terça-feira, 1 de outubro de 2024

A chamada “guerra cultural”


Quando é que começou a chamada guerra cultural que, para além de ainda não ter acabado, continua a fraturar a esquerda liberal. A chamada "guerra cultural" refere-se a um conflito prolongado sobre valores culturais, sociais e morais, muitas vezes entre conservadores e liberais. Esse conflito começou a ganhar força nos Estados Unidos durante as décadas de 1960 e 1970 e se intensificou ao longo das décadas subsequentes.

A década de 1960 foi um período de grandes mudanças sociais nos Estados Unidos, com o movimento pelos direitos civis, o movimento feminista, o movimento LGBT, e protestos contra a Guerra do Vietname. Esses movimentos desafiaram o status quo e a ordem social estabelecida, resultando em uma polarização crescente entre aqueles que apoiavam essas mudanças e aqueles que se opunham a elas.

O termo "guerra cultural" foi popularizado nos anos 1990 pelo sociólogo James Davison Hunter no seu livro "Culture Wars: The Struggle to Define America". Hunter argumentou que a sociedade americana estava dividida em duas principais "culturas": os progressistas, que buscavam a mudança e a reforma, e os tradicionalistas, que defendiam valores conservadores e tradicionais. Durante os anos 1980 e 1990, essas divisões se manifestaram em debates sobre questões como o aborto, direitos LGBT, educação, religião na esfera pública e políticas de ação afirmativa. Políticos conservadores, como Ronald Reagan e posteriormente Newt Gingrich, capitalizaram essas divisões culturais para mobilizar eleitores e consolidar poder político.

No século XXI, a guerra cultural continuou a evoluir, intensificando-se com o advento das redes sociais e a polarização mediática. Questões como identidade de género, imigração, multiculturalismo, e liberdade de expressão tornaram-se pontos centrais de conflito. A eleição de Donald Trump em 2016 é frequentemente vista como um marco importante na guerra cultural contemporânea, exacerbando as divisões entre diferentes grupos sociais e políticos. Dentro da esquerda liberal, a guerra cultural também tem causado divisões. Por exemplo, há tensões entre progressistas e centristas sobre como abordar questões de justiça social, liberdade de expressão, e políticas de identidade. Alguns progressistas defendem abordagens mais radicais e transformadoras, enquanto outros temem que essas abordagens possam alienar eleitores moderados e levar a reações adversas.

Há uma fratura nos chamados moderados pós Sokal e Bricmont. A fratura entre os chamados "moderados" no campo intelectual após o episódio envolvendo Alan Sokal e Jean Bricmont, e o seu famoso livro Fashionable Nonsense (Imposturas Intelectuais), é uma questão que precede as políticas de identidade e interseccionalidade. Enquanto alguns argumentam que essas abordagens são essenciais para as injustiças históricas, outros veem nisso divisões com efeito boomerang. Controvérsias sobre "cancelamento" e cultura do boicote têm gerado debates acalorados sobre os limites da liberdade de expressão e o que constitui um discurso aceitável. Há divergências sobre a melhor maneira de alcançar mudanças sociais e políticas. Alguns defendem reformas graduais e pragmáticas. Mas outros exigem transformações mais radicais e imediatas.

É interessante analisar dentro do contexto dos debates sobre ciência, filosofia e pós-modernismo, quanta divisão se gerou com efeitos de “tiro no pé”. O episódio Sokal começou em 1996, quando Alan Sokal, um físico, submeteu um artigo intitulado "Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity" à revista de estudos culturais Social Text. O artigo era um embuste, escrito intencionalmente com jargões pós-modernos e ideias absurdas, sem qualquer sentido científico real. A publicação do artigo revelou como algumas partes da academia estavam aceitando, sem rigor crítico, ideias que misturavam ciência e filosofia de maneira confusa.

Os moderados no cenário intelectual foram afetados de várias maneiras por essa controvérsia: Alguns académicos consideravam que, apesar do episódio Sokal, ainda havia valor nas abordagens pós-modernas e desconstrutivistas para entender a cultura e as estruturas de poder. No entanto, eles também reconheciam a necessidade de rigor e cuidado ao aplicar esses conceitos. Eles defendiam uma visão mais moderada, em que o pós-modernismo poderia coexistir com a ciência e a racionalidade, sem desprezá-los totalmente.

