segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Avanços e percalços da História – Andante opus nº 2
O que se está a passar um pouco pela Europa, um pouco pela América, em última análise trata-se de uma questão de sobrevivência étnico/cultural. A Europa e a América enfrentam um momento em que as questões de identidade cultural e étnica estão no centro dos debates sobre política, imigração, segurança e coesão social. Em muitos aspetos, essas regiões vivem uma luta de identidade, onde as mudanças demográficas e culturais provocam preocupações sobre a preservação de valores, tradições e, em última análise, o caráter de suas sociedades. Essa "sobrevivência étnico/cultural" reflete um medo crescente de que as fundações culturais possam ser diluídas diante da globalização, da imigração e de novas influências culturais e religiosas.
Na Europa, essa questão é visível em discussões sobre a "europeidade" — o que define a cultura europeia e como ela pode ser mantida em face de mudanças demográficas rápidas. Nos Estados Unidos, embora com uma base histórica e cultural distinta, observa-se um debate similar sobre a identidade nacional, a questão racial e os valores americanos tradicionais. Em ambos os casos, esse sentimento se mistura a preocupações económicas e políticas, como se a perda da identidade cultural pudesse significar uma ameaça à ordem social e à estabilidade. Mas esse fenómeno não é apenas uma reação às transformações internas; ele é intensificado por dinâmicas globais, como a migração de populações de áreas em crise para países mais desenvolvidos, buscando segurança e oportunidades. A "sobrevivência étnico/cultural" é, assim, uma resposta ao impacto de um mundo cada vez mais interconectado, no qual a preservação da identidade cultural é vista por alguns como vital para manter coesão e continuidade, enquanto outros defendem uma visão de integração e transformação mútua. Por isso, o desafio para o futuro talvez resida em encontrar uma maneira de respeitar e valorizar as identidades culturais locais, enquanto se lida com as realidades de um mundo em mudança — evitando, ao mesmo tempo, cair em extremos que possam ameaçar tanto a inclusão como a estabilidade social.
E assim, numa espécie de guerra de trincheiras os identitários viram uns contra os outros o rótulo de extremista ou radical. O cenário atual muitas vezes se parece com uma guerra de trincheiras, onde grupos identitários se posicionam em lados opostos, defendendo suas visões de mundo como verdades absolutas. Essa polarização cria uma atmosfera na qual rotular o outro como "extremista" ou "radical" se torna uma estratégia comum. Ao deslegitimar a posição oposta, cada grupo reforça a própria identidade e constrói uma imagem de ameaça em relação ao "outro". Esse mecanismo de rotulação, de facto, serve tanto para proteger a própria ideologia quanto para justificar medidas de defesa contra o que é visto como "inimigo".
O problema é que essa lógica de trincheira alimenta uma espiral de escalada, onde a capacidade de diálogo e a busca por compromissos são sacrificadas em prol de uma defesa intransigente das posições. Cada lado tende a ver o outro não só como adversário, mas como uma ameaça existencial que precisa ser neutralizada, levando a uma divisão profunda e uma perpetuação da inimizade. Além disso, essas trincheiras simbólicas acabam sendo reforçadas por algoritmos em redes sociais e meios de comunicação polarizados, que ecoam e amplificam o discurso interno de cada grupo. Assim, a "guerra de trincheiras" entre identitários não é apenas ideológica, mas também tecnológica e cultural, com as "armas" sendo a informação, a narrativa e a influência. O resultado é uma sociedade cada vez mais fragmentada, na qual a cooperação e a busca por soluções comuns se tornam raridades, enquanto o estado de tensão e vigilância mútua é normalizado.
Parece que a esperança de um cosmopolitismo universal se revelou uma espécie de cegueira dogmática e ideológica. A ideia de um cosmopolitismo universal, tão sonhada por pensadores iluministas e idealistas modernos, parece ter se confrontado com limites inesperados na realidade prática. A visão de um mundo sem fronteiras culturais, onde todos se identificariam com valores e uma "cidadania global", esbarra em realidades profundas e complexas, como o apego às identidades locais, culturais e nacionais. Esse ideal cosmopolita foi, em muitos aspetos, uma reação ao sectarismo, à guerra e ao nacionalismo extremo. Mas, ao ignorar as raízes culturais e os contextos históricos que moldam as sociedades, acabou criando uma espécie de "cegueira" em relação ao valor da diversidade de identidades e aos desafios de integrá-las em um modelo único. Em vez de eliminar os conflitos, o cosmopolitismo universal, como dogma, pode ter exacerbado tensões, despertando reações contra o que é percebido como uma imposição de valores externos ou uma ameaça à identidade local.
