A metáfora das "moscas" na "malformação moral" presente nas ideologias políticas e nos conflitos entre países que leva a guerras, tanto faz ser o nazismo como o estalinismo, reside na disposição de subordinar o valor da vida humana e os princípios éticos a uma causa ideológica, seja ela de direita ou de esquerda. Nesse sentido, o que muda são os "rótulos" — as ideologias que justificam as ações — mas o desprezo pela dignidade humana e a propensão ao totalitarismo permanecem constantes. Ambos os regimes, em suas formas extremas, mostraram uma incapacidade de reconhecer o Outro como plenamente humano e uma disposição para usar a violência, a repressão e o terror em nome de um "bem maior" ou de um ideal utópico. Assim, os horrores do estalinismo e do nazismo compartilham a mesma base moral corrompida, embora sob bandeiras distintas: a luta de classes de um lado e a pureza racial de outro.
A metáfora também aponta para o facto de que, independentemente das mudanças de fachada ou de ideologia, o problema central é a desumanização e a instrumentalização das pessoas. Regimes extremistas, sejam comunistas, fascistas ou de qualquer outra orientação, tendem a se basear no mesmo princípio autoritário: a crença de que o fim justifica os meios, e que o poder pode ser exercido sem limites morais quando se trata de alcançar certos objetivos ideológicos. A reflexão final, portanto, é que a verdadeira batalha não é entre ideologias específicas, mas contra essa tendência humana à desumanização e à construção de sistemas que colocam a ideologia acima da ética e da vida. Trocam-se as "moscas", mas o pasto permanece o mesmo.
Um pasto mental muito em voga é o que hoje se dá pelo nome de "narrativas". Um alimento poderoso nas disputas políticas e nos conflitos contemporâneos impingido às massas amorfas para moldar a opinião pública e atrair simpatia ou apoio para diferentes causas. No caso específico do conflito no Médio Oriente, frequentemente destacam-se aspetos que podem sensibilizar a audiência global conforme simpatizamos com um lado ou com o outro. A narrativa de que "mulheres e crianças foram atingidas" é muitas vezes utilizada porque, em qualquer conflito, as vítimas civis tendem a gerar maior comoção e solidariedade. Isso não quer dizer que tais incidentes não ocorram, mas pode haver manipulação de informação para amplificar certos aspetos do conflito. A presença de operacionais do Hamas em áreas densamente povoadas e o uso de civis como escudos humanos, algo amplamente documentado, torna a linha entre combatentes e civis ainda mais turva.
Os intervenientes no mundo mediático, de que os jornalistas e os analistas ou comentadores são uma parte, e a classe política outra parte, podem, conscientemente ou não, ajudar a reforçar essas narrativas ao focar em determinadas imagens e histórias que ressoam emocionalmente. Isso gera uma percepção seletiva da realidade, onde a complexidade do conflito muitas vezes é reduzida a narrativas de "heróis" e "vilões", dependendo da perspetiva adotada. No entanto, é fundamental que a análise de qualquer conflito considere a multiplicidade de fatores envolvidos, sem cair em simplificações ou manipulações, reconhecendo que tanto a imprensa como os grupos envolvidos em conflitos armados têm interesse em influenciar a percepção pública.
A imparcialidade é uma virtude rara, quando até o "nós" e o "eles" ideológico contamina o jornalismo. A imparcialidade, que deveria ser um dos pilares do jornalismo, é muitas vezes comprometida quando o "nós" e o "eles" ideológico permeia a narrativa jornalística. Em vez de reportar os factos de maneira objetiva, muitos veículos de imprensa acabam assumindo uma postura enviesada, seja por pressão política, económica, ou por convicções ideológicas. Essa tendência é particularmente evidente em questões polarizantes, como conflitos armados, questões de justiça social ou debates políticos intensos. Quando o jornalismo se torna refém dessas divisões, ele passa a reforçar as crenças preexistentes de seus públicos, criando uma espécie de bolha informativa. Isso leva à formação de "nichos" de informação, onde as pessoas buscam notícias que confirmem suas visões de mundo, em vez de serem desafiadas por uma análise imparcial e abrangente dos factos.
