segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Para quê, ler os clássicos? Harold Bloom

 


Boccaccio dedica a obra às mulheres que amam, símbolo de uma nova visão da vida. A peste funciona como o enquadramento apocalíptico de duas realidades: a das dez personagens; e a das novelas por eles narradas. A Peste Negra explica e justifica o conteúdo e naturaliza as novelas, absolvendo protagonistas e narradores de qualquer suspeita de obscenidade. Mostra também um momento no qual as diferenças sociais, os vínculos mais sagrados, o sentido daquela moralidade que havia sido o suporte da moralidade medieval estão se dissolvendo para dar lugar a um significado novo da vida.

A narrativa do Decameron é dedicada à doçura e ao prazer, mas tem um “orrido cominciamento”, isto é, principia com a descrição do horror da Peste Negra devorando a cidade de Florença. A doença subverte a ordem moral e civil, anula a autoridade da lei, quebra todas as barreiras e defesas, invadindo e dissolvendo todos os ambientes sociais; os sobreviventes são vítimas do “pavor da imaginação” que arruína todos os costumes e todos os hábitos. Não se respeitam mais as diferenças de classes sociais, e explodem todas as reservas ditadas comumente pelo pudor e pela conveniência.

Boccaccio é um homem do Renascimento. Descreve com mestria as principais formas de conduta que se estabelecem na crise: alguns escolhiam a luxúria desenfreada, entregando-se sem reservas à bebida e aos prazeres elementares; outros se recolhiam em grupos de oração, com práticas igualmente extremadas de autopunição; muitos ainda ficavam entre estes extremos. Outros, como os narradores, rompem os vínculos com este mundo já perdido. Não há uma escatologia intrínseca no texto, mas, ao contrário, a Peste é descrita com objetividade e racionalidade, indicando que o facto pertence mais ao mundo do homem e da natureza do que à esfera do pecado e do castigo divino. Em Boccaccio, a Peste e a iminência da morte não levam à contrição medieval, mas conduzem a uma concepção inteiramente laica da vida, em que o sagrado, embora existindo, não se preocupa com as vicissitudes humanas, tal como nas filosofias éticas antigas, como o epicurismo e o estoicismo.

O modo como a narrativa se estrutura conduz à restauração da ordem em novos termos: é, em si, uma resposta ao Caos que a Peste trouxe para a cidade. A vida do grupo dos narradores, por ser voltada para o prazer elevado ou, o que dá no mesmo, à privação da dor, torna-se uma coexistência conveniente e honesta, a imagem ideal de uma renovada forma de vida cívica. As relações no interior do grupo são radicalmente decorosas, apesar da matéria erótica estar presente em muitas novelas. O mundo deles não é um mundo arruinado, nem é um carnaval macabro, mas um conjunto estilizado e bem composto. Alguém poderia censurar nas personagens a indiferença pelo sofrimento dos que permanecem na cidade. No entanto, pelo que a narrativa nos diz, a moralidade dos que lá ficavam e morriam estava dissolvida pelo modo como abandonavam parentes e amigos à morte e, desesperados de salvação, se entregavam à dissolução dos prazeres mundanos.



O calhamaço: "The Western Canon - The Books and School of the Ages", 1994, de Harold Bloom, foi muito mal recebido pela comunidade académica dos Estudos Literários, não apenas pela arrogância de Harold Bloom, que classifica a sua obra de “um marco elegíaco da sensibilidade literária formada com o Renascimento", mas também pela sua ironia demolidora em relação ao que dá pelo nome de "politicamente correto da Escola do Ressentimento”, uma escola de displicência em relação à objetividade científica, considera ele. Harold Bloom nunca foi nada meigo para as correntes estetizantes dos estudos literários, apelidadas de pós-modernas. Uma espécie de saco onde mete uma série de tópicos e disciplinas da crítica literária contemporânea como: semiótica; psicanálise; desconstrução; feminismo; multiculturalismo; marxismo ou novo historicismo. O tema do ressentimento remete para um jargão que foi colado a pensadores como Marx, Nietzsche e Foucault.

A intelectualidade académica, a certa altura, verificando que estava a cair no ridículo, para se auto-justificar, pela eventual cedência do flanco a Bloom, quando numa aula algum professor pertencente a essa intelectualidade dizia apenas 'o ressentido', e não 'a ressentida', fazia questão de ressalvar que se tratava de qualificar o ente ou o sujeito. Se fosse 'sujeita ressentida', ou 'enta ressentida', para além de erro gramatical, e um oximoro, portanto, a palavra “sujeita” veiculava uma conotação pejorativa na psicologia popular do senso comum.

O Ressentimento remonta a Nietzsche. Nietzsche é um trágico e o seu pensamento mais forte postula que uma tendência resulta da sua própria condição contrária. Não se trata, portanto, de eliminar, mas de acomodar como se de um amortecedor se tratasse. A essência do Ressentimento reside na pulsão de eliminação fundada na culpabilidade. Quando não é de culpabilidade que se trata, mas de defeito. Este é o jargão nietzschiano: “O Ressentimento é a face niilista de um combate que é preciso empreender no devir, com ele, mas para o transformar em futuro”. Dito por outras palavras: não é boa ideia combater o “Ressentimento”, porque ao combatê-lo está-se a ser tão ressentido quanto o que se quer combater. Ou seja, o combate ao Ressentimento vai gerar mais Ressentimento de ambos os lados. 

Nietzsche, identifica o devir proletário, enquanto perda de individuação, na sua luta contra o capitalismo. Mas está no código genético do capitalismo ter de ir até ao fim do seu processo. E isto é trágico no sentido nietzschiano, como se pode ver hoje, o capitalismo já vai no extremo, e ainda assim continua a explorar o seu “hiperindustrialismo maquínico” no estádio digital. A dualidade entre o otium e o negotium, condiciona a interpretação e a retenção daquilo que vai constituir a educação, e por fim, traduzido em cultura. Práticas de cultura que se não forem transmitidas por um mestre, tendem a recair na vulgaridade das coisas. O otium é o que constitui o labor das retenções secundárias que dão origem a uma cultura coletiva. O otium do povo são as celebrações administradas num calendário ao longo do ano, onde os crentes cultivam a sua fé praticando o seu culto. São, por assim dizer, sincronizações do processo de individuação psíquica com o coletivo. Nesta sincronização oscilante, otium e negotium não são propriamente polos opostos. Aristóteles, a quem se deve esta diatribe, postula como princípio uma diferença absoluta entre a vida daqueles que estão em estado de necessidade, de subsistência, e daqueles que são livres para contemplar o belo, seja nos prazeres, seja na mera contemplação cósmica.

Harold Bloom [1930-2019] foi professor de Humanidades na Universidade de Yale. 
Desde a publicação de seu primeiro livro em 1959, Bloom escreveu mais de quarenta livros, incluindo vinte livros de crítica literária, vários livros discutindo religião e um romance. Ele editou centenas de antologias sobre numerosas figuras literárias e filosóficas para a editora Chelsea House. Bloom foi autor de diversas teorias controversas sobre a influência da Literatura, além de um defensor ferrenho da literatura formalista (a arte pela arte), em oposição a visões marxistas historicistas, pós-modernas, entre outras. 

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