sábado, 5 de outubro de 2024

Aquiles e Ulisses. Egoísmo e altruísmo


Aquiles, conforme retratado por Homero na Ilíada, pode ser considerado um protótipo do tipo de pessoa impulsiva. Ele é um dos maiores heróis da mitologia grega, conhecido tanto por sua bravura e virtude quanto por sua intensa ira e reações impulsivas. Apesar de ser admirado como um guerreiro nobre e justo, Aquiles frequentemente reage de maneira violenta quando se sente desafiado ou desrespeitado. A maior expressão dessa característica é a sua reação intempestiva ao ser desonrado por Agamenon, quando lhe tira Briseida. Esse ato desencadeia a ira de Aquiles, mas que é tida como divina, levando-o a se retirar das hostes de combate, o que coloca em risco todo o exército grego. Sua ira o domina de tal maneira que ele prefere colocar a honra pessoal acima da causa comum da guerra. Mais tarde, sua fúria atinge níveis extremos após a morte do amigo - Pátroclo - levando-o a atos de brutalidade, como a profanação do corpo de Heitor.

Ulisses, ou Odisseu, contrasta significativamente com Aquiles, o seu temperamento é oposto ao de Aquiles, e mais sagaz nas suas abordagens às situações limite. Ulisses é frequentemente descrito como astuto, paciente e dotado de uma inteligência prática e estratégica. Ulisses exemplifica um tipo de virtude muito mais associada à razão e ao autocontrolo do que à bravura física ou à reatividade emocional. Na Odisseia, Ulisses é conhecido pela inteligência e sabedoria prática, que envolve astúcia, dissimulação e a capacidade de se adaptar a diferentes circunstâncias. Ulisses é um estratega nato, alguém que sobrepõe a inteligência à força bruta, o que ficou evidente quando engendrou o Cavalo de Troia. E depois nas sucessivas peripécias e provações nos anos de viagem pelo mar que levou para regressar a Ítaca, a sua casa.

Aquiles é, assim, um personagem complexo que exemplifica como um herói pode ser moralmente virtuoso, mas ainda assim sujeito a reações violentas e passionais diante de desafios ao seu orgulho. Seu temperamento impetuoso e a sua dificuldade em controlar a ira, mesmo sabendo das consequências, podem ser vistos como uma forma de "akrasia", onde a emoção intensa sobrepõe-se à razão e ao autocontrolo. Portanto, ele se encaixa bem como um arquétipo daquelas pessoas que, apesar de suas qualidades, são intempestivas e movidas por fortes impulsos emocionais quando desafiadas.

Enquanto Aquiles age com impulso e paixão, Ulisses pondera, planeia e muitas vezes usa o engano e a persuasão para alcançar os seus objetivos. Ele demonstra uma incrível capacidade de resiliência, preferindo adiar a gratificação imediata, suportando todas as dificuldades, para levar por diante o seu objetivo final. Em vez de se deixar dominar pela ira ou pelo orgulho, Ulisses é caracterizado por sua resiliência e habilidade em manter o controlo emocional, mesmo diante de desafios monumentais. Filosoficamente, Ulisses poderia ser visto como um protótipo de uma pessoa governada pela razão, em oposição à emoção. Ele incorpora o ideal da phronesis (sabedoria prática), sendo capaz de navegar com habilidade não apenas pelos mares literais, mas pelas complexidades das relações humanas, dos perigos e das armadilhas da vida. Se Aquiles representa o herói impulsivo, movido pelo orgulho e pela honra, Ulisses personifica o herói prudente e racional, cujo maior trunfo é a sua mente e a sua capacidade de adaptação. Ambos são heroicos à sua maneira, mas Ulisses representa uma abordagem muito mais controlada e estratégica.

Pessoas que, em sua normalidade, se comportam como "boas pessoas", mas reagem com intempestividade quando desafiadas, podem ser descritas como tendo traços de impulsividade ou agressividade reativa. Elas podem não ter um controlo adequado das emoções em situações de conflito, o que pode levá-las a reações desproporcionadas. Psicologicamente, isso pode estar ligado a dificuldades em regular emoções, baixa tolerância à frustração, ou a uma percepção de ameaça ao seu ego ou autoridade. Essas pessoas não são necessariamente "más pessoas", mas podem ter dificuldade em lidar com situações que desafiam o seu bom senso e sentido de controlo ou poder, e essa dificuldade é expressa de forma agressiva. Isso pode ser uma questão de temperamento, mas também pode estar relacionado a fatores como o chamado stress pós-traumático da infância, que os condiciona a terem uma muito baixa autoestima. Foram as más experiências anteriores que as fizeram sentir-se mais vulneráveis ou ameaçadas em momentos de confronto.

De um modo geral, para quase todas as pessoas, a excepção confirma a regra, a emoção acaba por se sobrepor à razão sempre que a situação é crítica e de grande stress, que confere grandes desafios à tomada de decisões. Aqui estão algumas aptidões relevantes: resiliência - a capacidade de se recuperar de adversidades e manter a esperança e o esforço; empatia - a habilidade de compreender e compartilhar os sentimentos dos outros; autocontrolo - domínio sobre os próprios impulsos e reações emocionais; assertividade - a capacidade de expressar opiniões e necessidades de forma clara e respeitosa; autenticidade - ser fiel a si mesma, mostrando suas verdadeiras emoções e crenças; altruísmo.

O altruísmo tem a ver com a capacidade de ajudar os outros, mesmo que isso exija sacrifício pessoal.
Daí que a capacidade de manter o foco e seguir adiante com planos e objetivos requeira grande disciplina. E então podemos dizer que uma pessoa é responsável quando tem a disposição de assumir consequências por ações e decisões. E depois há mais umas tantas qualidades que podemos enumerar tal como a honestidade, humildade e perseverança. 

A ciência ainda não chegou a um consenso definitivo sobre se o egoísmo ou o altruísmo prevalece na natureza humana, pois ambos são componentes complexos e interligados do comportamento humano. Pesquisas nas áreas da biologia, psicologia e sociologia indicam que tanto o egoísmo como o altruísmo têm bases evolutivas e podem ser explicados por diferentes teorias. A teoria da seleção natural de Charles Darwin sugere que os comportamentos egoístas podem ser vantajosos para a sobrevivência e reprodução dos indivíduos. Richard Dawkins, em "O Gene Egoísta", argumenta que os genes se comportam de maneira egoísta para garantir a sua própria perpetuação, o que pode explicar comportamentos egoístas nos seres humanos. Por outro lado, o altruísmo também pode ser entendido através de mecanismos evolutivos. A seleção de parentesco, proposta por William Hamilton, sugere que os indivíduos são altruístas com aqueles que compartilham os seus genes, promovendo assim a sobrevivência desses genes. Além disso, a teoria da reciprocidade de Robert Trivers propõe que o altruísmo pode evoluir se houver uma expectativa de reciprocidade futura, ou seja, "eu ajudo você agora, você me ajuda depois".

