terça-feira, 29 de setembro de 2020

O Banquete de Trimalquião



O Banquete de Trimalquião é um dos capítulos do livro “Satíricon” de Petrónio. Dessa sátira notável dos tempos do imperador Nero sobrevivem apenas fragmentos, dos quais o mais significativo é este Banquete de Trimalquião, onde se fazem descrições detalhadas dum jantar luxuoso, extravagante e decadente, oferecido pelo que se poderia chamar um "novo-rico" romano. 

Na literatura clássica, o Satíricon constitui, de certo modo, um caso especial e único, quer pelo tema, quer pela estrutura narrativa, quer pelo estilo, afirmando-se como o proto-romance por excelência na tradição greco-latina. A forma como o seu autor soube reescrever a produção literária que lhe era anterior, inserindo-a num retrato da Roma imperial do tempo de Nero, simultaneamente refinado, crítico e divertido, faz de Petrónio, quase vinte séculos volvidos sobre a sua morte, um dos autores mais interessantes e modernos que a Antiguidade nos legou. Um romance satírico escrito em latim atribuído, sem absoluta certeza, a Petrónio [27 d.C. - 66 d.C.]. 

Aventuras numa Roma decadente. Giton e amigos, durante as suas andanças, são convidados para uma festa esplêndida organizada por um rico homem livre - Trimalquiãode quem eles conseguem escapar. Depois de uma discussão entre Encolpe e Ascylte sobre Giton, separaram-se. Giton parte com Ascylte, mas depois encontra Encolpe, que então conheceu o poeta Eumolpe. Embarcam, mas naufragam após uma tempestade perto de CrotoneEncolpe então encontra Circé, um residente de Crotone. Mas sentindo-se impotente, decide ir para uma residência da sacerdotisa de PríapeO enredo é essencialmente baseado na fuga e perambulação de um trio de jovens marginais. Um romance que aflora a homossexualidade no seio dos costumes romanos em fim de civilização. Daí ser considerado uma mensagem à civilização: pela descrição da decadência e da vida à margem. Também uma paródia constante aos grandes textos greco-romanos clássicos, em particular a Odisseia. A descrição de um mundo, dos comportamentos num quotidiano romano fim de império, que faz lembrar o nosso Eça de Queirós. Especialmente os traços de caráter dos personagens, e a psicologia das relações interpessoais, atingem uma dimensão bem moderna. O Satíricon influenciou profundamente a literatura mundial e foi adaptado à ópera, ao cinema, como foi o caso de Fellini, tendo entrado até na banda desenhada. 

Romance picaresco, uma inovação literária para a Antiguidade, tanto que poderia ser considerado o primeiro romance europeu. A história é complexa, porque o Satíricon que existe hoje é o resultado de vários manuscritos cujos caminhos ainda são obscuros. A identificação genérica, e o legado de Petrónio, é reconhecida no título do romance. Um romance de deboche sexual que através da sátira constitui um documento com forte mensagem moral. Essa é a característica do romance realista moderno. Apesar de várias inconsistências narrativas, o Satíricon é escrito num latim popular que testemunha a pesquisa estética e sociológica de Petrónio.

« Estávamos já no terceiro dia, aquele em que devíamos participar da ceia pública oferecida por Trimalquião; mas nós, com os corpos ainda doridos pelos golpes recebidos, preferimos fugir daquele lugar maldito. Voltamos apressadamente ao albergue e, deitados na cama, tratamos das nossas feridas com azeite e vinho. Todavia, aquele raptor, que não havia levado a melhor, jazia ainda no meio da estrada, e nós tremíamos de medo de ser apanhados. Quando, aflitos, procurávamos descobrir um meio de conjurar a tempestade que pairava sobre nós, eis que chega um escravo de Agamenon: “Não sabeis, então, em casa de quem se vai comer hoje? Em casa de Trimalquião, homem muito generoso, que tem no seu triclínio um relógio e um corneteiro sempre pronto a anunciar-lhe, de hora a hora, quanto tempo da sua vida já passou.” 

