quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Lealdade e tribalismo humano


O que está inscrito na génese da espécie humana é a lealdade não ultrapassar a dimensão da tribo. Não é natural para seres humanos serem leais a milhões de estranhos. Esta é uma perspetiva que reflete uma visão evolucionária sobre o comportamento humano. Durante a maior parte da história da espécie, os seres humanos viveram em grupos pequenos e coesos, geralmente compostos por poucas dezenas a centenas de pessoas. Nesses grupos, a lealdade e a cooperação eram fundamentais para a sobrevivência e, por isso, tendiam a se restringir àqueles com quem havia uma relação direta e contínua. E foi segundo esta matriz que durante várias eras de milénios os homo hominídeos se espalharam pelo globo terrestre.

O “tribalismo” perdurou durante à escala do milhão de anos até que surgiu uma nova capacidade de se formarem grandes grupos a aglutinar várias tribos para empreendimentos mais grandiosos. E assim se estabeleceram lealdades mais alargadas entre grandes grupos de estranhos, que sugere que a nossa capacidade de empatia e cooperação se desenvolveu para funcionar melhor em contextos onde conhecíamos pessoalmente os membros da nossa comunidade. Com a complexidade das sociedades que podem conter milhões de indivíduos, a lealdade e a coesão social precisou de ser mediada por instituições, ideologias e símbolos comuns, como nações, religiões e valores culturais.

Por isso, a lealdade a uma nação, por exemplo, pode ser vista como um tipo de "fidelidade imaginada" — um conceito explorado por Benedict Anderson ao falar sobre nações como "comunidades imaginadas", com a capacidade de transcender a lealdade tribal. Este foi o desafio constante que a humanidade imprimiu a si própria, exigindo a criação de narrativas e estruturas sociais que incentivem a coesão numa escala muito maior do que aquela para a qual a evolução nos preparou biologicamente.

Para construir as pirâmides, e controlar as cheias do Nilo, os egípcios dos faraós tiveram de exceder a dimensão de uma tribo. A construção das pirâmides e o controlo das cheias do Nilo pelos antigos egípcios ilustram como as primeiras civilizações humanas conseguiram transcender as limitações da organização tribal. Essas realizações exigiram um nível de cooperação e coordenação que ultrapassava em muito a capacidade de pequenas tribos. O que possibilitou essa superação foi o desenvolvimento de estruturas sociais, políticas e religiosas que uniram grandes grupos de pessoas sob uma identidade comum. No caso dos egípcios, a figura do faraó desempenhou um papel crucial como símbolo de unidade e autoridade divina, capaz de mobilizar recursos e mão de obra em grande escala. Além disso, as religiões, os mitos e as crenças na vida após a morte forneceram um propósito coletivo que transcendia os interesses individuais ou de pequenos grupos, incentivando o esforço cooperativo em prol de grandes empreendimentos.

Essas sociedades desenvolveram sistemas administrativos, hierarquias sociais e tecnologias de comunicação que permitiram a gestão de grandes populações e recursos. Portanto, embora a lealdade natural do ser humano possa ter sido limitada à tribo, as primeiras civilizações encontraram formas de estender essa lealdade por meio de narrativas culturais e estruturas de poder que criaram um sentido de identidade compartilhada em uma escala muito maior.

Esse processo de "superação" da organização tribal pela criação de instituições complexas foi uma das chaves para o surgimento das civilizações e para a realização de obras monumentais como as pirâmides. No entanto, essa transcendência também trouxe novos desafios, como a necessidade de manter a coesão social e a legitimidade das autoridades em uma escala nunca experimentada.

O atual surto nacionalista está a tornar-se um problema na medida em que o patriotismo benigno se transforma num ultranacionalismo chauvinista. O aumento do nacionalismo em várias partes do mundo pode, de facto, transformar o patriotismo benigno em um ultranacionalismo chauvinista, levando a consequências preocupantes. Patriotismo benigno geralmente envolve um amor saudável pelo país, uma disposição para contribuir para o bem comum e um reconhecimento dos valores cívicos e da diversidade dentro da nação. Ultranacionalismo e chauvinismo, por outro lado, promovem a ideia de superioridade da própria nação em relação a outras, frequentemente desconsiderando ou desumanizando os estrangeiros e minorias. Isso pode resultar em xenofobia, racismo e discriminação.

O ultranacionalismo pode minar a coesão social ao dividir as pessoas em "nós" contra "eles", levando a tensões internas, violência e polarização. A retórica nacionalista pode ser utilizada para justificar políticas que excluem ou marginalizam certos grupos, como imigrantes ou minorias étnicas. Em termos políticos, o crescimento do ultranacionalismo pode resultar em governos autoritários, uma erosão dos direitos civis e uma diminuição do pluralismo democrático. O ultranacionalismo tende a promover uma política externa agressiva, onde as nações buscam afirmar a sua supremacia ou interesses nacionais de maneira militarista ou imperialista, o que pode levar a conflitos internacionais e à instabilidade global.

A retórica nacionalista pode também dificultar a cooperação internacional em questões globais, como mudanças climáticas, saúde pública e segurança, uma vez que as nações podem-se tornar mais preocupadas em proteger os seus interesses imediatos do que em buscar soluções coletivas. O ressurgimento de movimentos nacionalistas em diversas democracias, como nos EUA, Brasil, Hungria e várias nações europeias, ilustra essa tendência. Políticos e partidos que promovem uma agenda nacionalista têm ganhado apoio popular ao explorarem medos económicos e sociais, frequentemente apresentando os estrangeiros e imigrantes como bodes expiatórios.

Para contrabalançar o ultranacionalismo, é crucial promover uma forma de patriotismo inclusivo que valorize a diversidade e a solidariedade global. O diálogo intercultural, a educação e a promoção de políticas que integrem e celebrem a pluralidade podem ajudar a mitigar os efeitos negativos do nacionalismo exacerbado. Em suma, a transformação do patriotismo benigno em ultranacionalismo chauvinista é um fenómeno preocupante que pode ter consequências graves tanto a nível interno quanto global, exigindo uma resposta consciente e proativa da sociedade e dos líderes.

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