Estudos na neurociência mostram que comportamentos altruístas podem ativar áreas do cérebro associadas ao prazer e à recompensa, sugerindo que ajudar os outros pode ser intrinsecamente gratificante. Psicólogos também têm identificado que a empatia e a compaixão são partes fundamentais da psicologia humana, contribuindo para o comportamento altruísta. A influência cultural e social também desempenha um papel significativo. Normas sociais e valores culturais podem incentivar tanto o egoísmo quanto o altruísmo, dependendo do contexto. Portanto, a natureza humana parece incluir uma mistura de egoísmo e altruísmo, influenciada por fatores biológicos, psicológicos e sociais. A prevalência de um ou outro comportamento pode variar de acordo com circunstâncias específicas e contextos sociais.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Pragmatistas e idealistas


Toda a gente sabe que as pessoas não são todas iguais quanto à habilidade e inteligência para criar e prosperar. Mas a partir daqui a sabedoria divide-se: para o lado direito vão os pragmatistas que entendem que os mais hábeis e inteligentes devem ser recompensados por isso; e para o lado esquerdo vão os idealistas que entendem que devemos ser piedosos e distribuir a riqueza igualmente por todos.

Entre as diferentes perspetivas filosóficas e económicas, os pragmatistas, que acreditam que os mais hábeis e inteligentes devem ser recompensados, argumentam que premiar o mérito e esforço incentiva a inovação, e assim a sociedade avança e ganha com isso. Para eles, a desigualdade é uma consequência natural da diversidade de talentos e esforços e, em última análise, benéfica para o progresso coletivo. Por outro lado, os idealistas defendem uma distribuição mais equitativa da riqueza, fundamentados em princípios de justiça social e compaixão. Para estes, as diferenças de habilidade ou inteligência não justificam a criação de grandes disparidades que podem levar ao sofrimento de muitos. Sua preocupação reside nas condições de vida mínimas e na dignidade humana, acreditando que uma sociedade mais justa deve garantir um nível básico de bem-estar para todos, independentemente das suas capacidades.

Ora, esta divisão taxonómica, descritiva, não é apenas teórica, mas tem ramificações práticas que moldam as políticas públicas, sistemas de impostos e o desenho da socialização. Na realidade, a maioria das sociedades procura equilibrar esses dois extremos, buscando modelos que contemplem o convívio saudável da meritocracia com as medidas redistributivas, que é a melhor forma de promover ao mesmo tempo o progresso com a justiça social.

Se nos servirmos da lente darwinista, a ideia de seleção natural e competição que favorece os mais aptos, os pragmatistas poderão ter a razão do seu lado para serem bem sucedidos. A natureza, nesse sentido, recompensa os mais capazes, os que usam a inovação como a estratégia mais adaptável à sobrevivência num mundo que é mais adverso e hostil do que facilitador e benigno. Essa lógica competitiva, de "sobrevivência do mais apto", reflete um mundo onde o mérito é recompensado e a desigualdade é uma consequência inevitável. No entanto, a natureza também é permeável à cooperação, em que a junção faz a força, uma tática em interdependência. Muitas espécies sobrevivem em ecossistemas que dependem de colaborações subtis entre diferentes organismos, simbioses cujo carácter é apenas de aparente altruísmo. Nesse contexto, os idealistas cuidam dos mais vulneráveis como efeito colateral de um aparente altruísmo. Os mais vulneráveis neste contexto acabam por beneficiar de um efeito que é mais colateral do que essencial. Neste contexto o que é essencial é a sobrevivência do grupo como um todo, e não a sobrevivência deste ou daquele particular, estando de acordo com o princípio de que a união faz a força.

Em suma: a visão dos pragmatistas reflete a competição e o mérito individual, enquanto a visão dos idealistas tira partido da interdependência e da cooperação comunitária. Na realidade, toda a vida humana, enquanto um prolongamento da natureza, está em permanente tensão entre a competição e a cooperação, e talvez a questão seja menos saber qual dessas visões está mais certa, mas saber como equilibrar ambas de forma a que se criem sociedades mais resilientes sem perder de vista a justiça social. Reconhecer o mérito daqueles que são mais hábeis e inteligentes, permitindo que eles prosperem, não é errado em si mesmo desde que não se perca a ideia de justiça. Também temos que ser justos com quem se esforçou mais, independentemente de sabermos se os frutos resultaram mais do esforço do que do talento. Ao valorizar o mérito, estamos reconhecendo a importância da responsabilidade individual, do esforço, e da contribuição que no fim do processo teve para o progresso coletivo. Essa abordagem evita a armadilha da inveja, que, além de ser corrosiva, não oferece soluções concretas para a melhoria da própria condição. Culpar o outro pela nossa mediocridade é um reflexo de ressentimento e de uma visão distorcida da responsabilidade pessoal. 

Estagnar no ressentimento não apenas nega o mérito do outro, como também nos impede de buscar o nosso próprio desenvolvimento. A inveja cria um ciclo de vitimização e imobilidade, em vez de promover o desenvolvimento pessoal e coletivo. É claro que o reconhecimento do mérito não significa desprezo pelos mais desfavorecidos. O que não devemos ter dúvidas é que atender aos dois lados desta equação cria uma sociedade mais justa e equilibrada. O que se tem de evitar é a desigualdade excessiva, que corrói o tecido social, gerando ressentimento e divisão. Portanto, a virtude também reside em não atropelar as oportunidades que estejam disponíveis para todos, sem sufocar a inovação e o talento. Em última análise, a postura virtuosa seria o equilíbrio entre a admiração e a humildade, sem cair na armadilha da inveja.

Há quem não reconheça o mérito de uma herança. Heranças criadas e preservadas para benefício de filhos que foram amados. Se eu souber que vão tirar aos filhos a herança que eu gostaria de lhes deixar, hesitarei se vale a pena dispender o meu esforço em criar riqueza. Esse é um ponto central no debate sobre justiça social. Quem entende que a riqueza que deixamos depois de morrer deve ser redistribuída por toda a gente de uma dada comunidade, argumenta que não existe nenhum mérito nos filhos para serem eles os únicos a usufruir dessa riqueza. Se, de facto, os beneficiário não trabalharam para merecê-la. Sobretudo as grandes heranças, que perpetuam desigualdades, que criam elites viciadas na sua riqueza sem contribuírem para o bem comum. O desejo de construir património, e preservá-lo para seus descendentes por amor e responsabilidade familiar, é um instinto profundamente humano, e está relacionado ao impulso de proteção e continuidade da família, algo enraizado em muitas culturas e sistemas sociais. 

A questão, então, é encontrar um equilíbrio. Por um lado, é justo que a criação de riqueza e o legado familiar sejam respeitados. Por outro, é preciso evitar que heranças megalómanas, sobretudo aquelas que foram criadas com honestidade duvidosa, criem desigualdades estruturais que possam sufocar a mobilidade social. Algumas sociedades optam por impostos sobre herança que limitam a acumulação excessiva de riqueza em poucas mãos, sem eliminar completamente o direito de transmitir bens aos descendentes. Isso busca manter o equilíbrio entre o incentivo à criação de riqueza e a justiça social. O realismo pragmático pode ser mais produtivo. 
Em vez de idealizarmos sociedades perfeitas, talvez o caminho mais virtuoso seja um trabalho contínuo que construa instituições que promovam a justiça, a liberdade e o bem-estar dentro de limites ponderáveis. Isso significa a procura de meios que mitiguem desigualdades com soluções que sejam práticas para os desafios do dia a dia. Essa abordagem poderá evitar não apenas a armadilha do idealismo utópico, mas também uma deriva de cinismo. 

