segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Do Decameron


“Foi tamanha a crueldade do céu, e talvez em parte dos homens, que se tem por certo que do mês de março a julho mais de cem mil criaturas humanas perderam a vida dentro dos muros da cidade de Florença, e que talvez, antes dessa mortandade, não se imaginasse que lá haveria tanta gente assim. Oh, quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas nobres moradas, antes cheios de criados, senhores e senhoras, esvaziaram-se de todos, até o mais ínfimo serviçal. Oh, quantas memoráveis linhagens, quantas grandes heranças, quantas famosas riquezas ficaram sem seus devidos sucessores. Quantos homens valorosos, quantas belas mulheres, quantos jovens airosos, que ninguém mais que Galeno, Hipócrates ou Esculápio teriam considerado saudabilíssimos, pela manhã comeram com familiares, companheiros e amigos, e à noite cearam no outro mundo com seus antepassados”
Em Florença, durante a Peste Negra de 1348, dez jovens encontram-se – um encontro governado pelo acaso – na igreja de Santa Maria Novella. São sete raparigas e três rapazes que, para fugir da pestilência e do embrutecimento da vida na cidade, decidem retirar-se para uma villa nas vizinhas montanhas de Fiésole, para lá então, em amena convivência, num jardim que remete à filosofia de Epicuro, passar os dias entre cantos e danças, e a contar histórias: as novelas.

Em cada dia é eleito o rei ou rainha da jornada, a quem cabe indicar o tema que deve ser tratado nas narrativas. Também a cada dia há a permissão para que uma das novelas cumpra um assunto livre. Em dois dias da semana a atividade é suspensa por respeito à religião: a sexta-feira, dia da paixão de Cristo, e o sábado. Além disso, a primeira e a nona jornadas não estão ligadas a um tema, e Dioneo, um dos três rapazes, pode escolher livremente o tema da sua novela. O retiro em Fiésole dura duas semanas, e são dez os dias dedicados às narrativas. Boccaccio constrói um microcosmo, refletindo no âmbito das cem novelas todos os aspetos da vida humana, em todos os níveis sociais. 
Decameron é uma palavra que tem origem no grego: deca = dez, e emerai = dias. Há nele também uma referência ao Heptameron, obra de Santo Ambrósio que conta a criação do mundo em sete dias. Assim como a Divina Comédia é composta por cem cantos, o Decameron possui cem novelas, unidas por um sistema de molduras literárias e escritas em dialeto toscano. 

Boccaccio é descendente de mercadores florentinos, e o seu primeiro idioma é o volgare toscano. Seu pai, após casar em 1319 com uma jovem familiar de Portinari (a Beatriz de Dante era casada com um Portinari), reconheceu oficialmente o filho e o levou para casa. Giovanni nunca se deu bem com o pai, pois era avesso às suas atitudes mesquinhas típicas de mercador. Sua inclinação para a poesia apareceu desde muito cedo, e já aos seis anos de idade possuía algum domínio da leitura e da escrita. Na adolescência voltou-se para o estudo do latim, que veio a dominar como um mestre. 

Aos 12 anos de idade o pai manda-o para Nápoles. Nessa cidade a burguesia florentina havia implantado uma grande praça bancária e mercantil, e o Banco Bardi, ao qual seu pai estava ligado, praticamente controlava os negócios desse reino. Lá, o adolescente Giovanni desperdiça seis dos seus melhores anos na vã tentativa de servir ao dinheiro. Aos dezoito anos, em 1331, começa a estudar direito canónico, mas sem nenhum entusiasmo. A corte de Nápoles, nessa altura, era uma das mais brilhantes da Europa, era a síntese do mundo mediterrânico, onde reinava a dinastia d’Anjou, um ponto de encontro único da cultura ítalo-francesa com a cultura árabe e bizantina. Giovanni com a sua natural inclinação pela poesia e pela antiga sapiência, lê Virgílio, Ovídio e Estácio. Roberto d’Anjou era um grande mecenas. E Giovanni inicia os seus estudos de grego com Barlaam de Seminara, um monge bizantino, matemático, filósofo, teólogo e estudioso da música.

