quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Ribeiro Sanches e a Medicina europeia ao longo dos tempos


António Nunes Ribeiro Sanches [1699-1783] foi um dos médicos portugueses mais completos, tendo-se notabilizado mais no estrangeiro do que em Portugal, não apenas como médico, mas também como filósofo e professor, tendo deixado dezenas de manuscritos, dos quais apenas nove foram publicados em vida. Escreveu para a Enciclopédia, a pedido de D'Alembert e Diderot. De uma família abastada de cristãos-novos da Beira-Baixa, era descendente de Francisco Sanches [1550-1622], também um ilustre filósofo médico e matemático português, com uma estátua em Braga. em 1716 inscreveu-se em Direito na Universidade de Coimbra. 
De débil constituição física, mas com viva inteligência e espírito observador, Ribeiro Sanches era um leitor de Hipócrates. Insatisfeito em Coimbra, foi para Salamanca onde cursou medicina. Depois de exercer em Benavente, Guarda e Amarante, Ribeiro Sanches é denunciado por um primo à Inquisição pela prática de judaísmo. Conseguiu escapar ao cárcere, exilando-se para o resto da vida. 

Como um verdadeiro cidadão do mundo, passou por Génova, Montpellier, Bordéus, Londres, Leiden. Estacionou em Leiden, para estudar com Hermann Boerhaave, considerado o maior professor de medicina do seu tempo. Até que um dia, em 1731, partiu para a Rússia, para exercer as funções de médico militar. Médico da corte em São Petersburgo, em 1739 é nomeado simultaneamente membro de duas Academias: Paris e São Petersburgo.

Após mais de 15 anos de permanência na Rússia, durante os quais se tornou Conselheiro de Estado. Mas as intrigas políticas são o que são, e em 1747 parte para Paris. E aqui termina os seus dias como um grande intelectual da Europa, continuando a receber a estima de Catarina da Rússia e Frederico o Grande da Prússia.



No “Método de estudar e aprender a Medicina”, Ribeiro Sanches diz que o exercício da Medicina e Cirurgia terão andado juntos até ao século VII, altura em que se separaram, passando a Medicina a exerce-se separadamente dos cirurgiões e dos boticários. Atribui esse facto aos Árabes e ao cristianismo pós-bárbaros. Tanto uns como outros consideravam um sacrilégio abrir o corpo humano e derramar sangue. Assim, se limitaram ao que Galeno dizia, pela leitura das suas obras. E assim se formaram os médicos até ao século XIV: Córdova, Toledo, Fez, Salerno e Montpellier.

Se nos primeiros séculos da Idade Média a Medicina foi conventual, as razões assentam também no facto de que, em tempos de frequentes conflitos bélicos, era à volta daquelas instituições que se estabeleciam os hospitais para cuidar dos feridos e era entre os clérigos que circulava a literatura médica, uma vez que eram eles dos poucos a saber ler, nomeadamente o grego. No entanto, persiste uma medicina laica enraizada nas tradições romanas e no ensino dos clássicos a par daquela. Em Salerno existirá desde o século IX até ao XIV uma escola de Medicina, a funcionar em moldes idênticos aos da hipocrática de Cós, que sendo laica procurava não entrar em oposição com a eclesiástica, tal como a de Monte Cassino. 

Pedro Hispano [1215-1277], que nasceu em Lisboa e morreu em Viterbo, vitimado pelo desmoronamento das paredes do seu aposento, além de ter sido um famoso médico, filósofo, teólogo, matemático, e sabe-se lá que mais, foi também Papa, com o nome de João XXI. Alguns autores indicam como data de nascimento o ano de 1205, outros que foi antes de 1210, possivelmente em 1205 ou 1207 e outros ainda entre 1210 e 1220. No século XVI, ainda marcava posição de destaque a sua obra, intitulada: Thesaurus pauperum.

Os surtos de peste, iniciados em Itália em meados do século XIV, vão contribuir para o desenvolvimento da literatura médica, em especial a dedicada ao tema e aos modos do seu combate, assim promovendo a consciência da necessidade de uma defesa individual e social, ideia contrária ao princípio teúrgico e escolástico vigente que imputava à divindade a origem de todo o bem e de todo o mal, preconizando a resignação e a oração como o único remédio. 

Durante a Renascença, a prática da dissecção anatómica, prepara uma classe de médicos laicos que vão lutar contra a Escolástica, na preparação de uma Medicina nova, digna desse nome. Será durante a Renascença que a cirurgia começa a ser considerada uma atividade digna de ser praticada pelos médicos, primeiro em Itália e depois em França, sendo-lhe associado até finais do século XVI o ensino da Anatomia, considerada por todo o lado como fazendo parte do currículo do ensino médico, construindo-se os primeiros Teatros Anatómicos (Pádua e Bolonha). 

