sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Eu no Teatro Anatómico e Viktor Frankl em Auschwitz




O leitor, ou a leitora, para ser politicamente correto, pode pensar que um aluno de medicina, quando pela primeira vez, vai cortar uma pessoa morta, desmaia. Mas não, é raro acontecer. É mais frequente acontecer com sangue. No Teatro Anatómico não há sangue. Além do mais não se tem a sensação de estarmos perante uma pessoa. Pode ter-se mais a sensação de estarmos a ver um filme de terror. E nessas idades, os jovens aguentam bem os filmes de terror. Um cadáver sem nome nem biografia. Surpreendentemente, tudo parece normal. Mas atenção, dissecar cadáveres num Teatro Anatómico é um ato sagrado. Desde logo os mestres, a começar pelos mais antigos: Hipócrates; Galeno; Maimonides; Testut.

Nas primeiras vezes ainda vinha aquela náusea na cantina, quando o prato era bife bem passado, duro. Mas tudo passava depois de transformarmos a tragédia em comédia, entre pedantes, palhaços e idiotas com rizadas descontroladas. Fingimos que os cadáveres, pelo facto de estarem mergulhados em formol, são falsos. Mas, de facto, tudo parece absurdo quando nos vemos de serrote na mão a serrar o crânio de um homem. Naquele tempo, os cadáveres eram todos homens. Indigentes de famílias que não vinham reclamar o corpo: ao hospital; ou à morgue; ou ao Instituto de Medicina Legal. E isto porque uma Senhora muito devota não podia saber de nada. Porque se soubesse, fazia questão de pagar o funeral a estes desprendidos do mundo. Os cadáveres revertiam, nessa polaridade, algumas vezes, para inventário, a nosso benefício 

Depois de algumas semanas, na realidade, o drama dissipava-se. É já com caráter profissional que encaramos as coisas. E a isso os mestres obrigam, levando a sério a história pregressa de um caso clínico sem nome, mas com um diagnóstico da causa de morte. O processo clínico está num arquivo a que só o Prof. Tem acesso. E apenas é vertido para a pauta, de uma ficha, o que interessa: icterícia; tumor no pâncreas; cicatriz de operação a uma hérnia; dedos em baqueta de tambor; pulmões com um forte granitado preto e cinzento do tabaco, e com cavernas caseosas da tuberculose. Os professores de Anatomia ajudavam-nos a lidar com essas questões. 


Viktor Frankl

Eu e praticamente todos os integrantes do nosso transporte estávamos, portanto, tomados por essa ilusão de indulto que acredita que tudo ainda pode sair bem. Pois ainda não tínhamos condições de entender a razão daquilo que ali se desenrolava.

Mandaram-nos deixar toda a bagagem num vagão, desembarcar e formar uma fila de homens e outra de mulheres, para então desfilar perante um oficial superior da SS. Eu cometi a temeridade de levar debaixo do capote uma pequena bolsa de pano. Fico calculando: se ele perceber o peso da sacola que me puxa para o lado haverá no mínimo uma bofetada que me fará voar na lama; isto eu já conhecia de outra ocasião. Ei-lo agora à minha frente: alto, esbelto, elegante, num uniforme perfeito e reluzente, muito distante das nossas tristes figuras de rosto sonolento e aparência decaída.

Com o cotovelo direito apoiado na mão esquerda, e com a mão direita erguida, executa um leve aceno com o indicador, ora para a direita, ora para a esquerda. Nenhum de nós tinha a menor ideia do significado sinistro daquele pequeno gesto com o dedo. Simplesmente, deixo os factos acontecerem, aprumado e ereto o mais possível. O homem da SS olha-me criticamente. Parece hesitar, põe as duas mãos nos meus ombros; faço um esforço para assumir uma postura do tipo militar. Fico firme e ereto: lentamente, ele faz girar os meus ombros - e lá me vou para a direita, para o lado bom.

À noite ficamos a saber o significado desse jogo com o dedo indicador: era a primeira seleção! A primeira decisão sobre ser ou não ser. A imensa maioria do nosso transporte tinha ido para a esquerda. Uma sentença de morte levada a cabo em poucas horas. Quem era mandado para a esquerda marchava diretamente da rampa da estação para um dos prédios do crematório, onde - segundo me contaram pessoas que ali trabalhavam - havia letreiros em diversas línguas europeias que caracterizavam o prédio como casa de banhos. Então todos os participantes do transporte mandados para a esquerda recebiam um pedaço de sabão marca "Rif".