Por outro lado, críticos moderados como Sokal e Bricmont argumentavam que certos intelectuais estavam abusando da ciência para justificar teorias filosóficas que careciam de fundamento. Eles buscavam um retorno ao rigor científico e ao pensamento racional, ao mesmo tempo que admitiam que a ciência não era a única via legítima para o conhecimento humano, mas enfatizavam a sua importância. A grande fratura se deu entre aqueles que, mesmo reconhecendo os limites do pós-modernismo, ainda o viam como uma ferramenta útil de crítica, e aqueles que achavam que a aceitação acrítica de qualquer discurso que misturasse jargões científicos com filosofia era um erro perigoso. Essa cisão se refletiu em debates maiores sobre a crise da verdade e da autoridade intelectual. O episódio de Sokal e Bricmont polarizou ainda mais as discussões, onde alguns intelectuais passaram a rejeitar inteiramente o relativismo e a desconstrução, enquanto outros tentavam encontrar um meio-termo, reconhecendo os excessos, mas não descartando as abordagens críticas do pós-modernismo. Isso criou um vácuo no centro dessas discussões, onde "moderados" de ambos os lados se viam cada vez mais isolados entre os campos polarizados.

Essa divisão reflete questões mais amplas sobre o papel da ciência, da filosofia e das humanidades na sociedade contemporânea, bem como sobre como navegar em um mundo em que as fronteiras entre a verdade objetiva e as construções culturais se tornaram profundamente contestadas.


Os estudos pós-coloniais

Os estudos pós-coloniais ganharam destaque nas últimas décadas, analisando o impacto duradouro do colonialismo e a perpetuação das suas consequências nas sociedades contemporâneas. Esses estudos desafiam narrativas históricas tradicionais, que muitas vezes glorificam figuras e eventos históricos sem considerar as suas implicações éticas e morais, especialmente em relação à opressão e exploração de povos colonizados.

Henrique, o Navegador, é uma figura central na história das explorações portuguesas e é frequentemente celebrado por suas contribuições para a era dos Descobrimentos. No entanto, estudiosos pós-coloniais e ativistas apontam que as suas explorações também iniciaram uma era de colonização, exploração e escravização de povos africanos. Henrique, o Navegador, e os exploradores portugueses de sua época desempenharam papéis significativos na abertura das rotas comerciais que levaram ao tráfico transatlântico de escravos. Esta é uma parte sombria da história que estudiosos pós-coloniais trazem à tona para um reexame crítico. Os defensores dos estudos pós-coloniais argumentam que a história deve ser reavaliada para incluir as vozes e experiências dos colonizados, que muitas vezes são omitidas das narrativas tradicionais. Isso inclui questionar a glorificação de figuras históricas como Henrique.

A presença de monumentos dedicados a figuras coloniais é vista por muitos como uma celebração de um passado de opressão. Assim, há um movimento crescente para reconsiderar esses monumentos, incluindo a remoção ou a recontextualização com placas informativas que ofereçam uma visão mais completa e crítica da história. Muitos veem esses movimentos como uma ameaça à identidade nacional e ao patrimônio cultural. Para eles, figuras como Henrique, o Navegador, são símbolos de um passado glorioso e de realização nacional. A tensão entre preservar a história tradicional e reavaliá-la à luz das críticas pós-coloniais gera um intenso debate público. Este diálogo é, por vezes, marcado por polarização e conflito, refletindo as divisões mais amplas na sociedade sobre como lidar com o passado colonial.

Em várias partes do mundo, ações concretas foram tomadas em resposta a essas críticas: Em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, monumentos de figuras controversas foram removidos ou recontextualizados. Há um esforço crescente para incorporar as perspetivas pós-coloniais nos currículos escolares e universitários, promovendo uma compreensão mais crítica e inclusiva da história. Os estudos pós-coloniais e os movimentos que questionam a glorificação de figuras históricas como Henrique, o Navegador, refletem uma tentativa de confrontar e reconciliar os legados complexos do colonialismo. Enquanto isso pode causar desconforto e resistência, é parte de um processo mais amplo de entendimento e justiça histórica.

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