A ideia de paraísos perdidos, sejam eles míticos ou utópicos, frequentemente nasce do desejo humano de escapar da dureza do mundo natural e social. No entanto, o próprio cosmos não nos oferece nenhuma garantia de segurança ou conforto; ele é, por natureza, caótico e perigoso, cheio de forças que estão além do nosso controlo. A vida na Terra, mesmo com todos os avanços da civilização, continua frágil diante das forças cósmicas e naturais. Essa percepção de um Universo agreste nos afasta das ilusões utópicas e nos convida a encarar a realidade com humildade e resiliência. Talvez a verdadeira sabedoria esteja em aceitar a imperfeição, tanto do mundo quanto de nós mesmos, e aprender a navegar essas condições com coragem e pragmatismo. Como disse Albert Camus, o "absurdo" da existência não está no facto de que a vida seja sem sentido, mas no desejo humano de encontrar sentido num cosmos que não o oferece. Assim, a fantasia de um paraíso perdido pode ser tentadora, mas a nossa existência é marcada por uma luta constante de adaptação, sobrevivência e, quando possível, florescimento nas condições que temos.

Reconhecer essa realidade, no entanto, não significa resignação. Pelo contrário, é uma chamada de atenção para que, mesmo diante de um Universo implacável, criemos significado e propósito em nossas vidas, não esperando por paraísos inalcançáveis, mas trabalhando para construir momentos de justiça, beleza e bem-estar, ainda que no meio do caos e de tempestades. Por exemplo, um grande asteroide a colidir com a Terra estaria indiferente à nossa boa vontade. Um grande asteroide, como outras forças cósmicas, é completamente indiferente à nossa existência, boa vontade ou esforços morais. Isso nos lembra o quão insignificantes somos diante das vastas forças do Universo, e que, por mais que nos esforcemos para construir civilizações, sistemas de justiça ou utopias, existem forças naturais que podem, a qualquer momento, alterar drasticamente o curso da vida no planeta. A Natureza ou o Universo não se importam com os nossos ideais. A nossa capacidade de nos adaptarmos, prevenirmos ou mitigarmos desastres é uma das formas mais poderosas de darmos significado à nossa existência em um mundo imprevisível. Não podemos mudar a indiferença cósmica, mas podemos enfrentar seus desafios com ciência, resiliência e preparação.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Lealdade e tribalismo humano


O que está inscrito na génese da espécie humana é a lealdade não ultrapassar a dimensão da tribo. Não é natural para seres humanos serem leais a milhões de estranhos. Esta é uma perspetiva que reflete uma visão evolucionária sobre o comportamento humano. Durante a maior parte da história da espécie, os seres humanos viveram em grupos pequenos e coesos, geralmente compostos por poucas dezenas a centenas de pessoas. Nesses grupos, a lealdade e a cooperação eram fundamentais para a sobrevivência e, por isso, tendiam a se restringir àqueles com quem havia uma relação direta e contínua. E foi segundo esta matriz que durante várias eras de milénios os homo hominídeos se espalharam pelo globo terrestre.

O “tribalismo” perdurou durante à escala do milhão de anos até que surgiu uma nova capacidade de se formarem grandes grupos a aglutinar várias tribos para empreendimentos mais grandiosos. E assim se estabeleceram lealdades mais alargadas entre grandes grupos de estranhos, que sugere que a nossa capacidade de empatia e cooperação se desenvolveu para funcionar melhor em contextos onde conhecíamos pessoalmente os membros da nossa comunidade. Com a complexidade das sociedades que podem conter milhões de indivíduos, a lealdade e a coesão social precisou de ser mediada por instituições, ideologias e símbolos comuns, como nações, religiões e valores culturais.

Por isso, a lealdade a uma nação, por exemplo, pode ser vista como um tipo de "fidelidade imaginada" — um conceito explorado por Benedict Anderson ao falar sobre nações como "comunidades imaginadas", com a capacidade de transcender a lealdade tribal. Este foi o desafio constante que a humanidade imprimiu a si própria, exigindo a criação de narrativas e estruturas sociais que incentivem a coesão numa escala muito maior do que aquela para a qual a evolução nos preparou biologicamente.

Para construir as pirâmides, e controlar as cheias do Nilo, os egípcios dos faraós tiveram de exceder a dimensão de uma tribo. A construção das pirâmides e o controlo das cheias do Nilo pelos antigos egípcios ilustram como as primeiras civilizações humanas conseguiram transcender as limitações da organização tribal. Essas realizações exigiram um nível de cooperação e coordenação que ultrapassava em muito a capacidade de pequenas tribos. O que possibilitou essa superação foi o desenvolvimento de estruturas sociais, políticas e religiosas que uniram grandes grupos de pessoas sob uma identidade comum. No caso dos egípcios, a figura do faraó desempenhou um papel crucial como símbolo de unidade e autoridade divina, capaz de mobilizar recursos e mão de obra em grande escala. Além disso, as religiões, os mitos e as crenças na vida após a morte forneceram um propósito coletivo que transcendia os interesses individuais ou de pequenos grupos, incentivando o esforço cooperativo em prol de grandes empreendimentos.

Essas sociedades desenvolveram sistemas administrativos, hierarquias sociais e tecnologias de comunicação que permitiram a gestão de grandes populações e recursos. Portanto, embora a lealdade natural do ser humano possa ter sido limitada à tribo, as primeiras civilizações encontraram formas de estender essa lealdade por meio de narrativas culturais e estruturas de poder que criaram um sentido de identidade compartilhada em uma escala muito maior.

Esse processo de "superação" da organização tribal pela criação de instituições complexas foi uma das chaves para o surgimento das civilizações e para a realização de obras monumentais como as pirâmides. No entanto, essa transcendência também trouxe novos desafios, como a necessidade de manter a coesão social e a legitimidade das autoridades em uma escala nunca experimentada.

O atual surto nacionalista está a tornar-se um problema na medida em que o patriotismo benigno se transforma num ultranacionalismo chauvinista. O aumento do nacionalismo em várias partes do mundo pode, de facto, transformar o patriotismo benigno em um ultranacionalismo chauvinista, levando a consequências preocupantes. Patriotismo benigno geralmente envolve um amor saudável pelo país, uma disposição para contribuir para o bem comum e um reconhecimento dos valores cívicos e da diversidade dentro da nação. Ultranacionalismo e chauvinismo, por outro lado, promovem a ideia de superioridade da própria nação em relação a outras, frequentemente desconsiderando ou desumanizando os estrangeiros e minorias. Isso pode resultar em xenofobia, racismo e discriminação.

