terça-feira, 8 de setembro de 2020

De ‘Homem sem Qualidades’ de Musil, a ‘Um Homem é um Homem’ de Brecht


O verdadeiro sujeito da única Guerra Mundial, com vinte anos de intervalo, é a maquinaria militar. A esse sujeito contrapôs-se um outro sujeito dado pelo nome de classe operária. Rasgava-se o véu individualista burguês para ser substituído por um grande manto coletivo. Nas suas recordações, o homem alemão fala de castração por balas. A derrota era vivida como uma emasculação sociopsicológica.

Bertolt Brecht expôs criticamente e explorou experimentalmente a inversão do entendimento burguês-individualista do eu, execrada como niilista. Na sua época tornou-se um mestre do tom cínico, e em quase todas as suas peças consolidou a sua reputação de escritor ímpar. A "objetividade" funciona como a forma de comparticipar, de estar-no-tempo. Não ficar para trás, não alimentar ressentimentos, não cultivar antigos valores, mas apreender o que agora está em jogo, e o que há que fazer. Brecht propiciou o modelo disto, no célebre intermédio da comédia: “Um Homem é um Homem”.


A “objetividade” militar, de que a cultura de Weimar tanta coisa herdou indiretamente, está por seu turno implicada num vasto processo para o qual Walter Rathenau, assassinado em 1922, encontrará uma fórmula eloquente: a mecanização do mundo. Rathenau era um político burguês, e ao mesmo tempo grande empresário e filósofo. O seu ponto de partida para descrever a mecanização do mundo não é o exército, mas a grande cidade. Rathenau começa por centrar a atenção no processo de construção. 


[...] Por infelicidade não há nada mais difícil de reproduzir em literatura do que um homem que pensa. Um grande descobridor, quando certa vez lhe perguntaram como conseguia ter tantas ideias novas, respondeu: “pensando nisso o tempo todo”. E com efeito, pode-se dizer que as ideias inesperadas só aparecem porque esperamos por elas. Constituem em grande parte um resultado positivo do caráter, de inclinações constantes, de ambição persistente, de ocupação incansável. Como deve ser monótona essa persistência! Por outro prisma, a solução de uma tarefa intelectual não acontece de modo muito diferente do que quando um cão, levando um bastão na boca, quer passar por uma porta estreita; ele vira a cabeça para a esquerda e a direita, até o bastão entrar, e nós agimos de modo muito parecido, apenas com a diferença de que não tentamos fazer isso de modo inconsciente, mas, pela experiência, já sabemos mais ou menos como proceder. E embora uma cabeça inteligente tenha muito mais habilidade e experiência nos movimentos do que uma cabeça tola, a solução também para ela chega de forma inesperada, acontece de repente, e sentimos com vago espanto que os pensamentos se fizeram por si, em vez de esperarem pelo seu autor. Essa sensação de assombro é o que muita gente chama hoje em dia de intuição, depois de antigamente a chamarem inspiração, e acreditam dever enxergar nela algo de supra pessoal; mas é apenas algo impessoal, isto é, a afinidade e solidariedade das próprias coisas que se encontram dentro de uma cabeça. 

Quanto melhor a cabeça, tanto menos se percebe dela nesse processo. Por isso o pensamento, enquanto não está acabado, é um estado muito miserável, parecido com uma eólica de todas as volutas do cérebro; e quando fica concluído, já não tem a forma de um pensamento, como se experimentou, mas tem a forma de algo pensado, o que infelizmente é impessoal, pois o pensamento se dirige para fora e se comunica ao mundo. Praticamente não se consegue surpreender o momento entre o pessoal e o impessoal, quando alguém pensa, e por isso o pensamento é um facto tão embaraçoso para os escritores, que estes o preferem evitar. 

[...] O homem sem qualidades, porém, estava refletindo. Pode-se deduzir que ao menos em parte isso não era assunto pessoal. O que era, então? Um mundo que entra e sai; aspetos do mundo que se vão juntando numa cabeça. Não lhe ocorrera nada de importante; depois que se ocupara da água como exemplo, nada lhe ocorrera senão que a água é um ente três vezes maior que a terra, mesmo que se considere apenas o que todo mundo reconhece como água, rio, mar, lago, fonte. Por muito tempo se acreditou que é aparentada com o ar. O grande Newton acreditou nisso, e a maior parte de suas ideias ainda permanece hoje.
Na opinião dos gregos, o mundo e a vida tinham nascido da água. Ela era um deus: Oceano. Mais tarde inventaram ninfas, elfos, ondinas, nereidas. Fundaram-se templos e oráculos nas suas margens. Mas também se construíram as catedrais de Hildesheim, Paderborn, Bremen, sobre fontes, e, vejam só, essas catedrais ainda existem! E ainda se batiza com água! E não existem os amigos de curas pela água, e os apóstolos da natureza, cuja alma tem algo de um sadio tão singularmente sepulcral? Portanto, havia no mundo um lugar como um ponto borrado ou capim espezinhado. E naturalmente o homem sem qualidades também tinha em algum lugar da sua consciência a sabedoria moderna, quer pensasse nela ou não. E, nela, a água é um líquido incolor, inodoro e sem sabor, que em camadas mais grossas se torna azul, o que recitamos na escola tantas vezes que não o esqueceremos nunca mais, embora fisiologicamente também façam parte dela bactérias, substâncias vegetais, ar, ferro, sulfato e bicarbonato de cálcio, e no fundo a imagem arquetípica de todos os líquidos nem seja um líquido mas, dependendo, um sólido, um líquido ou um gás.
Por fim, tudo se dissolvia num sistema de fórmulas de alguma maneira interdependentes, e em todo o grande mundo só há algumas dúzias de pessoas que pensam a mesma coisa sobre algo tão simples como a água; todos os outros falam nela em linguagens que se situam entre hoje e alguns milênios atrás. Portanto, deve-se dizer que, mal reflete um pouquinho, o ser humano se encontra em meio a um grupo bastante caótico. 

Ulrich lembrou que realmente contara tudo isso a Clarisse, que era ignorante como um animalzinho; mas, deixando de lado todas as superstições que a formavam, sentia com ela uma vaga afinidade. E isso o ferroou como uma agulha em fogo.[...]

Der Mann ohne Eigenschaften (O Homem sem Qualidades) - Robert Musil 

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