quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Apontamentos para uma história natural da mistificação


Sou do tempo do gajo-porreiro da boleia fácil. Mas não tenho a data para dizer quando mudou, o que é sintomático e esclarecedor: é que as mudanças são lentas e sub-reptícias em tempos normais. Só são abruptas em tempos anormais, como este da pandemia. Para este novo anormal temos datas, temos chavões, temos imagens de ruas cheias num dia. Imagens de ruas desertas no dia seguinte. E temos número de mortos. E temos, temos, temos uma nova infraestrutura psicológica da Nova Objetividade. Isto é esse realismo virtual das camadas mediáticas, e das camadas culturais urbanas a mudar o clima sociopsicológico com consciência e método.

Os gritos desesperados das prostitutas não surtiram qualquer efeito. Ainda que metafórico, seja como for, é terrível. E inelutável. São ensinamentos que se gravam fanaticamente em nossos cérebros. E nós dizemos: sim, presente, apesar de tudo, apesar desta suja vida, a morte acaba sempre por chegar bastante tarde. O problema não é morrer. O problema é morrer a tempo. Sabemos o que é a dor, o que é sofrer antes do tempo. Portanto, há que tomar aqui algumas decisões, porque estamos a viver coisas que não são nenhuma brincadeira. 



Feitos estes prolegómenos, vamos então ao que interessa: os vigaristas. 

Nunca como hoje as pessoas foram tão benevolentes com os vigaristas. Esta é a época, par excellence, para os vigaristas florescerem. Dá a sensação não haver dia em que as pessoas não esperem ser enganadas. Desde logo pela manhã, quando abrem a caixa do seu correio eletrónico. Enquanto uns a trabalhar e a tentar não passar por tolos, os vigaristas a tentar viver à custa desses tolos.

Mas agora deu-se outra reviravolta. Todo aquele que acreditava na segurança do dinheiro nos bancos, passou a ser um tolo. E aqueles que já não acreditam, mas continuam na mesma a ter o dinheiro nos bancos, são uns malucos. É este esvair do sentido de segurança que desagua em violência nas praças das grandes cidades. Gente furiosa. É esta a quintessência de movimentos simplificadores, com caráter fascizante. É aqui que os embusteiros jogam a sua cartada. As massas só demasiado tarde se apercebem que foram enganadas.

Em termos antropológicos, as origens do embuste remontam ao aparelho pulsional que vem do tempo dos primatas. A natureza teria dado aos primatas um instinto especial para poder viver em savana. Seja como for, Darwin descobriu que o embuste estava bem distribuído noutras espécies. Por conseguinte, a psicologia do burlão não é exclusiva da espécie homo sapiens, em que a trapaça começa logo de pequenino. E isto é assim porque este instinto nato, de dissimulação, está ligado à pulsão lúdica. O talento que começa por ser inocente, transforma-se numa pulsão consciente, se a atmosfera educativa for propícia: com educadores mentirosos. O burlão do conto do vigário de outros tempos é o corrupto de colarinho branco de hoje.

No mundo digital em que vivemos já ninguém consegue ser burlão sem um curso superior. E os tolos ainda não se habituaram a isso, porque um curso superior é suposto ter uma fachada de seriedade. Por outro lado, o burlão de hoje tem conhecimentos apurados de psicologia, sabendo manipular com mestria o dom da sedução e a indução da sugestão. E há ainda um paradoxo em que gente instruída teima em não acreditar: somos tanto mais estúpidos quanto menos ignorantes formos. Aqui, a racionalidade, sobretudo a racionalidade matematizada, perde em relação à intuição. A que outros chamam instinto. E a que outros, ainda, chamam: inteligência emocional.

Sem comentários:

Enviar um comentário