O ultranacionalismo pode minar a coesão social ao dividir as pessoas em "nós" contra "eles", levando a tensões internas, violência e polarização. A retórica nacionalista pode ser utilizada para justificar políticas que excluem ou marginalizam certos grupos, como imigrantes ou minorias étnicas. Em termos políticos, o crescimento do ultranacionalismo pode resultar em governos autoritários, uma erosão dos direitos civis e uma diminuição do pluralismo democrático. O ultranacionalismo tende a promover uma política externa agressiva, onde as nações buscam afirmar a sua supremacia ou interesses nacionais de maneira militarista ou imperialista, o que pode levar a conflitos internacionais e à instabilidade global.

A retórica nacionalista pode também dificultar a cooperação internacional em questões globais, como mudanças climáticas, saúde pública e segurança, uma vez que as nações podem-se tornar mais preocupadas em proteger os seus interesses imediatos do que em buscar soluções coletivas. O ressurgimento de movimentos nacionalistas em diversas democracias, como nos EUA, Brasil, Hungria e várias nações europeias, ilustra essa tendência. Políticos e partidos que promovem uma agenda nacionalista têm ganhado apoio popular ao explorarem medos económicos e sociais, frequentemente apresentando os estrangeiros e imigrantes como bodes expiatórios.

Para contrabalançar o ultranacionalismo, é crucial promover uma forma de patriotismo inclusivo que valorize a diversidade e a solidariedade global. O diálogo intercultural, a educação e a promoção de políticas que integrem e celebrem a pluralidade podem ajudar a mitigar os efeitos negativos do nacionalismo exacerbado. Em suma, a transformação do patriotismo benigno em ultranacionalismo chauvinista é um fenómeno preocupante que pode ter consequências graves tanto a nível interno quanto global, exigindo uma resposta consciente e proativa da sociedade e dos líderes.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

As várias formas de organização política e económica


A complexidade das interações entre sistemas é parte da dinâmica da geopolítica atual. Se Marine Le Pen se tornasse presidente da França, poderíamos esperar mudanças significativas em diversas áreas, dado o seu histórico e as plataformas defendidas por seu partido, o Rassemblement National (RN). Essas mudanças provavelmente seriam mais visíveis na imigração. Le Pen defende políticas muito mais rígidas em relação à imigração. Isso poderia incluir a redução de fluxos migratórios, com foco em limitar a imigração não europeia e a concessão de asilo. Haveria políticas mais restritivas para novos imigrantes e até mesmo propostas de endurecimento das regras de cidadania. Le Pen tem defendido políticas que dariam preferência aos cidadãos franceses em áreas como emprego, habitação e benefícios sociais. Isso poderia criar tensões sociais e levantar questões sobre discriminação.

De resto, pouco mudaria em relação ao sistema capitalista, o sistema mais difundido em tod o mundo. Focado na propriedade privada, mercados livres, e o lucro como motor económico, o capitalismo varia entre capitalismo liberal (como nos EUA e Europa Ocidental) e capitalismo de Estado (como na China, onde o governo tem um papel maior na economia). Sistemas políticos que combinam o capitalismo com liberdades civis, direitos individuais, e eleições livres e justas, incluem a maioria dos países da Europa Ocidental, EUA, Canadá, Japão. As democracias iliberais, também conhecidas como "democracias controladas" ou "autoritarismo eleitoral", combinam eleições com uma erosão de liberdades civis e instituições democráticas. É o caso da Hungria de Viktor Orbán, e da Turquia sob Erdogan, só para dar dois exemplos. As autocracias são regimes onde o poder está concentrado em uma pessoa ou grupo pequeno, sem espaço significativo para oposição política ou eleições livres. Exemplos incluem a Coreia do Norte, Arábia Saudita, e até a Rússia sob Putin e a Venezuela sob Maduro.

Além desses sistemas, outros tipos menos dominantes ou em declínio incluem o comunismo e teocracias. Embora o comunismo como modelo económico tenha praticamente desaparecido com a queda da União Soviética, ainda persiste de forma limitada em países como Cuba e Coreia do Norte. A China mantém um governo de partido único, mas com uma economia essencialmente capitalista. As teocracias são sistemas onde a religião e o governo são inseparáveis. Exemplos incluem o Irão, onde o poder é dividido entre estruturas teocráticas e democráticas.

Hoje, não existe nenhum estado declaradamente fascista, nem anarquista. Isso não significa que ainda circulem por aí movimentos que imitam 
características fascistas, como nacionalismo extremo e autoritarismo. Embora não exista nenhum estado oficialmente anarquista, o anarquismo como ideologia prega a ausência de governo centralizado, com ênfase na autogestão e no comunitarismo. Outros sistemas mais híbridos ou menos comuns incluem monarquias absolutas, sultanatos e regimes tribais, que ainda existem em algumas partes do mundo, especialmente no Médio Oriente e em África.

Embora Le Pen tenha abandonado a ideia de retirar a França da União Europeia e do euro, ela ainda defende maior soberania para a França. Isso pode significar a imposição de medidas que desafiem as regras da UE, particularmente em questões de imigração e comércio. Le Pen provavelmente buscaria reformar a União Europeia por dentro, pressionando por mais controlo nacional em detrimento de decisões supranacionais. Isso poderia afetar a relação da França com outras potências europeias, especialmente a Alemanha. Le Pen tem defendido uma forma de protecionismo económico, incluindo subsídios para indústrias locais, medidas para proteger o mercado de trabalho francês de concorrência internacional, e, possivelmente, a reintrodução de controlos fronteiriços para mercadorias. Le Pen promete manter e até aumentar os investimentos nos serviços públicos, particularmente no sistema de saúde e segurança social, o que exigiria uma gestão cuidadosa do orçamento nacional.

Em resumo, uma presidência de Marine Le Pen na França implicaria uma guinada considerável à direita, com políticas mais nacionalistas e protecionistas, uma abordagem mais rígida em questões de imigração e segurança, e possíveis tensões tanto internas quanto externas devido às suas posições controversas. Isso poderia alterar a posição da França na União Europeia e no cenário internacional, além de criar grandes debates dentro do próprio país. Embora uma presidência de Le Pen provavelmente não elimine a democracia formal na França, o seu governo poderia ser caracterizado como iliberal, na medida em que minaria progressivamente os valores democráticos liberais, especialmente no que diz respeito aos direitos civis, às liberdades individuais e à independência institucional.

Apesar de a Palestina ser reconhecida por mais de 130 países, não se aplica o termo de “Estado falhado”


A Palestina é reconhecida como Estado por mais de 130 países e possui estatuto de observador não membro na ONU, mas ainda não é amplamente reconhecida como Estado soberano pleno, especialmente por países influentes como os Estados Unidos e membros da União Europeia. No entanto a Palestina não se pode considerar um Estado falhado. A Palestina não é tradicionalmente classificada como um "Estado falhado" porque, tecnicamente, ainda não alcançou o estatuto pleno de Estado soberano com controlo total sobre o seu território, fronteiras e governo. O termo "Estado falhado" geralmente se aplica a países que possuem um governo reconhecido, mas que falham em exercer controlo efetivo sobre seu território, manter a ordem pública ou prover serviços básicos à população.

