntima”, o dia em que haveria de fechar-se “nas minhas quatro paredes da Terceira”, dia que foi sendo adiado e não chegou, mas para que tinha já delineado um plano. 

Nemésio não só se deixou encantar pelo brilho e pela sonoridade das palavras do mundo novo que descobrira, como absorveu e metabolizou (e esta é linguagem bioquímica), em forma de verso, o que apreendeu do intimismo molecular da vida e da história da sua compreensão pelo homem – “Niels Bohr, Heisenberg e o seu princípio de incerteza, a estrutura do átomo, Becquerel e o seu «raminho de polónio ao peito de Madame Curie”. 
Também já me pensei / Sob o signo do azote, / Na base da ilusão, / Tão ferozmente lúcido / Que um amargo de glúcído / Me enchia o coração.
Como um stock de hidratos / Que eu afinal chorei / Sobre meus pensamentos insensatos / Na química aparência / De uma saudade lípida, / Mãe da morte gerada / Pela lágrima insípida.
Disparate verbal, isómero da incoerência, / meu mesquinho universo sem ozone / Que me proteja do raio que me parta, / Deus me perdoe! / Minha pobre poesia não se farta / De blasfémia que soe. 
Doçura das minhas veias, / Leva-me lenta ao porto / Da Morte, / Metáfora Metábole.

O Homem anda a medo quilómetros de fibra viva
No metro-e-75 de estação vertical.
Nossa angústia é enrolada a triplet químico
Invariante e genuína nos seus fósforos,
Angústia herdada até que descanse, alheia,
Só então indolor na fúnebre oficina,
Fermentada e relicta, ao inerte paralela.


E depois levantei-me sobre este mandato urgente,
Menos litográfico e mais ósseo, como realmente sou,
E cobrei alegria de ser humano - e no animal ainda mais,
Pela forma encadeada, no espírito de Deus, nas quatro bases:
Fé, Esperança, Caridade e Adenina

Pela graça da substituição Timina à Fé sem a perder,
Citosina por Esperança enquanto citose Esperança seja,
Célula de aguardar a palavra divina no Símbolo,
A Misericórdia de Deus para o pecado
E, quanto à Guanina,
Havendo Caridade no coração já se dispensa a palavra,
Já se pode dar nome a um engate com Jóiforo que se tenha
E completar a Hélice na figura humana enrolada. 

Assim, bem mandatado como poeta, exulto e emendo-me,
Nos pedreiros da pedra encontro os irmãos que procurava,
Na lavra do destino a verbo o próprio fogo
E em tudo um bem de amor, um socorro inesperado. 

É certo: falta o cão a que comparei (ou amparei?) a cabeça,
Mas o cão está comigo, somos os dois, cabemos
Na escadinha de fibra: ele abaixo, eu subindo
(Isto na pretensão, pois o aminado é igualzinho),
O cão fiel e saudoso da trompa das caçadas 

Que de Juízo Final há de ser para mim:
Eu, dizendo isto e aquilo e, teologal, 

Trazendo Deus na boca e o Diabo no corpo santo:
Que Deus na boca, alma perdida, é um osso esburgado,
E então digam lá qual dos dois era o cão
Se o Criador de ambos não fosse um só na luz perpétua,
Pois de ambos nós, cão e eu, só eu mendigo o perdão.



Sem comentários:

Enviar um comentário