segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Pathos esquizoide e pressentimento vital



Não temos o mais pequeno motivo para crer que as pessoas de 1918 eram muito diferentes das de hoje. Só por soberba poderemos imaginar que agora nós estamos muito mais avisados. Em 1914 a Grande Guerra foi conduzida apenas por exércitos de voluntários. Não havia necessidade de obrigar ninguém a partir para a frente. Mas no outono de 1918 o Império Alemão ruiu numa grande anarquia. Os nacionalistas militares não queriam aceitar que a guerra estava perdida. Estavam ainda à espera de serem reconhecidos como heróis. Os partidos de Weimar estavam dispostos a um novo começo. Mas os espartaquistas, os comunistas, os expressionistas, enfim todos aqueles que conotados como “cobardes”, reclamavam uma nova sociedade, novos valores, novos princípios. É preciso conhecer todas estas idiossincrasias para compreender como o fascismo alemão na forma de nazismo adquiriu a sua força.

Quando a 1 ª Guerra acabou, ninguém era capaz de admitir que passado vinte anos viria outra ainda pior. Quem a partir daí falasse em crise de civilização é porque não estava bom da cabeça. Durante os poucos anos da República de Weimar, o ninho da 2ª Serpente, foi a crise económica que lançou a faísca. Quem via a catástrofe aproximar-se, tratava primeiro de tirar daí o seu proveito: "Não fique tão sério meu rapaz, o melhor é divertir-se". Havia uma encenação política de felicidade desavergonhada, em que o crime adquiria o peso de um acontecimento histórico. Numa convicção absolutamente paranoica cada um partiu do princípio de que só o equilíbrio do terror progressivo poderia garantir a chamada paz.

A 30 de maio de 1932, ao meio dia, Brüning entrega a demissão do governo ao presidente do Reich. Para as pessoas com discernimento, é claro que o sistema ruiu. Neste ano sucederam-se a seguir três chanceleres. Nos dois governos a seguir ainda não havia nazis. Mas Goebbels ia tomando notas. As eleições de julho já tinham feito dos nazis o partido mais forte. Em 1932, o número de desempregados elevara-se a mais de 6 milhões, 3,8 milhões dos quais na Prússia e quase meio milhão só em Berlim, na capital do Reich. Em 1932, o partido social-democrata, com as suas táticas e jogos duplos, uniu-se aos sindicatos operários e alguns grupos republicanos sem partido, numa aliança contra o fascismo sob o nome marcial de "frente de ferro".

A capital do Reich estava febril. Todas as noites transportavam cadáveres para a polícia. O mais das vezes eram simplesmente pessoas desesperadas que se suicidavam em casa com gás, cuja cor verde no rosto e o cheiro adocicado do gás não enganava. E a frase que mais se ouvia era: "isto não pode continuar". O presidente Hindenburg, o menor mal, ao fim de nove meses, entregava o ato de nomeação ao maior mal: Hitler. Karl Radek, líder bolchevique soviético que estava em Berlim num desses dias, chegou a dizer que os operários alemães suportariam Hitler durante dois anos: "Que são dois anos de Hitler se a seguir formos nós quem vem?" Era administrar ao capitalismo a dose de veneno que lhe iria encurtar o caminho para o colapso.

O nome oficial do país ainda era Império Alemão, tendo permanecido inalterado desde 1871. A República de Weimar é a designação histórica pela qual é conhecida a república estabelecida na Alemanha em 1919, após a Primeira Guerra Mundial, e que durou até ao início do regime nazi em 1933. Weimar é uma pequena cidade do Estado alemão da Turíngia, muito próxima de outras com óbvias ressonâncias marxistas, como Erfurt, Gota e a hegeliana Jena. Este período tem o nome de Weimar por ter sido nesta cidade que reuniu a assembleia nacional constituinte da República com nova constituição. No final do século XVIII, não chegando a 6.000 habitantes, foi habitada pelos dois grandes escritores alemães, Goethe Schiller. E nasceu aí o movimento arquitetónico da Bauhaus. Em termos arquitetónicos a Berlim dos últimos anos da República de Weimar era herdeira de uma linha neoclássica bastante conseguida, mas, na maior parte da sua área, acabará por se ver constituída, por um lado, na zona oriental acentuadamente proletária - pois Berlim era um centro industrial -, pelos inúmeros pátios de quartéis de arrendamento que se distribuíam ao longo de ruas despidas de árvores; e por outro lado, na zona ocidental, muito mais verde e marcada pela classe média, por prédios de vários pisos, mais confortáveis. A Berlim de Weimar continuava a ser essencialmente a Berlim de Guilherme II. 