Entretanto, os Bizantinos já sentiam a pressão dos Turcos, pelo que já não tinham nada a perder ao juntarem-se aos Católicos. Em 1333, quando Giovanni Boccaccio tinha vinte anos, essa questão aparece com grande força justamente em Nápoles, ponto de encontro dessas civilizações. O monge Barlaam de Seminara, um dos mais convictos defensores da unidade entre as igrejas do Oriente e do Ocidente, teve como missão defender os interesses e razões dos bizantinos junto dos católicos. Foi nesse sentido que Barlaam apresentou duras críticas a uma prática ascética muito difundida em Constantinopla no século XIV - o hesicasmo -, que exercia forte influência sobre o trono de Bizâncio. Pior, os hesicastas eram contrários à aliança com os católicos, e mesmo indiferentes às coisas do mundo. A palavra vem do grego e significa paz interior e ausência de preocupações, e seus adeptos praticavam a onfaloscopia, ou seja, a observação do umbigo enquanto recitavam repetidamente uma mesma oração. Tal tendência dividia os chefes religiosos desse império teocrático, o que acabou por contribuir para enfraquecê-lo na luta contra os turcos.

É assim que em 1341 Barlaam – depois de ter sido enviado pelo imperador Andrónico III em missão diplomática a Nápoles; Avignon (sede da Igreja Católica na época); e Paris - para uma união contra os turcos -, culminou num concílio geral em 1341. Como este concílio deitou por terra as ideias de Barlaam, este decide abandonar Bizâncio e aderir à igreja do Ocidente. Foi quando Boccaccio o conheceu. Em 1342 Barlaam deixa Nápoles e vai para Avignon, onde conhece Petrarca. Também ensina grego e filosofia a Petrarca, outro personagem de relevo no início do Renascimento.

Podemos dizer que o período napolitano de Boccaccio na corte d’Anjou, entre os anos de 1331 e 1340, foi decisivo para a sua formação cultural, social e espiritual. Período dourado que chegou ao fim quando o Banco Bardi, ao qual o seu pai estava ligado, entra em grave crise. Caído na pobreza, o seu pai chama-o de volta a Florença. Em 1341, depois de uns ricos 16 anos vividos em Nápoles, ei-lo de novo em Florença. Nesse novo ambiente continua a sua trajetória literária, compondo em volgare - na rica língua do povo que Dante empregara na Divina Comédia - obras como Ninfale d’Ameto ou Commedia delle Ninfe fiorentine (1342), Elegia di madonna Fiammetta (1344), Amorosa Visione, Ninfale Fiesolano (1346) e a Commedia delle Ninfe. Em 1348 o mundo desaba em Florença. É o ano da Peste Negra:
« Maior era o espetáculo da miséria da gente miúda e, talvez, em grande parte da mediana; pois essas pessoas, retidas em casa pela esperança ou pela pobreza, permanecendo na vizinhança, adoeciam aos milhares; e, não sendo servidas nem ajudadas por coisa alguma, morriam todas quase sem nenhuma redenção. Várias expiravam na via pública, de dia ou de noite; muitas outras, que expiravam em casa, os vizinhos percebiam que estavam mortas mais pelo fedor do corpo em decomposição do que por outros meios; e tudo se enchia destes e de outros que morriam por toda a parte. Os vizinhos, em geral, movidos tanto pelo temor de que a decomposição dos corpos os afetasse quanto pela caridade que tinham pelos falecidos, observavam um mesmo costume. Sozinhos ou com a ajuda de carregadores, quando podiam contar com estes, tiravam os finados de suas casas e os punham diante da porta, onde, sobretudo pelas manhãs, um sem-número deles podia ser visto por quem quer que passasse; então, providenciavam ataúdes e os carregavam (alguns corpos, por falta de ataúdes, foram carregados sobre tábuas). Um mesmo ataúde podia carregar dois ou três mortos juntos, e isso não ocorreu só uma vez, mas seria possível enumerar vários que continham marido e mulher, dois ou três irmãos, pai e filho, e assim por diante. E foram inúmeras as vezes em que, indo dois padres com uma cruz para alguém, três ou quatro ataúdes, levados por carregadores, se puseram atrás dela: e os padres, acreditando que tinham um morto para sepultar, na verdade tinham seis, oito e às vezes mais. E tampouco eram estes honrados por lágrimas, círios ou séquito; ao contrário, a coisa chegara a tal ponto que quem morria não recebia cuidados diferentes dos que hoje seriam dispensados às cabras; porque ficou bastante claro que, se o curso natural das coisas, com pequenos e raros danos, não pudera mostrar aos sábios o que devia ser suportado com paciência, a enormidade dos males conseguiu tornar mais sagazes e resignados até mesmo os ignorantes. Não sendo bastante o solo sagrado para sepultar a grande quantidade de corpos que chegavam carregados às igrejas a cada dia e quase a cada hora, abriam-se nos cemitérios das igrejas, depois que todos os lugares ficassem ocupados, enormes valas nas quais os corpos que chegavam eram postos às centenas: eram eles empilhados em camadas, tal como a mercadoria na estiva dos navios, e cada camada era coberta com pouca terra até que a vala se enchesse até cima.»

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