No passado, médicos e cirurgiões-barbeiros tiveram de competir com outros agentes curadores, incluindo bruxas, parteiras, charlatães, curandeiros e adeptos de práticas médicas alternativas. A educação formal dos médicos, associada às universidades, esteve até ao século XVIII separada dos cirurgiões, os quais possuíam as suas próprias corporações, onde a aprendizagem e o treino prático eram enfatizados relativamente aos livros, coincidindo este último período com a passagem do comando dos hospitais para os municípios, abandonando o carácter de hospícios entregues aos cuidados dos religiosos e aceitando a participação de professores e a prática dos estudos anatómicos e do exame físico do corpo, enaltecendo o valor da aprendizagem do uso das mãos tanto para médicos como para cirurgiões.

Nos finais do século XV, a má gestão hospitalar que até então se fazia sentir, levou a Coroa portuguesa a empreender um conjunto de reformas que visavam por um lado, a preservação do património das instituições de assistência existentes e por outro, a concentração dos tradicionais e pequenos espaços de assistência em hospitais maiores, que congregassem em si os patrimónios das unidades mais pequenas, de forma a viabilizar a sua autonomia económica. 

Por exemplo, foi neste contexto de reforma assistencial e hospitalar que a partir de 1504, foi criada uma escola, a 1ª entre nós, no Hospital de Todos os Santos em Lisboa por vontade de D. Manuel, e no Hospital da Misericórdia do Porto, durante o reinado deste mesmo rei. O Hospital de São Marcos, em Braga, foi criado em 1508. A ideia foi concebida pelo cónego D. Diogo Gonçalves, sendo depois aproveitada pelo arcebispo D. Diogo de Sousa. Por diploma de 19 de outubro de 1559, o arcebispo D. Frei Bartolomeu dos Mártires, achando que o hospital era mal administrado pela Câmara, entregou-o à administração da Misericórdia da cidade, que iniciou, deste modo, um controlo sobre os serviços hospitalares em Braga que só terminaria em 1974, com a entrega da administração do Hospital ao Estado.

 Os hospitais militares foram também locais de ensino e aprendizagem desta arte, dadas as suas características de atendimento preferencial aos feridos de guerra, tendo em 1789 sido criada uma Aula de Anatomia e Cirurgia no Hospital de Chaves, exemplo copiado em Tavira, Elvas e Porto. O Hospital Inglês do Porto foi também uma importante escola de cirurgia, aí tendo estudado e trabalhado Manuel Gomes de Lima Bezerra, nome relevante do plano cultural da cidade no decorrer do século XVIII. 

Apesar do prestígio que algumas Universidades mantinham, devido aos seus professores ilustres, os alunos começam a procurar outros locais para aprender, nomeadamente na Europa do norte, crescendo o poder concorrencial de Leyden, Paris e Montpellier. É uma época em que, apesar de já existir um número razoável de médicos com conhecimentos, ainda não se pode dizer que houvesse uma Medicina científica, sendo que, com o reconhecimento da colaboração estreita entre a medicina e as ciências naturais, em finais do século XVII, são projetadas as linhas essenciais do grande edifício da ciência médica experimental, tornando-se a cirurgia gradualmente uma arte de igual dignidade à da medicina, abandonando a prática da anatomia às mãos dos cirurgiões e dos barbeiros para se tornar uma ciência exata, merecedora do maior respeito dos médicos. 

Será no decorrer do século XVIII que o cirurgião francês La Peyronie vai conseguir, em 1731, levar adiante a separação definitiva dos barbeiros, só mais tarde alcançada na Alemanha, impulso que o levará a ser um dos fundadores da Academia Real de Cirurgia. Ao longo desse período, o médico abandona o interesse pela Alquimia e a Astrologia, dedicando-se apenas à Medicina, não confundindo essa profissão com a dos filósofos, e passando a ter um programa regular de ensino confiado a professores encarregados, as mais das vezes, de mais de uma disciplina.

A Medicina europeia teve pois uma evolução ao longo dos séculos que não foi contínua e semelhante em todos os centros onde o seu ensino era praticado e de onde irradiavam os conhecimentos mais atualizados. Os livros tiveram um papel preponderante como veículo da construção e circulação do saber médico ocidental, podendo-se afirmar que a esta área do conhecimento científico está associada a
mais antiga e a mais vasta cultura literária.

Dos diversos criadores de novos sistemas médicos, um nome sobressai, Hermann Boerhaave, médico em Leyden, o mais considerado no seu tempo e nos que se seguiram. Considerado o mestre dos sistemáticos, será o primeiro médico dos tempos modernos a ser apelidado, com plena justiça, de discípulo de Hipócrates, na medida em que concentrava a sua atenção na observação do doente, numa tentativa de elaborar conclusões tão claras, tão simples quanto possível para somente depois construir teorias, o contrário do que era a prática até então. A sua visão eclética da Medicina, a sua crença no poder do conhecimento e da prática cirúrgica para o médico, concentrado num dos seus aforismas, e do conhecimento da Medicina para o cirurgião, podem ser considerados como os primeiros passos, com fundamento, da junção da Medicina e da Cirurgia no ensino e na prática médica. 