Os Acordos de Oslo, assinados na década de 1990, estabeleciam um caminho para a criação de um Estado palestino ao lado de Israel. Contudo, as negociações fracassaram, e a situação permanece sem solução. A comunidade internacional continua dividida quanto ao reconhecimento e apoio à criação de um Estado palestino plenamente independente.

Atualmente os palestinos não têm um Estado plenamente reconhecido e soberano. A Palestina é reconhecida como um Estado por vários países e organizações, incluindo as Nações Unidas, onde tem o estatuto de Estado observador não membro. No entanto, na prática, não exerce o controlo total sobre o seu território e não possui soberania plena. A região que seria destinada ao Estado palestino compreende a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental. No entanto, a situação é complexa:

Cisjordânia: Está sob controlo parcial da Autoridade Palestina, mas grande parte é ocupada por Israel, que controla as fronteiras, o espaço aéreo e grande parte dos recursos. Além disso, há uma significativa presença de assentamentos israelitas. Faixa de Gaza: Controlada pelo Hamas, que é uma organização distinta da Autoridade Palestina e que entrou em conflito com ela. A Faixa de Gaza está sob um bloqueio rigoroso imposto por Israel e Egito, e sofre com a falta de recursos e liberdade de movimento. Jerusalém Oriental: Anexada por Israel em 1967 e considerada por Israel como parte de sua capital indivisível. No entanto, essa anexação não é reconhecida internacionalmente, e os palestinos veem Jerusalém Oriental como a futura capital de seu Estado.

Controlo Territorial Fragmentado: A Cisjordânia e a Faixa de Gaza são geograficamente separadas e governadas por diferentes entidades — a Autoridade Palestina na Cisjordânia e o Hamas na Faixa de Gaza. Isso dificulta a governança unificada e coesa. Grande parte do território que seria destinado ao Estado palestino está sob ocupação por parte de Israel, e a Faixa de Gaza está sob um bloqueio rigoroso. Isso limita a capacidade das autoridades palestinas de exercer controlo efetivo e prover serviços à população. A economia palestina depende muito de ajuda internacional e das condições impostas por Israel, o que impede o desenvolvimento económico independente. Portanto, a Palestina enfrenta desafios significativos de governação, mas esses desafios estão em grande parte ligados à falta de um estatuto de Estado pleno e ao contexto de ocupação e conflito prolongado. Seria mais apropriado dizer que a Palestina é um "Estado em construção" ou "Estado não realizado", com sérias limitações estruturais e políticas que dificultam o seu desenvolvimento e funcionamento como um Estado independente.

A Autoridade Palestina (AP), com sede em Ramallah, desempenha o papel de governo provisório e limitado dos territórios palestinos na Cisjordânia. Ela foi criada em 1994 como resultado dos Acordos de Oslo, assinados entre a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e Israel, com o objetivo de estabelecer uma administração temporária que levaria à criação de um Estado palestino independente. No entanto, as negociações para um acordo final não se concretizaram, e a AP ainda opera sob severas restrições.

Principais funções e limitações da Autoridade Palestina: Administração Civil e Serviços Públicos: A AP é responsável pela administração de áreas da Cisjordânia conhecidas como "Área A", que correspondem a cerca de 18% do território. Nessas áreas, a AP controla serviços como saúde, educação, segurança interna e infraestrutura. A AP também tem funções limitadas em algumas partes da "Área B", onde divide o controlo com Israel. A AP possui forças de segurança responsáveis pela manutenção da ordem em partes da Cisjordânia sob seu controlo. Contudo, sua capacidade é restrita, e o exército israelita realiza operações em todas as áreas, inclusive naquelas oficialmente sob controlo palestino. A AP atua como representante oficial do povo palestino em negociações e foros internacionais. Apesar de limitada em termos de soberania, busca reconhecimento e apoio para a causa palestina.

A Autoridade Palestina (AP) arrecada impostos e taxas na Cisjordânia, mas depende significativamente de ajuda internacional e da transferência de receitas fiscais retidas por Israel. Isso limita a sua capacidade económica e a torna vulnerável a pressões externas. Dominada pelo partido Fatah, enfrenta oposição do Hamas, que controla a Faixa de Gaza desde 2007. Essa divisão política enfraquece a representação palestina e cria dificuldades para um Estado e um governo unificado. A AP não possui controlo sobre suas fronteiras, espaço aéreo, ou recursos naturais. Israel controla os movimentos de bens e pessoas e exerce uma presença militar significativa em grande parte da Cisjordânia.

O Hamas, considerado um grupo terrorista por países como os Estados Unidos, Israel e a União Europeia, controla a Faixa de Gaza desde 2007. A organização ganhou as eleições legislativas palestinas em 2006 e, após um conflito com o Fatah, a fação dominante na Autoridade Palestina, assumiu o controlo total da Faixa de Gaza. O Hamas atua como o governo de facto em Gaza, gerindo a administração pública, segurança interna, saúde, educação e outros serviços essenciais. Apesar de enfrentar grandes dificuldades devido ao bloqueio imposto por Israel e Egito, tenta manter a ordem e os serviços básicos na região.

O Hamas também realiza atividades sociais, incluindo a administração de escolas, clínicas e programas de assistência social, o que lhe dá apoio popular em algumas partes da população de Gaza. O controlo do Hamas sobre Gaza está em conflito com a Autoridade Palestina, que governa partes da Cisjordânia. As divisões políticas entre Hamas e Fatah complicam os esforços para uma representação unificada e para as negociações de paz.

O Hamas se vê como a principal força de resistência do povo palestino. O Hamas possui uma ala militar conhecida como Brigadas Izz ad-Din al-Qassam, que depois de constantes ataques contra Israel, incluindo o lançamento de foguetes e outros tipos de operações militares, desencadeou uma operação de ataque terrorista em grande escala no território sul de Israel, em 7 de outubro de 2023. Esses atos são considerados terroristas por vários países, devido ao direcionamento de ataques contra civis.

A ONU, como organização internacional, enfrenta muitos desafios para cumprir as suas missões de paz e segurança. Ela depende da cooperação e do consenso entre seus Estados membros, que têm interesses e posições muitas vezes conflitantes. Isso pode levar à perceção de hipocrisia ou ineficácia, especialmente em conflitos complexos como o de Israel na Palestina. A ONU não possui um exército próprio nem mecanismos de imposição diretos. Depende das decisões dos Estados membros, especialmente das grandes potências, para implementar resoluções e ações. Isso limita a sua capacidade de agir de forma decisiva em muitos conflitos. As decisões mais significativas de segurança e intervenção dependem do Conselho de Segurança, onde os membros permanentes (EUA, Rússia, China, França e Reino Unido) têm poder de veto. Isso frequentemente leva a impasses.

Em muitos casos, a ONU atua mais como um fórum de discussão e mediação do que como um agente transformador direto. Isso faz com que, para alguns, a organização pareça ser mais um “espantalho” do que um ator efetivo. Suas missões de paz e seus esforços humanitários, embora importantes, são muitas vezes vistos como insuficientes frente às crises mais graves. Embora a ONU tenha limitações significativas, ela ainda desempenha um papel crucial em temas como assistência humanitária, direitos humanos e mediação de conflitos. Seu impacto pode parecer limitado, mas sem essa plataforma de diálogo e cooperação, a diplomacia internacional seria ainda mais fragmentada e conflituosa.