Perguntei a companheiros que já estavam há mais tempo no campo de concentração onde poderia ter ido parar o meu colega e amigo P. - "Ele foi mandado para o outro lado?" - "Sim", respondi. - "Então podes vê-lo ali", disseram. "Onde?" Uma mão aponta para uma chaminé distante algumas centenas de metros, da qual sobe assustadora e alta labareda pelo imenso e cinzento céu polonês, para se extinguir em tenebrosa nuvem de fumaça. "O que há ali?" - "Ali o teu amigo vai a caminho do céu", é a resposta grosseira. Continuo sem entender; mas logo começo a compreender, assim que me "iniciam" no assunto.



Hoje-em-dia vai surgindo aqui e ali alguém que quer doar o seu corpo, quando for cadáver, à Escola Médica. E eu conheço uma pessoa que fez isso, cumprindo todos os requisitos para o efeito, metendo Notário e tudo. Eu, na altura do meu Teatro Anatómico, disse ao meu monitor que gostaria de doar o meu corpo à Medicina. No entanto, ele disse que os médicos, nesse caso, nunca doavam o próprio corpo. Por exemplo, o cirurgião tem aversão em contar os detalhes mais chocantes da cirurgia ao próprio, porque, a maior parte, desistiria da operação. O que choca o médico não é ser dissecado por estudantes engraçadinhos do primeiro ano do curso de medicina. É pensar na mãe, no pai, nos filhos, enfim quem cá fica, poder imaginar o seu ente querido a ser retalhado em pedaços. 

No Laboratório de Anatomia os mortos são objetos literalmente reduzidos a órgãos, tecidos, nervos, músculos e ossos. No início não era mesmo possível negar a humanidade daqueles corpos. Mas, com o tempo, a gente esfolava os membros, fatiava músculos, arrancava os pulmões, abria o coração, removia o fígado e era difícil reconhecer aquela pilha de tecidos como algo humano. No fim, a aula de Anatomia, mais do que um momento especialmente sagrado, era aquela grande disciplina que só atrapalhava os nossos miolos com tanta coisa para memorizar.

Afinal de contas, os médicos invadiam o corpo das pessoas de todas as formas e feitios. Mas o mais engraçado é que, algumas pessoas, até parecia que tinham prazer nisso, sentir as suas entranhas serem invadidas. E isto porque, para elas, um médico era como se fosse Deus. Essas pessoas, duplamente sagradas, passam a vida a ser operadas a tudo e mais alguma coisa, seja nas miudezas interiores, seja por fora, na pele, como galinhas depenadas. Parece que, sentir o corpo como matéria e ferramenta de trabalho de Deus, é uma forma bizarra de aliviar o sofrimento da alma. Da mesma forma, para o médico, o sofrimento do corpo, nas aulas práticas da clínica, não passava de uma mera ferramenta pedagógica. Talvez os professores de Anatomia sejam a extremidade menos radical dessa relação, até porque a cumplicidade com os cadáveres era grande. Um professor de Anatomia entrava em pânico se um aluno estragasse o cadáver. E não precisavam dizer nada, bastava olhar para a sua cara. A expressão do rosto ensinava-nos ali, que a medicina era mais arte do que ciência. Ali nós tínhamos que nos comportar como se estivéssemos no atelier de Leonardo da Vinci a desenhar o corpo humano com bisturi e tesoura, ou na oficina de Miguel Ângelo a esculpir a última versão do David.

É por esse lado da Arte que, para muitos médicos, os tempos do Teatro Anatómico foram os melhores tempos. Pela simples razão de ali não se ver ninguém sofrer. Dissecar, olhe para o que eu lhe digo, meu Capitão, é mais fazer arte do que outra coisa qualquer. Dizia o Assistente: “esse cotovelo está a ficar bonito”, depois de eu ter passado as férias da Páscoa a dissecar pro bono aquele cotovelo. Num desses dias, já à noite, no restaurante depois de jantar, quando ia a pagar, ao tirar o dinheiro do bolso do casaco, vem-me à mão um pedaço de músculo, e eu a disfarçar se saber como aquilo foi parar ao meu bolso do casaco. Foi sem querer. A não ser …