Ainda a propósito 
do ensino da Cirurgia, convirá acrescentar que em 1557 a Universidade de Coimbra viu ser criada a respetiva cadeira, na sequência da reforma dos estudos aí desenvolvidos e pela vontade de D. João III, que para o efeito contratou em 1556 o médico de Granada, Afonso Rodrigues de Guevara para vir ensinar Anatomia, efetivando-se a desanexação destes dois ensinos em 1621. A permanência deste médico em Coimbra foi de curta duração, já que cinco anos depois era chamado a ensinar Anatomia no Hospital de Todos os Santos, onde acabou por deixar dois discípulos cirurgiões, António da Cruz e António Ferreira, autores de duas obras de cirurgia que irão constituir leitura obrigatória de quem quisesse praticar essa arte. Todavia, a orientação eminentemente teórica do ensino universitário assente na leitura de textos clássicos, a reduzida ou mesmo ausência da prática da dissecção anatómica no cadáver, a falta de ligação ao hospital para a observação e seguimento dos doentes e o desentendimento e concorrência entre as direções da Universidade e as individualidades à frente dos cargos de Físico-Mor e Cirurgião-Mor, fizeram com que o ensino da Cirurgia fosse sempre deficiente e descurado em Coimbra em realçado a Lisboa. 

Ribeiro Sanches será o grande representante português da medicina judaica para o século XVIII, ao qual se deve acrescentar o nome de Jacob de Castro Sarmento (1691-1762). Muitos mais nomes poderiam ser mencionados. 
Em plena Época Moderna, a medicina estava associada na prática à magia, à alquimia e ao ocultismo, sendo vulgar em Espanha, França e Holanda o concurso das deduções astrológicas para a prescrição medicamentosa, situação fomentada em Portugal pelo impedimento da circulação dos trabalhos inovadores de autores como Paracelso. A emigração de profissionais médicos cristãos-novos com a instalação inquisitorial, persistiu no século XVII, encontrando-se deles em Hamburgo um notável agrupamento, tanto mais que ao progenitor ou familiar direto aí refugiado se acrescentavam outros elementos na continuidade de uma tradição de prática médica, presente nessas famílias. 

No século XVIII, entre nós, a situação do ensino e da prática das artes médicas, ainda padeciam das marcas do passado, pouco acompanhando o que se passava no resto da Europa, assente em profissionais pouco instruídos e tecnicamente mal preparados, pertencendo a grupos diversos, estando o ensino oficial daqueles que nos importam, os médicos e os cirurgiões, sediados na Universidade de Coimbra e no Hospital de Todos os Santos de Lisboa. No Porto, estes últimos, e só eles, poderiam fazer a sua formação nos Hospitais da Misericórdia, Militar e Inglês, como foi o caso de Lima Bezerra.

Do que foram esses tempos, vários são os registos chegados até nós, deixados por autores como Maximiano Lemos (1860-1923).  Pouco se sabe do movimento de disseminação e consolidação da Revolução Científica e das Luzes em Portugal, mormente dos seus atores, das resistências encontradas e das suas formas de expressão, supondo-se que a razão assente no facto de o país ser periférico, se encontrar em declínio após os períodos áureos de Quatrocentos e Quinhentos. Mas durante os reinados de D. João V e D. José, 
vai-se assistir à criação e desenvolvimento de várias academias oficiais e privadas e à promoção de debates e encontros, levando à fundação do Colégio dos Nobres (1761), ao processo que fez surgir a reforma da Universidade de Coimbra (1772) e ao aparecimento da Real Academia de Ciências de Lisboa (1779), no reinando D. Maria.  

A criação de uma nova mentalidade em Portugal materializou-se por via da reforma do Marquês de Pombal, idealizada a partir dos escritos de outros autores dos quais será necessário registar os nomes de Frei Manuel do Cenáculo (1724 -1814) e de Luís António Verney (1713 - 792). Os movimentos científicos de Medicina que se iam desenrolando além-fronteiras eram essencialmente universitários e o seu reflexo entre nós demorava a verificar-se, pois a Universidade portuguesa estava num estado lamentável de degradação, suscitando o aparecimento de trabalhos escritos, de autores como os já referidos, com realce para o Verdadeiro Método de Estudar (1747) de Luís António Verney, onde eram feitas as mais graves acusações ao seu funcionamento. 

Interessados na promoção da Cultura das Luzes, ainda se incluem outros intervenientes com diferentes orientações, embora o maior na modernização do país através da Ciência tenha sido Luís Verney. Um ponto relevante tem a ver com as lutas entre a Universidade, o Físico-Mor, o Cirurgião-Mor e a qualidade do ensino praticado no Hospital de Todos os Santos. A carência de Teatros Anatómicos e de Museus de peças de anatomia vinha sendo preenchida no estrangeiro, e entre nós havia queixas nesse sentido e se as havia, como se pretendia colmatar a sua falta? Quanto a isso, sempre houve posições divergentes entre as hierarquias: Médicas e Cirúrgicas.

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