De certa forma, pode-se argumentar que a hipocrisia é uma parte inerente da diplomacia. A diplomacia, por natureza, envolve a negociação de interesses divergentes e, muitas vezes, a necessidade de acomodar contradições para alcançar compromissos ou evitar conflitos. Isso pode resultar em discursos e ações que parecem, ou realmente são, hipócritas. Aqui estão alguns motivos pelos quais isso ocorre: Os Estados muitas vezes adotam posições que servem aos seus interesses estratégicos, económicos ou de segurança, mesmo que essas posições pareçam contradizer princípios morais ou valores declarados. Por exemplo, um país pode criticar abusos de direitos humanos em um Estado rival enquanto ignora ou minimiza violações em um aliado.

Diplomatas frequentemente precisam equilibrar a necessidade de manter relações cordiais com múltiplas partes, mesmo quando essas partes estão em conflito. Isso pode levar a declarações ambíguas ou contraditórias, projetadas para acalmar ambos os lados ou evitar escaladas. Muitas vezes, o que se diz publicamente na diplomacia serve mais como um símbolo ou gesto político do que como um reflexo das ações reais. Declarações diplomáticas podem ser feitas para mostrar solidariedade, condenação ou apoio, mesmo quando essas palavras não são acompanhadas por ações concretas.

Em organizações multilaterais como a ONU, os Estados membros têm interesses muito diversos e, por vezes, contraditórios. As resoluções e declarações podem resultar em compromissos diluídos, que não refletem plenamente a realidade do conflito ou da situação em questão. Portanto, embora idealmente a diplomacia devesse ser transparente e coerente, na prática, ela frequentemente envolve um grau de hipocrisia, pois lida com um mundo complexo onde interesses, princípios e realidades nem sempre se alinham.

A Nova Ordem Mundial


A "Nova Ordem Mundial" apesar de o conceito já ter alguns séculos de existência, volta a estar na ordem do dia com as guerras em curso na Ucrânia e na Palestina. Não é apenas um assunto para entreter os adeptos das teorias da conspiração. Como é sabido, desde o fim da União Soviética e da Guerra Fria, cujo estrondo foi simbolizado com a Queda do Muro de Berlim, os Estados Unidos da América passaram a ser a única potência detentora do título de império, polícia do mundo ou única superpotência. Mas tudo indica que tal estatuto não poderá durar por muito mais tempo. Como vai ser a "Nova Ordem Mundial", ainda está muita coisa em aberto.

A ideia, geralmente, refere-se a uma mudança significativa na estrutura de poder global, onde as nações, instituições internacionais ou elites financeiras assumem maior controlo sobre os assuntos mundiais. Contudo, é importante diferenciar entre as várias interpretações da realidade. No final da Guerra Fria, o termo "Nova Ordem Mundial" foi popularizado por líderes como George H.W. Bush, referindo-se a uma nova era de cooperação internacional e de paz, onde instituições como a ONU desempenhariam papéis mais fortes na prevenção de conflitos globais. Em círculos de teorias da conspiração, a "Nova Ordem Mundial" é frequentemente retratada como um plano sinistro para estabelecer um governo global totalitário, controlado por uma pequena elite, que visa eliminar as soberanias nacionais e restringir liberdades individuais.

A China emergiu como uma superpotência global, desafiando a hegemonia dos EUA. Este equilíbrio de poder em mudança é frequentemente mencionado em discussões sobre a "Nova Ordem Mundial". O avanço da tecnologia e a interconexão global têm levado a uma reorganização das estruturas de poder, onde empresas multinacionais e grandes conglomerados tecnológicos possuem uma influência significativa. Ao invés de um mundo unipolar ou bipolar (como durante a Guerra Fria), estamos a assistir a uma ordem mundial multipolar, com diferentes centros de poder (EUA, China, União Europeia, Rússia, Índia, entre outros).

Muitas das teorias são baseadas em desinformação ou medo, e é essencial ter uma abordagem crítica e informada sobre o tema. As dinâmicas geopolíticas e económicas são complexas e não se reduzem a uma conspiração global. A "Nova Ordem Mundial" é um termo carregado, que pode ter significados diferentes dependendo do contexto. No entanto, a ideia de que existe um plano coordenado por uma elite global para controlar o mundo é amplamente considerada uma teoria da conspiração sem fundamento.

A invasão da Ucrânia pela Rússia em 2022 é, de facto, um evento que pode ser visto no contexto de um realinhamento geopolítico global. Esta ação militar é uma manifestação clara das tensões crescentes entre grandes potências e reflete mudanças significativas na ordem mundial que têm vindo a ocorrer ao longo das últimas décadas. Desde o colapso da União Soviética, a Rússia tem tentado recuperar o seu estatuto de grande potência e resistir à influência ocidental, especialmente dos EUA e da NATO, na Europa de Leste. A expansão da NATO para leste é vista pela Rússia como uma ameaça direta à sua segurança, o que contribuiu para a sua decisão de invadir a Ucrânia.

O mundo está a tornar-se cada vez mais multipolar, com o poder global a distribuir-se entre várias potências, como os EUA, China, Rússia e a União Europeia. A invasão da Ucrânia é, em parte, uma tentativa da Rússia de reafirmar o seu lugar neste novo equilíbrio de poder, desafiando a influência ocidental. A invasão representa um desafio direto à ordem internacional estabelecida após a Segunda Guerra Mundial, baseada em normas e instituições que promovem a resolução pacífica de conflitos e a integridade territorial dos Estados. A Rússia, ao violar essas normas, está a desafiar essa ordem, o que contribui para um realinhamento geopolítico. A invasão levou a um aumento da coesão entre os membros da NATO, com países como a Finlândia e a Suécia a solicitar a adesão à aliança. Isto representa uma mudança significativa na segurança europeia e global.

Enquanto alguns países, especialmente na Europa e na América do Norte, alinharam-se firmemente contra a Rússia, outros, como a China e a Índia, mantêm uma postura mais neutra ou até de apoio implícito à Rússia. Este facto sublinha o crescente afastamento entre blocos geopolíticos. As sanções impostas à Rússia e a disrupção nos mercados de energia e alimentos devido à guerra tiveram efeitos globais, acelerando debates sobre a necessidade de diversificação económica e independência energética em várias regiões do mundo. A relação entre a Rússia e a China fortaleceu-se à medida que ambos os países se posicionam como contrapesos à influência ocidental. Esta parceria é um componente chave no realinhamento geopolítico global, sugerindo a possibilidade de uma aliança mais estreita entre potências que desafiam a hegemonia ocidental.