A ideia de um cosmopolitismo universal não necessita ser completamente abandonada, mas talvez ajustada à realidade das identidades culturais, onde a convivência exige um equilíbrio entre o global e o local, entre o universal e o particular. O mundo globalizado revelou que as diferenças culturais são mais resilientes e arraigadas do que muitos cosmopolitas imaginavam. No lugar de uma "comunidade universal", vemos a formação de bolhas culturais e ideológicas, que coexistem mais como competidoras do que como parceiras. Isso levanta a questão de se não deveríamos reavaliar a utopia cosmopolita e buscar modelos de convivência que respeitem as diferenças, sem a expectativa de uma fusão homogénea, mas sim com a valorização de uma diversidade saudável e, na medida do possível, cooperativa.
Novos fenómenos sociais, no início, são sempre vistos como radicais, mas neste momento os identitários estão a ganhar o coração de largas camadas das populações europeias e americanas. Movimentos identitários que antes pareciam marginais ou radicais encontram hoje uma receptividade crescente, em parte porque tocam em questões fundamentais de pertencimento, cultura e segurança diante de mudanças aceleradas. As camadas populacionais que se sentem desorientadas ou desvalorizadas pelo cosmopolitismo global e pela dissolução de tradições veem nos identitários uma promessa de revalorização de suas raízes e uma defesa contra aquilo que percebem como ameaças à sua forma de vida.
Esses movimentos estão-se popularizando não só pela reafirmação de valores culturais específicos, mas também por sua capacidade de dialogar com ansiedades sociais e económicas. Num contexto de incertezas sobre o futuro, muitas pessoas se voltam para narrativas identitárias que oferecem uma sensação de estabilidade e continuidade. O fenómeno é um reflexo da desconfiança em relação às elites políticas e intelectuais que, muitas vezes, foram vistas como defensoras de um ideal cosmopolita descolado da realidade vivida pelas classes médias e trabalhadoras. A popularidade dos identitários sugere uma transformação no modo como as sociedades veem a globalização e a integração cultural. Cada vez mais, o discurso identitário ganha contornos de resistência e, em certos casos, de contraponto a um multiculturalismo sem fronteiras. As camadas que agora abraçam esses valores parecem estar buscando uma renovação da coesão social, mas com uma base culturalmente enraizada, refletindo o desejo de pertencimento em um mundo que, paradoxalmente, está mais interconectado e mais fragmentado.
Em França vê-se o voto em Marine Le Pen, e na América em Donald Trump, quase metade por metade. As eleições na França e nos Estados Unidos ilustram bem esse fenómeno. Em ambos os países, figuras como Marine Le Pen e Donald Trump conseguiram captar o sentimento de descontentamento e alienação de amplas parcelas da população, canalizando-o em torno de uma visão identitária e nacionalista. Esses líderes têm atraído eleitores que se sentem negligenciados pelas políticas globalistas e pelas elites estabelecidas, oferecendo uma narrativa de "proteção" e "restauração" dos valores tradicionais. Na França, Marine Le Pen representa uma alternativa para aqueles que veem o crescimento do multiculturalismo e da imigração como uma ameaça à identidade francesa. Ela se posiciona como defensora de uma França soberana e culturalmente unificada, afastada dos projetos cosmopolitas e dos compromissos supranacionais, como os da União Europeia. Esse apelo ressoa especialmente em áreas fora dos grandes centros urbanos, onde o impacto da globalização é mais sentido em termos de perda de empregos, insegurança e transformações culturais aceleradas.
Nos Estados Unidos, Trump fez um movimento similar, apelando para a nostalgia de um "passado melhor" e prometendo "tornar a América grande novamente." Ele representa uma ruptura com o establishment e defende uma política que prioriza os interesses nacionais e culturais, frequentemente em oposição ao multiculturalismo e à imigração. Esse apoio maciço revela o desejo de metade da população por uma América mais fechada e fiel aos valores que considera "verdadeiramente americanos." Esses fenómenos em França e nos Estados Unidos não são casos isolados, mas parte de uma tendência mais ampla de ressurgimento do nacionalismo identitário no Ocidente, especialmente em tempos de incerteza global. É um reflexo da busca por segurança cultural e social num mundo que muitos sentem que está em transformação.
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