Ao ouvir estas palavras, esquecemo-nos de todos os nossos males, vestimo-nos à pressa, e Giton, que até àquele momento nos servia afetuosamente, obedeceu às nossas ordens acompanhando-nos ao banho. Lá chegados, ainda andamos à deriva até nos aproximarmos de um círculo de pessoas entretidas. Vimos um velho calvo, que vestia uma túnica vermelha, e jogava a péla com meninos de cabeleiras abundantes. Um velho de chinelos a exercitar-se com bolas verdes. Quando uma bola caía, não cuidava de apanhá-la; um escravo, com um saco cheio de pélas novas, estava sempre pronto a fornecê-las. Enquanto admirávamos todo aquele aparato, Menelau aproximou-se de nós e disse: “Eis ali o senhor que vos oferece a ceia. Prepararem-se para ela”. Assim falou Menelau quando vimos Trimalquião estalar os dedos e dele se aproximar rapidamente um eunuco, que colocou o vaso sob a sua túnica. Esvaziada a bexiga, pediu água para as mãos; molhou apenas as pontas dos dedos, e depois enxugou-as nos cabelos de um pequeno servo. Ao admirar boquiaberto todas estas coisas quase caí para trás, correndo o risco de quebrar as pernas. Com efeito, à esquerda da entrada, perto da portaria, via-se pintado sobre a parede um cão enorme, preso a uma corrente, e sobre o qual estava escrito o seguinte com letras maiúsculas: “Cuidado com o cão!” O susto que levei provocou o riso dos meus companheiros; e eu, retomando a respiração, quis observar pormenorizadamente toda a parede. Havia ali pintado um mercado de escravos cujos nomes e idade estavam escritos em cartazes, vendo-se também o próprio Trimalquião, que, na figura de um jovem de longos cabelos, com o caduceu na mão, entrava em Roma, guiado por Minerva. 
Era preciso muito tempo para contar todos os pormenores. Entramos no banho e quando o suor nos saía por todos os poros, passamos sem demora para o duche frio. Trimalquião, cheio de unguentos, fazia-se enxugar, não com toalhas de pano comum, mas com lã macia, enquanto diante dele três massagistas bebiam vinho de Falerno. E enquanto discutiam consumindo grande quantidade de bebida, Trimalquião disse: “É da minha adega o vinho que eles bebem à minha saúde!” 

Tomamos o nosso lugar à mesa, e vieram logo pequenos escravos de Alexandria com água gelada para as mãos; em seguida, outros nos lavaram os pés, limpando-nos as unhas com extrema delicadeza. E não ficavam calados ao executar um serviço tão ingrato; ao contrário, cantavam despreocupadamente. Levado pela curiosidade de saber se todos os servos cantavam, pedi algo para beber, e um esbelto rapaz, enquanto me servia, brindava-me, ao mesmo tempo, com uma canção desafinada. Do mesmo modo procediam os outros escravos, a quem se pedia qualquer coisa: "Quando eu era ainda escravo, morava no Vicus Augustus, precisamente onde está hoje a casa da Gavila. Ali, com a vontade dos deuses, apaixonei-me pela mulher de Terêncio, o estalajadeiro: vós conhecestes Melissa, a Tarentina, um belo pedaço de mulher. Mas, por Hércules, não era por seus dotes físicos, ou para proporcionar-me um instrumento de prazer que eu lhe fazia a corte, mas pelas suas qualidades morais. Eu podia pedir-lhe o que fosse, e ela jamais dizia não."

Envergonho-me de contar o que se seguiu. De uma maneira inaudita nos nossos costumes, jovens escravos de longos cabelos trouxeram, numa bacia de prata, unguento perfumado com o qual untaram os pés dos convivas, depois de os enfeitar com flores da coxa ao calcanhar. Puseram depois o mesmo unguento na ânfora do vinho e nas lâmpadas. Fortunata já demonstrava vontade de bailar, e Cintila, incapaz de falar, não podia senão aplaudir, quando Trimalquião disse: “Permito-te, Filargiro, que te sentes à mesa; e a ti também, Carion, ainda que sejas um famoso partidário dos verdes; diz a Menofila, tua companheira, para fazer o mesmo". Que hei de acrescentar? Pouco faltou para que não fôssemos atirados para fora, tão grande foi o número de escravos que invadiu o triclínio. Ao meu lado, em lugar mais alto, instalou-se o cozinheiro que cheirava a salsa e a molho. E, não contente de estar à mesa, pôs-se a imitar o ator trágico Efesco, querendo por todos os meios apostar com o seu patrão, que, nos próximos jogos do circo, os verdes ganhariam o primeiro prémio. 

