sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Desta vez é o médico




Desta vez ele tinha transposto a fronteira entre médico e paciente, de ativo a passivo, de sujeito a objeto. Especialista médico que partilhava uma íntima familiaridade com a morte, velho internista quando ainda não havia oncologistas, geriatras ou intensivistas. Até ao surgimento da derradeira doença, ele era simultaneamente médico e paciente de si mesmo. A sua vida podia ser compreendida como a soma das suas escolhas. Aliás, ainda estão vivos, num bom punhado, médicos que nunca foram ao médico. Portanto, se há quem se saiba muito bem "ser mortal" é este tipo de médico que não vai ao médico...

Ele não tinha ido ao gabinete do colega atrás de um plano de tratamento. Ele tinha um tumor com metástases de um órgão que ele se havia fartado de mandar citostáticos para dentro das veias dos outros, um número considerável de doentes. Tinha experiência suficiente para saber qual era o melhor caminho clínico a seguir. O que ele procurava era o consolo de uma sabedoria oracular, agora que o tempo começava a encolher. Podia ser mais tare do que imaginava, mas de certeza mais cedo do que desejava.

Parte da crueldade não estava apenas no limiar do tempo; estava na progressiva falta de forças, reduzindo em muito o que podia fazer num só dia. Mas, mesmo que tivesse energia, preferiria uma abordagem mais próxima da tartaruga do que da lebre. Ou será o contrário? Será que o tempo se dilata quando nos movemos a alta velocidade, e se contrai quando mal nos movemos? Deve ser, os dias estendiam-se consideravelmente.

Curioso…com pouca coisa para distinguir entre um dia e o seguinte, o tempo começou a parecer estático. O tédio tinha tomado as rédeas do tempo. Agora a hora do dia não significa nada, nem mesmo o dia da semana tem algum significado. A cura da medicina é fixada num ponto futuro, adiando a gratificação. Grandes avanços dali a cinco anos! A ciência básica já descobriu a solução. Agora falta pôr em prática: “Posso estar morto. Posso não estar. Posso estar com saúde. Posso escrever um livro. Não sei.” É inútil passar o tempo a pensar no futuro – quer dizer, o futuro neste caso é logo, depois do jantar.

Todos sucumbem à finitude. Das ambições, umas realizadas outras abandonadas, de uma forma ou de outra elas pertencem ao passado. O caminho do futuro, em vez de ser uma escada, é uma corda bamba num perpétuo presente. Dinheiro, status, todas as vaidades que os pregadores do Eclesiastes descrevem têm muito pouco interesse. Onde já vai o tempo da caça ao tesouro?

Para entrevermos o que se trama neste teatro, faz bem ler os antigos, que são aqueles que falam das emoções pensantes: o pânico grandioso, o riso radical, perturbações intensas que põem em marcha a reflexão, como a do herói que se dirige para a sua destruição, para uma morte inelutável. Pelo menos é o que parece. A tragédia é mais enigmática do que aquilo que se pensa. Na etimologia: tragédia significa “o canto do bode”. Mas ninguém sabe dizer porquê. Apenas uma ínfima amostra se salvou do que Ésquilo, Sófocles e Eurípides escreveram.

Os homens da Antiguidade davam muita atenção à morte. E para isso meditavam muito acerca do Tempo, sobre o instante e a duração. Sobre as relações entre a plenitude de um momento, e a sucessão dos dias e dos anos. Paradoxalmente hoje não apenas perdemos tempo, como falta tempo: "gostava de estar aqui mais tempo a falar consigo, mas não posso, não tenho tempo. Só tenho vinte minutos para cada consulta". E assim enganamo-nos pensando que fugimos à morte. Todavia, a companhia pachorrenta dos Antigos pode ajudar a corrigir as disfunções dos Modernos. A espera da morte, o cuidado da sua preparação, a celebração da sua vinda não figura na agenda dos Modernos, a repelirem o limite com a barriga, mas sem olhar para ele: o caso. Hoje não se vê partir um ente sem arrependimento. Podia-se ter feito mais, e mais, e mais. Se calhar, se...Ao menos nas rábulas mitológicas dos Antigos há os deuses. E há os mortais, que somos nós. Imortais são só os deuses. Pois uma vida que ignora, que escolhe não saber, que crê prosseguir indefinidamente, deixa de ser uma vida humana. Uma ideia semelhante é transmitida por Platão no Fedro. Os filósofos aprendem a morrer desligando-se progressivamente dos bens deste mundo, recusando agarrar-se à existência, não se deixando levar pelos desejos, pelos prazeres sensacionais do corpo. 

Todas as escolas de sabedoria dos Antigos não faltava tempo para dominar o medo de morrer. Ensinavam a vencer o pânico, para que se pudesse viver uma vida serena. Epicuro ensinava que não havia nada a temer. Já o passamento era outra coisa. É no momento do passamento que nos é revelado aquilo de que uma vida é feita. O que se é. Para os homens da Antiguidade, o momento da viagem no barco de Caronte, era o momento da verdade, verdade revelada no momento crucial para o verdadeiro esclarecimento. Montaigne perpetuou essa tradição, dizia ele: “Vê-se o fundo do pote”. Sócrates foi forçosamente exemplar, forçosamente sublime. Empédocles lançou-se à lava do Etna, deixando apenas as suas sandálias. Crisipo morreu a rir depois de ter visto um burro comer figos a seu lado. Diógenes morreu de uma intoxicação por ter comido polvo cru.