A invasão da Ucrânia é um marco importante no atual realinhamento geopolítico. Embora não seja diretamente a "Nova Ordem Mundial" de que algumas teorias da conspiração falam, é, sem dúvida, parte de uma mudança significativa na estrutura de poder global. Este conflito reflete a transição para um mundo onde a competição entre grandes potências e a fragmentação da ordem internacional são mais pronunciadas. A Rússia tem procurado expandir a sua influência global através da sua participação nos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), um grupo de economias emergentes que têm ganhado relevância como uma plataforma alternativa ao poder ocidental. Este alargamento da influência russa, especialmente no conceito do "Sul Global", está intimamente ligado ao desejo de Moscovo de desafiar a hegemonia dos EUA e das instituições ocidentais na governação global.

Os BRICS foram criados como uma resposta ao domínio das potências ocidentais nas instituições financeiras e políticas internacionais, como o FMI e o Banco Mundial. Os países membros, incluindo a Rússia, veem os BRICS como uma plataforma para promover uma ordem mundial mais multipolar. Os BRICS têm trabalhado para estabelecer mecanismos de cooperação que permitam maior independência em relação ao Ocidente. Isto inclui o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), que fornece financiamento para projetos de desenvolvimento sem as condições frequentemente associadas aos empréstimos do FMI. Através dos BRICS, a Rússia e os outros membros têm procurado construir laços mais fortes com países do Sul Global (África, América Latina, Ásia e Médio Oriente), promovendo a ideia de uma governação global mais inclusiva, onde as vozes do Sul Global sejam mais representadas.

A Rússia tem usado a sua posição como um dos maiores exportadores de energia do mundo para fortalecer laços com países do Sul Global. Isto inclui acordos para o fornecimento de petróleo e gás, bem como colaborações no desenvolvimento de infraestrutura energética. A Rússia também expandiu a sua influência através de acordos de defesa e venda de armas a vários países do Sul Global. Estas parcerias não só ajudam a Rússia a manter a sua indústria de defesa, mas também criam laços estratégicos duradouros com estes países. A Rússia tem buscado apoio político em fóruns internacionais de países do Sul Global, apresentando-se como um aliado na luta contra o que chama de "imperialismo ocidental". Isto é evidente na forma como alguns países do Sul Global têm adotado posturas mais neutras ou de apoio à Rússia em contextos como a ONU, em relação à guerra na Ucrânia. Em 2023, os BRICS anunciaram a sua intenção de expandir, com a inclusão de novos membros como a Arábia Saudita, Irão, Emirados Árabes Unidos, Argentina, Egito e Etiópia. Esta expansão é um sinal claro da crescente influência do grupo no Sul Global e da sua ambição de desempenhar um papel mais significativo na governação global.

A União Europeia (UE) enfrenta um cenário complexo e potencialmente desafiante no atual contexto geopolítico, especialmente considerando as dinâmicas globais envolvendo os Estados Unidos, a Rússia, a China e o Sul Global. A possibilidade de os EUA concentrarem mais esforços na região do Pacífico, devido à ascensão da China como potência global, pode colocar a UE numa posição vulnerável, exigindo maior autonomia estratégica e reforço das suas capacidades. Historicamente, a UE tem dependido fortemente dos EUA para a sua segurança, sobretudo através da NATO. Se os EUA tiverem de redirecionar recursos militares e diplomáticos para o Pacífico, a Europa pode enfrentar lacunas significativas na sua capacidade de defesa, especialmente no flanco oriental, onde a ameaça russa permanece significativa.

A guerra na Ucrânia e as sanções contra a Rússia têm exacerbado os desafios económicos e energéticos na Europa. A UE tem enfrentado uma crise energética devido à sua dependência anterior do gás russo, o que aumenta a pressão para encontrar fontes de energia alternativas e mais seguras. Além disso, a necessidade de responder a uma economia global em transformação pode colocar a Europa em competição direta com potências emergentes e economias do Sul Global. À medida que os EUA se concentram no Indo-Pacífico para conter a ascensão da China, a UE pode ver-se num dilema estratégico, dado o seu papel como parceiro comercial significativo da China. A crescente influência chinesa no Pacífico pode afetar as cadeias de fornecimento globais e as rotas comerciais das quais a UE depende, especialmente em sectores tecnológicos e industriais. A situação atual pressiona a UE a desenvolver uma maior autonomia estratégica, tanto na defesa como na política externa. No entanto, alcançar essa autonomia não será fácil devido à diversidade de interesses e capacidades militares entre os estados-membros. A criação de uma defesa europeia mais integrada e eficiente é um desafio complexo, mas cada vez mais necessário.

Por conseguinte, a UE pode usar esta situação como uma oportunidade para fortalecer a sua coesão interna e aprofundar a integração em áreas críticas, como a defesa comum, a política energética e a inovação tecnológica. Projetos como a PESCO (Cooperação Estruturada Permanente) são passos na direção certa, mas necessitam de maior compromisso e investimento dos estados-membros. Com os EUA a focarem-se no Pacífico, a UE pode precisar de diversificar as suas alianças e parcerias globais. Isto pode incluir o fortalecimento dos laços com potências médias, como o Japão, a Índia, e a Austrália, bem como uma reavaliação das suas relações com o Sul Global, especialmente na África e na América Latina. A UE tem liderado iniciativas em sustentabilidade e transição digital. Estes esforços não só podem fortalecer a sua posição global, mas também reduzir a dependência de fontes de energia e tecnologias externas, tornando a Europa mais resiliente a choques externos.

O potencial redirecionamento do foco estratégico dos EUA para o Pacífico coloca a UE perante um desafio significativo, onde a necessidade de maior autonomia estratégica e resiliência se torna crucial. A Europa deve adaptar-se rapidamente a um mundo multipolar em mudança, onde a sua capacidade de resposta a ameaças tanto internas como externas, bem como a sua habilidade para se afirmar como um ator global independente, será testada. O fortalecimento da cooperação interna, a diversificação das parcerias globais e o investimento em setores críticos são passos essenciais para mitigar os riscos e capitalizar sobre as oportunidades que este cenário global oferece.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

A chamada “guerra cultural”


Quando é que começou a chamada guerra cultural que, para além de ainda não ter acabado, continua a fraturar a esquerda liberal. A chamada "guerra cultural" refere-se a um conflito prolongado sobre valores culturais, sociais e morais, muitas vezes entre conservadores e liberais. Esse conflito começou a ganhar força nos Estados Unidos durante as décadas de 1960 e 1970 e se intensificou ao longo das décadas subsequentes.

A década de 1960 foi um período de grandes mudanças sociais nos Estados Unidos, com o movimento pelos direitos civis, o movimento feminista, o movimento LGBT, e protestos contra a Guerra do Vietname. Esses movimentos desafiaram o status quo e a ordem social estabelecida, resultando em uma polarização crescente entre aqueles que apoiavam essas mudanças e aqueles que se opunham a elas.

O termo "guerra cultural" foi popularizado nos anos 1990 pelo sociólogo James Davison Hunter no seu livro "Culture Wars: The Struggle to Define America". Hunter argumentou que a sociedade americana estava dividida em duas principais "culturas": os progressistas, que buscavam a mudança e a reforma, e os tradicionalistas, que defendiam valores conservadores e tradicionais. Durante os anos 1980 e 1990, essas divisões se manifestaram em debates sobre questões como o aborto, direitos LGBT, educação, religião na esfera pública e políticas de ação afirmativa. Políticos conservadores, como Ronald Reagan e posteriormente Newt Gingrich, capitalizaram essas divisões culturais para mobilizar eleitores e consolidar poder político.