No fim do curso nós ainda éramos herdeiros do ‘Maio’ e proprietários da Revolução. Por isso nada de praxes, nada de Juramento de Hipócrates. Mas quando chegámos a P4 fomos escolher uma especialidade, conforme a classificação no tal exame do 'Harrison's Principles of Internal Medicine', é claro. E só aí percebi que muitos dos meus colegas com as classificações mais altas no exame, preferiram tirar a especialidade em áreas menos exigentes (radiologia ou dermatologia, por exemplo). Na América acontecia o mesmo, e em todo o lado, afinal. Eu escolhi Medicina Interna, a especialidade hospitalar que à época tinha a fama de ser a especialidade que mais certidões de óbito passava. Moral: no final do Curso de Medicina, a maioria dos estudantes tendia a se concentrar em especialidades com horários mais humanos, salários mais altos e menos pressão, reduzindo ou abandonando o idealismo do início do Teatro Anatómico. Disseram-me nessa altura que a Ordem dos Médicos tinha retomado a cerimónia do Juramento de Hipócrates para os recém-formados. Colocar o estilo de vida em primeiro lugar é uma forma de encontrar um emprego – não uma vocação.


De repente surge uma movimentação no grupo de companheiros do transporte, parados, pálidos de medo, discutindo desorientados. Mais uma vez, os comandos gritados com voz rouca; todos são tocados na corrida e aos empurrões para dentro do vestíbulo antes de entrar no banho. Estamos num grande tanque, no centro um homem SS aguarda até que o nosso grupo esteja completo. Então começa: "Dou dois minutos. Estou a olhar para o meu relógio. Dentro de dois minutos todos completamente nus! Atirem tudo para o chão; não podem levar nada, exceto sapatos, cintos ou suspensórios, um par de óculos e, no máximo, a funda de quem tem hérnia: 


Vou cronometrar dois minutos: já!" Com uma pressa incrível o pessoal arranca a roupa do corpo; à medida que o tempo se vai esgotando, forçam a roupa, correias e cintos, despindo-se cada vez mais nervosos e desesperados. De súbito, ouvem-se os primeiros estalos. Sobre os corpos nus descem chicotes. Somos levados para outra sala. Então somos rapados de cima a baixo. Não somente o couro cabeludo. Não fica pêlo sobre pêlo, no corpo inteiro. Dali somos tocados como animais para dentro dos chuveiros, em fila, uma vez mais. Um prisioneiro mal reconhece o outro. Mas é com grande alívio e alegria que alguns constatam que dos chuveiros realmente sai água. . . 
A nossa coluna tinha sido obrigada a correr desde a estação, escoltada por um pelotão da guarda SS com a carabina engatilhada, passando pelos corredores de arame farpado carregado de alta tensão, até ao banho de desinfeção. Para nós, eleitos na primeira seleção, ao menos um banho real. Mais uma vez era alimentada a nossa ilusão de indulto: a SS até parecia muito afável! Mas logo percebemos que eram agradáveis connosco enquanto viam relógios em nossos pulsos, para, em tom muito cordial, nos persuadir a entregá-los, já que de qualquer forma teríamos de entregar tudo. Cada um de nós pensava consigo mesmo: perdido por cem, perdido por mil, se essa pessoa relativamente amigável receber o relógio por baixo do pano - porque não? Quem sabe, um dia poderá prestar-me algum favor. 

Para diversão dos prisioneiros "antigos", que colaboravam cobardemente com o sistema como forma de sobrevivência, ainda havia entre nós alguns ingénuos que se arriscavam a perguntar se não se poderia ficar ao menos com uma aliança, um medalhão, um talismã ou uma lembrança. Não queriam acreditar que, de facto, nos tiravam literalmente tudo. 

Procuro conquistar a confiança de um dos prisioneiros "antigos". Aproximo-me dele com cuidado, mostro um rolo de papel no bolso interno da minha capa e digo: "Olha aqui! Tenho comigo um manuscrito científico a ser publicado - já sei o que vais dizer, já sei: ‘escapar com vida, salvar a vida nua e crua é tudo, é o máximo que se pode pedir do destino’. Mas eu não posso largar isto, eu tenho essa mania das grandezas e quero mais. Quero ficar com este manuscrito, preservá-lo de alguma forma - ele contém a obra da minha vida; compreendes? Eu sou médico. Ele começa a entender, sim. Começa a sorrir de orelha a orelha: primeiro, compassivo; depois, como se isso fosse divertido. De repente, um berro, que deita por terra toda a esperança que ainda tinha: "Merda!" Desde então passaria a ouvir muitas vezes essa palavra. Passei a perceber em que pé as coisas iriam passar a estar. Parecia que tinha chegado ao cúmulo do pior que havia a esperar. Mas puro engano. Aquilo ainda era a primeira fase do encerramento de toda uma vida que ficava para trás.

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