No campo da História, já sabemos, quem campeia é a Ironia. Weimar passou a significar o fracasso da Democracia por se ter entregado nos braços do nazismo. Por isso, quando agora começamos a ver a Democracia ameaçada por todos os lados vêem-me à memória as leituras pregressas da História Mundial das Duas Guerras. A História nunca se repete seguindo o mesmo roteiro, mas também não precisa cair no fascismo ou no nazismo convencional para que os demónios voltem a andar por aí à solta.

As circunstâncias em que foi criada a República de Weimar foram muito especiais. Prestes a perder a Primeira Guerra Mundial, a liderança militar alemã, altamente autocrática e conservadora, atirou o poder para as mãos dos democratas, em particular o SPD, que acabou por ter de negociar a paz (ou seja, a derrota na guerra). Com isso, ficava no ar o saudosismo de uma nação outrora poderosa, nos tempos do imperador, em comparação com a nova realidade democrática, cheia de derrotas e humilhações. Sebastian Haffner chamou-lhe uma "República sem republicanos". Kurt Tucholwski chamou-lhe: "O negativo de uma monarquia, que só não o é porque o monarca fugiu". O imperador Guilherme II viu-se obrigado a abdicar.

O que torna tão surpreendente esse período é o enorme contraste: um florescimento do tipo da Renascença - desde as artes, literatura até ao pensamento filosófico mais exuberante: Hermann Hesse, Thomas Mann, Alfred Döblin, Bertolt Brecht e Kurt Tucholsky, foram testemunhas privilegiadas dessa época. Mas também pintores (Paul Klee e George Grosz, por exemplo), arquitetos (não só os da Bauhaus) e cineastas (Fritz Lang, o autor de Metrópolis, e J. Von Sternberg, cujo filme O Anjo Azul eternizou Marlene Dietrich). No pensamento: Husserl, Jaspers, Benjamin, Wittgenstein…

É claro que nem Weimar nem o populismo explicam tudo. Em política, e a nível mundial, há muitos mais protagonistas a jogar no tabuleiro da geoestratégia política. O Governo de Weimar teve de enfrentar autênticos processos revolucionários marxistas, como a Revolta Espartaquista em Berlim e a eliminação da República dos Conselhos da Baviera, de inspiração soviética. E havia também a dificuldade de integrar a velha classe dominante que nunca acreditou realmente na democracia, tendo vindo depois a confiar ingenuamente no nazismo, como um instrumento que esperavam controlar para alcançar os seus objetivos. E havia os judeus da diáspora, que apesar da sua grande cesura a partir de 134 d.C. ostentava o signo de David, aquele que havia feito frente a Golias. Seguindo a narrativa de Flávio Josefo, para os alemães Jesus era um judeu dissidente. O cristianismo era como se tivesse sido a prossecução da resistência judaica contra o Império Romano por outras vias, tendo-o tomado por dentro. O que irritava os alemães era que, para a sua consciência irritantemente arrogante, o seu saber histórico funcionava como uma narrativa irónica acerca do declínio dos outros. Daí terem sido eles o alvo de um ódio singularmente atroz, que atingiu o cúmulo da vontade exterminadora. Para o fascista o judeu era um insolente, um cínico. E foi assim que os fascistas alemães, para reconstruirem a sua própria grandeza, decidiram construir campos de concentração para exterminar os judeus, o maior obstáculo à grandeza dos alemães.

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