Conde de Gloucester, personagem do Rei Lear, queixa-se do destino humano como “moscas para meninos travessos”. Mas é a vaidade de Lear que coloca em movimento o arco dramático da peça. O indivíduo passa a ocupar o centro do palco. Até aí, antes de Shakespeare vivia-se num mundo diferente, num mundo de forças sobre-humanas, em que havia mais tragédia. Nenhum grande esforço pôde ajudar Édipo e seus pais a escaparem ao destino. O seu único acesso era às forças que controlavam o destino, que se davam a conhecer através dos oráculos dotados de visão divina.

Calano é um sábio da Índia que se tornou célebre por via de Alexandre Magno. Um exemplo de morte filosófica a oriente que deixou poucos traços na cultura a ocidente. Plutarco fala dele em Vidas Paralelas, juntamente com um tal Dandamis. Dois sábios indianos que impressionaram Alexandre. São os sábios nus, que os Gregos apelidaram de “gimnosofistas”, renunciadores de qualquer tralha. Sobre as relações de Alexandre com as sabedorias da Índia existem vários testemunhos, nomeadamente o do Pseudo-Calístenes, que em O Romance de Alexandre oferece indicações interessantes. Entre os Gregos e os filósofos da Índia, as relações foram, com efeito, mais numerosas do que geralmente se pensa. Mais do que tudo, foi a morte de Calano que marcou os Gregos, depois de ter acompanhado as tropas de Alexandre cerca de um ano. Eis os termos em que Plutarco faz o seu relato:

Calano que, desde há algum tempo, sofria dos intestinos, pediu que lhe acendessem uma fogueira. Para lá se dirigiu a cavalo e depois, após ter rezado, após se ter consagrado deitando sobre si próprio libações e ter oferecido em premissas uma madeixa de cabelo, subiu à fogueira, saudando com a mão os macedónios presentes e convidando-os a passar o dia alegremente e a beberem com o seu rei: ele cedo iria revê-lo em Babilónia, declarou. Depois de o dizer, deitou-se e tapou o rosto. À aproximação do fogo, não se mexeu e manteve a posição de adotara ao deitar-se. Este sacrifício era conforme aos costumes dos sofistas do seu país. 
Este relato é, contudo, estranho, porque havendo casos descritos de imolações em vida pelo fogo, a incineração era habitual depois da morte. No entanto, esta cena tornou-se canónica para os Gregos. A morte de Calano originou um mito perene sobre a morte dos sofistas indianos. Esta coragem enigmática de suicídio de Calano era para os Gregos o indicador de um domínio excecional que estes sábios superiores manifestavam sobre si próprios. 

É possível que os Estoicos se tenham inspirado nestes relatos de filósofos orientais lendários, cujo modelo bem nítido nos chegou pelo exemplo de Séneca e a sua morte. Para Séneca, a morte faz parte da vida desde que nascemos, acompanha-nos de uma ponta à outra da nossa vida em crescendo. Vivemo-la todos os dias. Progredimos para ela de hora a hora. Por isso, um sábio não é sábio apenas pelo que sabe em teoria, mas mais pelo que consegue pela ação. Um estoico só é estoico na ação. E o sábio deve poder ser livre de escolher a sua morte, pensa ele. Daí o seu longo fascínio pelo suicídio. Este pensamento acompanha Séneca ao longo de toda a sua vida filosófica.

Imaginemos que não morríamos: seríamos completamente diferentes. Não seríamos seres humanos de verdade. Pois aquilo que nos define, sem dúvida, é, antes de tudo, diz Séneca, “sermos hóspedes de passagem”. O importante não é o comprimento de uma existência, o número dos seus anos, mas a sua intensidade e, sobretudo, a sua retidão. Uma vida digna. Morrer bem é saber abandonar sem gemer a mesa do banquete, não lamentar aquilo que é inelutável, termos vivido suficientemente de maneira correta e livre para não nos sentirmos apegados àquilo que devemos necessariamente deixar. 

Séneca no fim da sua vida esperava a todo o momento ser intimado pela “lei e ordem” de pôr fim à sua existência. E esperava-o porque não se era impunemente precetor de Nero. Aquilo em que Nero se tornou assinala a falha total da pedagogia de Séneca. Tudo aquilo em que Nero desejara tornar-se, era aquilo que Séneca não queria. Segundo Tácito, o fim de Séneca não se desenrola como previsto. A agonia é longa e difícil. O corpo de Séneca resiste longamente, um corpo magro, mas robusto e saudável. O sague dos pulsos corre pouco. Um corte nos membros inferiores, também pouco adianta. É necessário engolir um veneno que tinha como reserva. Este não produz o efeito esperado. É então levado para uma sauna onde acaba por sufocar sob o efeito conjugado das várias tentativas.

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