quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Entre demagogos e utopistas



A História que não chegou ao fim, antes pelo contrário, mostra-nos demais que tanto ideólogos como populistas carismáticos falharam sempre. A História é um testemunho incansável do fracasso de ideólogos e populistas que tentaram, em várias épocas, moldar a sociedade conforme ideais rígidos ou promessas inflamadas. A crença em soluções absolutas – seja no racionalismo inflexível dos ideólogos, seja nos simplismos dos populistas carismáticos – nunca levou a nada de positivo, dada a complexidade e as nuances da natureza humana e social.

É errada a desconsideração dos demagogos para com as contradições intrínsecas e inerentes à diversidade dos interesses humanos. Toda a demagogia tende a gerar movimentos de grande impacto, mas incapazes de sustentar transformações duradouras e verdadeiramente harmoniosas. Muitas vezes a tentativa de corrigir um erro acaba por criar outro, às vezes pior. O "fim da História" anunciado por alguns, como sabemos, é apenas mais um desses idealismos. Em vez de fechada, a História é aberta. Há sempre novos desafios e paradoxos que transcendem a capacidade humana para solucionar problemas que nunca tiveram solução ao longo da História.

Demagogos e utopistas tendem a atirar para quem está no poder, os culpados de todos os males da sociedade. Como se fosse possível que as sociedades pudessem ser perfeitas. Eles muitas vezes simplificam questões complexas, atribuindo todos os problemas da sociedade a um grupo específico, geralmente quem está no poder. Essa abordagem tende a criar uma narrativa de "nós contra eles", iludindo-se com a ideia de que, ao remover ou substituir os que estão no poder, todos os problemas desaparecerão. Essa visão ignora a complexidade inerente às sociedades e os problemas estruturais que não se resolvem apenas com mudanças de liderança. A busca pela perfeição social ou política, como se fosse alcançável em sua totalidade, é frequentemente um erro utópico: tenta-se impor um ideal rígido a uma realidade humana intrinsecamente caótica e diversa.

Demagogo e utopista são dois termos da diatribe ou catilinária política que carrega um peso ideológico por parte dos adversários. Assim, no imaginário político, “demagogo” é mais vezes associada à direita populista por adversários de esquerda. Utopista é frequentemente atribuído pela direita aos adversários da esquerda. Portanto esses termos tendem a refletir mais a forma como o adversário político vê o outro do que propriamente a realidade. Os demagogos são vistos como exploradores das emoções e temores populares, que com frequência apresentam soluções simples e diretas para problemas complexos, apelando a uma base conservadora e nacionalista. Já os utopistas, por seu lado, são vistos como idealistas que propõem mudanças radicais, imaginando um futuro perfeito em que se eliminarão as injustiças sociais e as desigualdades, por vezes sem dar atenção suficiente à viabilidade prática dessas propostas. No fundo, ambos acabam simplificando e exagerando em suas visões, seja ao projetar um passado glorificado ou um futuro idealizado.

É verdade que, em alguns círculos, mulheres académicas (assim como outros grupos com formação superior) podem reivindicar uma certa autoridade moral ou intelectual ao abordar temas sociais, especialmente quando se trata de causas como igualdade de género, direitos das minorias e justiça social. Esse fenómeno reflete um traço comum a muitos grupos que, ao obter um maior nível de especialização, assumem que o seu conhecimento e consciência das questões estruturais lhes conferem uma posição moral privilegiada. Contudo, essa "superioridade moral" reivindicada pode ser interpretada de maneiras diferentes. Para uns, é uma forma de legitimar os seus estudos numa visão crítica da sociedade; para outros, soa como uma forma de elitismo intelectual, em que se desqualifica a experiência e o conhecimento daqueles que não pertencem ao meio académico. Essa diferença de percepção cria um abismo entre o discurso teórico e a realidade prática, levando a divisões na sociedade, inclusive dentro dos próprios movimentos que defendem a igualdade e os direitos das minorias. Talvez o verdadeiro desafio seja encontrar um equilíbrio entre conhecimento especializado e respeito pelas experiências e saberes práticos de outras classes e contextos.

É difícil negar que o Ocidente enfrenta sinais de declínio em diversas esferas. Esse fenómeno tem sido marcado por fatores como crises económicas frequentes, divisões políticas internas, desindustrialização em alguns setores, e um visível cansaço cultural e espiritual. No entanto, o declínio não é algo imediato; ele se desenrola como um processo gradual e multifacetado, lembrando, de certa forma, o fim do Império Romano, em que várias crises convergiram lentamente.

Há ainda o contraste com o crescimento de potências como a China e a Índia, que desafiam a hegemonia cultural e económica do Ocidente, somado ao fortalecimento de blocos como os BRICS. Nesse cenário, o Ocidente parece cada vez mais dividido entre manter uma identidade e valores próprios e tentar responder às demandas de um mundo cada vez mais multipolar. Esse declínio, ao que tudo indica, é menos uma queda abrupta e mais uma transição, onde os valores e as instituições ocidentais terão de enfrentar um contexto global onde a centralidade histórica do Ocidente, talvez, perderá relevância para um papel mais distribuído e plural.

Desde a década de 1980, com o avanço do neoliberalismo e das políticas de desregulamentação, houve uma mudança significativa na forma como o capitalismo opera. A estabilidade económica e o crescimento sustentado que caracterizavam o pós-guerra começaram a dar lugar a um capitalismo mais volátil, orientado por ganhos de curto prazo e menos comprometido com o bem-estar das classes trabalhadoras. Isso resultou em condições de vida piores para as gerações mais jovens, que enfrentam salários estagnados, habitação inacessível, educação e saúde cada vez mais caras e menos segurança no emprego. Além disso, a diminuição na expectativa de vida em algumas classes trabalhadoras é um sintoma alarmante dessa crise lenta do capitalismo. Esse fenómeno está ligado ao aumento do trabalho precário, à deterioração da saúde mental, ao crescimento do abuso de substâncias e à falta de acesso a cuidados médicos adequados, especialmente em regiões que sofreram com o fechamento de indústrias e a desindustrialização. A consequência é uma geração que vive com um sentido de precariedade, sem a segurança económica que seus pais ou avós tiveram, e que vê o seu futuro incerto e limitado. Este cenário revela que o capitalismo ocidental, tal como se consolidou nas últimas décadas, parece não conseguir mais sustentar a promessa de prosperidade e segurança que outrora ofereceu.

E apesar de os grupos mais privilegiados não terem culpa direta, a verdade é que o ressentimento dos que menos têm vai acabar por afetar também os que mais têm. Mesmo que as elites e grupos mais privilegiados não sejam diretamente culpados pela situação, o ressentimento acumulado das classes mais desfavorecidas tende a se dirigir a quem parece estar no controlo ou desfrutando de um nível de vida inacessível para a maioria. Esse ressentimento, por vezes, transforma-se em tensões sociais e políticas que, historicamente, acabam por atingir o próprio sistema e as classes privilegiadas, criando uma pressão por redistribuição ou, em casos mais críticos, por mudanças radicais na estrutura social.

Essa dinâmica já é visível em fenómenos como o crescimento dos movimentos populistas e o aumento da polarização política. Muitos desses movimentos capitalizam justamente sobre o ressentimento popular, prometendo desafiar as elites e restaurar algum tipo de "justiça social" para os que foram deixados para trás pelo sistema económico. À medida que a desigualdade se agrava, esses conflitos podem-se intensificar e resultar em pressões reais sobre as classes privilegiadas, que, mesmo sem ter causado diretamente as crises, se veem cada vez mais responsabilizadas por elas.

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