Passada a nossa embriaguez, fomos conduzidos a um segundo triclínio, onde Fortunata havia preparado outras magnificências. As mesas eram inteiramente de prata tendo em volta taças de terracota douradas. O vinho jorrava de um odre posto à nossa frente. "Meus amigos", disse depois Trimalquião, "um de meus escravos festeja hoje a sua primeira barba; é um rapaz, seja dito sem ofensa, de boa conduta e bastante económico. Vamos comer e beber à vontade, e prolonguemos a ceia até clarear o dia". Enquanto ele pronunciava estas palavras, um galo cantou. Desconcertado por esse presságio, ordenou que atirassem vinho para debaixo da mesa, mandando também molhar a lâmpada. Em seguida ele passou o anel da mão direita para a esquerda, dizendo: “Não é sem razão que esta trombeta soou ou haverá um incêndio ou alguém entregará a alma na vizinhança. Para bem longe de nós tudo isso! Quem me trouxer esse profeta da desgraça será recompensado”. Logo depois de pronunciar essas palavras trouxeram-lhe um galo das redondezas, o qual ele mandou cozinhar. O animal foi cortado em pedaços por aquele hábil cozinheiro que de um porco havia feito aves e peixes, e atirado num caldeirão. E enquanto Débalo o regava com um caldo fervente, Fortunata moía pimenta num gral de madeira. Trimalquião, por seu lado, exasperado por esta cena, atirou uma taça à cabeça de Fortunata. Esta soltou tais gritos que parecia que tinha perdido um olho, e, ao mesmo tempo, cobria o rosto com as mãos trémulas. Cintila, consternada ante o que ocorria, acolheu em seu seio a amiga amedrontada. Um jovem escravo aproximou da face  da patroa uma pequena bacia de água fresca, sobre a qual Fortunata se inclinou, chorando e gemendo. Ao mesmo tempo Trimalquião dizia: “Então, esta tocadora de flauta síria não se recorda mais? Eu tirei-a do palco de escravos e dei-lhe uma figura humana! Mas agora ela se insufla como uma rã e nem cospe no vestido”. 

As coisas vão depressa quando os deuses o querem. Numa única viagem, consegui ganhar dez bons milhões. Resgatei logo todas as terras que tinham pertencido ao meu patrão. Construí uma casa, comprei mercados de escravos e animais de carga: tudo aquilo em que eu tocava crescia como um favo de mel. Quando eu me vi mais rico que todo o país reunido, retirei-me do jogo. Abandonei os negócios e comecei a emprestar dinheiro aos libertos. Não queria, verdadeiramente, permanecer nesse mister; mas segui os conselhos de um astrólogo, aparecido por acaso em nossa colónia. Era um grego, chamado Serapa, que poderia ter-se sentado no conselho dos deuses. Ele disse-me coisas da minha vida que eu já havia esquecido; contou-me tudo do princípio ao fim; sabia o que tinha no ventre, pouco faltando para dizer o que eu tinha comido na véspera. Parecia que ele jamais se havia separado de mim. 

Enquanto esperávamos, Stico trouxe os trajes com os quais ele quer ser enterrado; traz também os perfumes e a ânfora que contém a essência com a qual serão lavados os ossos. Trouxe uma coberta branca e uma toga de senador; fomos então convidados a verificar se a sua lã era de boa qualidade. Sorrindo, Trimalquião disse em seguida: "Toma bem cuidado, Stico: que os ratos ou as traças não toquem nesse traje. Se isso acontecer, far-te-ei queimar vivo. Eu quero ser enterrado com pompa, a fim de que todo o povo me cubra de bênçãos". Ele abriu, em seguida, um frasco de nardo, perfumando-nos a todos. “Espero que isso me fará, disse, tanto bem depois de morto, quanto me fez enquanto vivo”. Mandou depois que enchessem de vinho a ânfora comum, e disse: “Figurai-vos que fostes convidados para o meu banquete fúnebre”. A coisa chegava à extrema repugnância, quando Trimalquião, embrutecido pela sua ignóbil embriaguez, quis um novo concerto, fazendo entrar no triclínio tocadores de trompa. Sustentado por um grande número de travesseiros, ele estendeu-se no leito, dizendo: “Suponde que eu esteja morto. Tocai alguma coisa de belo”. Os músicos tocaram uma ária fúnebre. Mas um deles, servo do empresário de enterros – que do grupo parecia ser o mais decente –, soprou com tal força que acordou toda a vizinhança. Os guardas encarregados da vigilância do quarteirão, persuadidos de que a casa de Trimalquião ardia, arrombaram bruscamente a porta e, com seus baldes e machadinhas, fizeram grande alarido, no exercício de suas funções. Aproveitando esta excelente oportunidade, ali deixamos Agamémnon e fugimos precipitadamente, como se de um verdadeiro incêndio se tratasse. »


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