domingo, 13 de setembro de 2020

Sexualidade a propósito


Dos pais que invocam objeção de consciência para que os filhos não frequentem as aulas da Disciplina de Cidadania. Parece que a questão prende-se com a matéria de sexualidade, entendendo os pais que a educação sexual e de género são matéria da esfera moral e não têm cariz científico. 
E das declarações do Papa Francisco: "Prazer sexual é divino e vem diretamente de Deus". Isto noutros tempos provocaria um terramoto no campo dos fiéis católicos, declarações conotadas nada menos do que blasfémia.



A propósito dos grandes decotes em prime time, as feministas da primeira geração (já se está na terceira geração) enervam-se com isso, e sempre que há manifestações nas ruas sobre estes temas, aproveitam para descer às ruas chegando ao ponto de partirem as vitrines das sex shops. Não é para admirar, quando sabemos que estamos submersos em signos. A mistura atmosférica feita de cosmética e decotes é hoje a arte do possível na sedução das audiências. É o chamado caminho das pedras do desejo que excita. Numa linguagem sartriana, são seios mercantis da era moderna, que só existem 'em-si' e não 'para-si', enquanto coisas, enquanto corpos inconscientes. Numa cena passada há anos num desses programas de entretenimento das manhãs televisivas, a apresentadora, ainda uma iniciada nessas andanças, apareceu montada no colega, este sim, já um veterano neste tipo de programas, a andar a quatro pelo chão, com os olhos fixos na câmara, e ela em cima dele com a cabeça inclinada a olhar para o chão. 

Do ponto de vista semiótico o 'seio' é considerado um sinal, e não um índice, nem um símbolo. E muito menos um signo. Não simboliza nem reproduz nada. Quando muito, alguns semióticos consideram que também pode ser um índice, quando indicia uma certa circunstância. Freud ensinou que na natureza humana tudo ia desaguar no mar das pulsões sexuais, e as suas deformações. Apesar de Freud já ter sido considerado um libertador de muitos dos complexos no século XX, continua a reunir à sua volta muita controvérsia. Hoje não faltam objeções, não apenas à sua obra, mas também à sua pessoa. Apesar da revolução sexual, as coisas não se tornaram mais fáceis. 

Tudo isto me faz regressar a Platão [428 a.C.-347 a.C.], e à metáfora da "beleza por cima da sageza". É natural que aqui apareçam os clichés correntes sobre as mulheres: um certo cinismo feminino; e o busílis do poder feminino. Durante muitos séculos no Ocidente desde Platão, a consciência feminina era apenas acessível aos comuns dos mortais indiretamente pelos escritos de homens geniais, mais ou menos com aura de divinos. E Platão até não era daqueles que se demorava muito a tecer considerações sobre estes assuntos. Há no entanto, o conto do andrógino no Banquete; e alusões ao casamento de Sócrates com Xantipa. Sobre Xantipa sabe-se pouco. É possível que o seu casamento com Sócrates já fosse o segundo, com o qual teve três filhos: Lâmprocles, Sofronisco e Menexenos. Deve ter sido difícil para Xantipa viver com Sócrates, homem que não dava valor nenhum ao dinheiro e aos bens materiais. Mas pelo que diz Platão, apesar de Sócrates ser muito admirado publicamente, em casa era um desastre, tido mesmo como um totó. Seja com for, Xantipa é vista como vítima. Mas, ironicamente, vítima de si própria. E Sócrates é um tolo, um ceguinho. Xantipa tinha muito mau humor. E o mau humor de Xantipa terá de ser sempre assacado a Sócrates, porque era um filósofo. E o que se espera de um filósofo é sageza. 

Desde Diógenes de Sínope [405 a.C.-323 a.C.] e Luciano, o trocista de Samósata [125 d.C.-181 d.C.], que não se pode ter mais confiança em satíricos. Eles são personagens de carne e osso, embora as narrativas acerca deles sejam mais da ordem da lenda. Ao passo que Mefistófeles sendo um personagem fictício, a narrativa é autêntica, de um homem de carne e osso - Goethe [1749-1832] um Classicista de Weimar - que extraiu da sua vivência matéria cínica. Os Românticos burgueses - pela suspeita; e Freud - pela fundação da patologia sexual, foram os que abriram a sexualidade ao futuro que é hoje. Pelo Iluminismo, havia que domesticar o animal interior pela razão, mas Freud não quis. Enveredou pela alteridade interior, e desceu aos seus próprios abismos psíquicos. Borrifou-se para o bravo homem que casava para ter filhos e gozar a paz do merceeiro. Que sabia o merceeiro da vida? 

De Diógenes de Sínope, hoje apenas temos silhuetas. Diógenes era ostensivo com a sua pobreza material, com o seu mau aspeto chocante, se bem que era apreciado pelas cortesãs atenienses, concedendo-lhe favores exclusivos e graciosos, coisa que os genuínos pobres diabos só podiam sonhar. Há que perceber isto: ele ostentava o preço que pagava: a liberdade. Ele viria a tornar-se no arquétipo dos posteriores boémios e proto-hippies. Gozar a vida para Diógenes era uma evidência quotidiana: estar deitado ao sol, observar as coisas do mundo a correr e ter tempo para pensar que afinal a ambição do rico de bens materiais é uma quimera que nunca mais pára, porque quanto mais se tem, mais se quer, porque tal ambição transformou-se num vício. E os viciados não têm cura, porque nunca mais se consegue parar o vício. É uma imbecilidade, passar toda uma vida a correr atrás do dinheiro, quando é qualquer coisa que já se tem, e não é um fim mas um meio. Um meio que no fim de contas não faz melhor do que o que ele já faz: gozar a vida. Cuidar do próprio corpo, apanhando sol, e assim viver com alegria sem ter nada que esperar. E como não tendo nada que esperar, também não tem por que se chatear. 

Uma razão do celibato do Papa poderá ser elucidada por histórias como a de Sócrates e Xantipa. E esse é o cinismo do Papa, ao esconder a prática canónica do catolicismo em relação à sexualidade. E até parece que está a par do caso de Famalicão, quem sabe? Se a Igreja Católica não tivesse afirmado que Santa Maria era virgem quando deu à luz Jesus … que ficou grávida por obra e graça do Espírito Santo – uma tese mesmo forte! - ainda poderia haver margem de manobra. Assim, o corpo, e, por conseguinte, o prazer, caíram no lado errado da história do ocidente cristão. Por que foi então que o cristianismo quis santificar o corpo do comum dos mortais? O lado animal do ser humano. É esta metafísica dualista do cristianismo que é cínica com as suas restrições em relação à sensualidade sexual. Pelos relatos de uma seita do século IV - os gnósticos -, parece que na época as coisas não se passaram bem assim. 

Nesta era covid, logo pela manhã, ao pequeno almoço, formara-se uma fila para os ovos mexidos. Ao meu lado, uma velha, seca, maldosa, que já se servira de ovos em abundância, apoderou-se sem hesitar das três últimas salsichas que restavam. O fulano à minha frente, e que se lhe seguia, um latagão aí com quase dois metros e 130 quilos no mínimo, ficou petrificado, com o garfo na mão a apontar para a travessa a meio do trajeto. Um rubor de indignação espalhou-se-lhe pelo rosto. Ela como se nada fosse, com o egoísmo senil e inconsciente das velhas, encaminhou-se para a mesa, onde estavam as colegas a observá-la, num passo saltitante e com um risinho de escarninho. E o latagão dominou-se, voltando para junto dos seus sem salsicha.

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