No século XXI, a guerra cultural continuou a evoluir, intensificando-se com o advento das redes sociais e a polarização mediática. Questões como identidade de género, imigração, multiculturalismo, e liberdade de expressão tornaram-se pontos centrais de conflito. A eleição de Donald Trump em 2016 é frequentemente vista como um marco importante na guerra cultural contemporânea, exacerbando as divisões entre diferentes grupos sociais e políticos. Dentro da esquerda liberal, a guerra cultural também tem causado divisões. Por exemplo, há tensões entre progressistas e centristas sobre como abordar questões de justiça social, liberdade de expressão, e políticas de identidade. Alguns progressistas defendem abordagens mais radicais e transformadoras, enquanto outros temem que essas abordagens possam alienar eleitores moderados e levar a reações adversas.

Há uma fratura nos chamados moderados pós Sokal e Bricmont. A fratura entre os chamados "moderados" no campo intelectual após o episódio envolvendo Alan Sokal e Jean Bricmont, e o seu famoso livro Fashionable Nonsense (Imposturas Intelectuais), é uma questão que precede as políticas de identidade e interseccionalidade. Enquanto alguns argumentam que essas abordagens são essenciais para as injustiças históricas, outros veem nisso divisões com efeito boomerang. Controvérsias sobre "cancelamento" e cultura do boicote têm gerado debates acalorados sobre os limites da liberdade de expressão e o que constitui um discurso aceitável. Há divergências sobre a melhor maneira de alcançar mudanças sociais e políticas. Alguns defendem reformas graduais e pragmáticas. Mas outros exigem transformações mais radicais e imediatas.

É interessante analisar dentro do contexto dos debates sobre ciência, filosofia e pós-modernismo, quanta divisão se gerou com efeitos de “tiro no pé”. O episódio Sokal começou em 1996, quando Alan Sokal, um físico, submeteu um artigo intitulado "Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity" à revista de estudos culturais Social Text. O artigo era um embuste, escrito intencionalmente com jargões pós-modernos e ideias absurdas, sem qualquer sentido científico real. A publicação do artigo revelou como algumas partes da academia estavam aceitando, sem rigor crítico, ideias que misturavam ciência e filosofia de maneira confusa.

Os moderados no cenário intelectual foram afetados de várias maneiras por essa controvérsia: Alguns académicos consideravam que, apesar do episódio Sokal, ainda havia valor nas abordagens pós-modernas e desconstrutivistas para entender a cultura e as estruturas de poder. No entanto, eles também reconheciam a necessidade de rigor e cuidado ao aplicar esses conceitos. Eles defendiam uma visão mais moderada, em que o pós-modernismo poderia coexistir com a ciência e a racionalidade, sem desprezá-los totalmente.

Por outro lado, críticos moderados como Sokal e Bricmont argumentavam que certos intelectuais estavam abusando da ciência para justificar teorias filosóficas que careciam de fundamento. Eles buscavam um retorno ao rigor científico e ao pensamento racional, ao mesmo tempo que admitiam que a ciência não era a única via legítima para o conhecimento humano, mas enfatizavam a sua importância. A grande fratura se deu entre aqueles que, mesmo reconhecendo os limites do pós-modernismo, ainda o viam como uma ferramenta útil de crítica, e aqueles que achavam que a aceitação acrítica de qualquer discurso que misturasse jargões científicos com filosofia era um erro perigoso. Essa cisão se refletiu em debates maiores sobre a crise da verdade e da autoridade intelectual. O episódio de Sokal e Bricmont polarizou ainda mais as discussões, onde alguns intelectuais passaram a rejeitar inteiramente o relativismo e a desconstrução, enquanto outros tentavam encontrar um meio-termo, reconhecendo os excessos, mas não descartando as abordagens críticas do pós-modernismo. Isso criou um vácuo no centro dessas discussões, onde "moderados" de ambos os lados se viam cada vez mais isolados entre os campos polarizados.

Essa divisão reflete questões mais amplas sobre o papel da ciência, da filosofia e das humanidades na sociedade contemporânea, bem como sobre como navegar em um mundo em que as fronteiras entre a verdade objetiva e as construções culturais se tornaram profundamente contestadas.


Os estudos pós-coloniais

Os estudos pós-coloniais ganharam destaque nas últimas décadas, analisando o impacto duradouro do colonialismo e a perpetuação das suas consequências nas sociedades contemporâneas. Esses estudos desafiam narrativas históricas tradicionais, que muitas vezes glorificam figuras e eventos históricos sem considerar as suas implicações éticas e morais, especialmente em relação à opressão e exploração de povos colonizados.

Henrique, o Navegador, é uma figura central na história das explorações portuguesas e é frequentemente celebrado por suas contribuições para a era dos Descobrimentos. No entanto, estudiosos pós-coloniais e ativistas apontam que as suas explorações também iniciaram uma era de colonização, exploração e escravização de povos africanos. Henrique, o Navegador, e os exploradores portugueses de sua época desempenharam papéis significativos na abertura das rotas comerciais que levaram ao tráfico transatlântico de escravos. Esta é uma parte sombria da história que estudiosos pós-coloniais trazem à tona para um reexame crítico. Os defensores dos estudos pós-coloniais argumentam que a história deve ser reavaliada para incluir as vozes e experiências dos colonizados, que muitas vezes são omitidas das narrativas tradicionais. Isso inclui questionar a glorificação de figuras históricas como Henrique.

A presença de monumentos dedicados a figuras coloniais é vista por muitos como uma celebração de um passado de opressão. Assim, há um movimento crescente para reconsiderar esses monumentos, incluindo a remoção ou a recontextualização com placas informativas que ofereçam uma visão mais completa e crítica da história. Muitos veem esses movimentos como uma ameaça à identidade nacional e ao patrimônio cultural. Para eles, figuras como Henrique, o Navegador, são símbolos de um passado glorioso e de realização nacional. A tensão entre preservar a história tradicional e reavaliá-la à luz das críticas pós-coloniais gera um intenso debate público. Este diálogo é, por vezes, marcado por polarização e conflito, refletindo as divisões mais amplas na sociedade sobre como lidar com o passado colonial.

Em várias partes do mundo, ações concretas foram tomadas em resposta a essas críticas: Em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, monumentos de figuras controversas foram removidos ou recontextualizados. Há um esforço crescente para incorporar as perspetivas pós-coloniais nos currículos escolares e universitários, promovendo uma compreensão mais crítica e inclusiva da história. Os estudos pós-coloniais e os movimentos que questionam a glorificação de figuras históricas como Henrique, o Navegador, refletem uma tentativa de confrontar e reconciliar os legados complexos do colonialismo. Enquanto isso pode causar desconforto e resistência, é parte de um processo mais amplo de entendimento e justiça histórica.