O verdadeiro papel do jornalista deveria ser o de apresentar os acontecimentos com rigor e responsabilidade, permitindo que o público forme a sua própria opinião baseada em factos, não em interpretações enviesadas. A virtude da imparcialidade é rara porque requer a capacidade de separar as próprias convicções e resistir às pressões externas para moldar a narrativa de acordo com uma ideologia. Infelizmente, essa contaminação ideológica do jornalismo é também sintomática de uma era em que as fronteiras entre opinião e facto estão a tornar-se cada vez mais nebulosas, com o resultado de que o "nós contra eles" se intensifica, em vez de promover o diálogo e a compreensão mútua.
É um alerta contra a ideia de que é possível moldar a natureza humana de acordo com uma visão utópica. Qualquer tentativa de criar um mundo "perfeito" muitas vezes resulta na repressão das qualidades que nos tornam humanos — a liberdade, a individualidade, o direito ao erro, e a imperfeição. Essa busca por um ideal pode, paradoxalmente, levar à desumanização e à criação de um sistema opressor. O "aperfeiçoamento forçado" da condição humana, como visto em várias ideologias do século XX, levou a massacres e à repressão brutal em nome de uma visão de progresso ou pureza. No livro “Nós” Zamyatin destaca os custos humanos dessa tentativa de reformular a natureza humana e serve como uma crítica não só aos regimes totalitários, mas também a qualquer ideologia que proponha soluções definitivas para os dilemas humanos, à custa da liberdade individual e da diversidade. A obra de Zamyatin, ao lado de 1984 de Orwell e Admirável Mundo Novo de Huxley, é um dos grandes marcos literários que expõem os riscos inerentes à engenharia social autoritária e à supressão das complexidades humanas em nome de um suposto bem maior.
Uma posição moderada e equilibrada é sempre a melhor, mas ao mesmo tempo é muito ingrata porque é atacada pelos dois extremos, e os extremismos não olham a meios. A moderação e o equilíbrio costumam ser as posturas mais racionais e ponderadas, mas, paradoxalmente, também as mais vulneráveis em tempos de polarização. Quem ocupa uma posição moderada tende a buscar o diálogo, a compreensão mútua e a ponderação entre diferentes perspectivas, mas isso frequentemente atrai críticas dos dois extremos, que veem a moderação como fraqueza, indecisão ou até cumplicidade com o lado oposto. Os extremismos, por sua própria natureza, operam com base em certezas absolutas e dicotomias rígidas — "nós contra eles", "certo contra errado". A moderação, por outro lado, reconhece a complexidade e as nuances das questões, e tenta encontrar soluções que contemplem as diferentes partes envolvidas. Isso, porém, é algo que não agrada a quem busca respostas rápidas e simplistas, ou a quem deseja impor sua visão sem concessões.
Além disso, os extremistas costumam usar táticas agressivas, que incluem desqualificação moral, manipulação de informação e, em casos mais graves, violência física ou simbólica. Nesse contexto, o moderado enfrenta um grande desafio: enquanto tenta apelar ao diálogo e ao compromisso, os extremos não hesitam em utilizar todos os meios ao seu dispor para avançar suas causas. O resultado é que as vozes moderadas muitas vezes são sufocadas, não apenas pela agressividade dos extremos, mas também pela natureza dos debates públicos contemporâneos, que tendem a favorecer o confronto e a polarização, em vez do consenso. No entanto, apesar de ingrata, a moderação permanece essencial. Sem ela, as sociedades correm o risco de cair em ciclos de radicalização, onde o debate construtivo é substituído por imposições, e onde a intolerância e o dogmatismo minam qualquer possibilidade de coexistência pacífica.
A virtude da moderação, portanto, está em manter viva a possibilidade de diálogo e em resistir às tentações fáceis de extremismo. Embora seja um caminho mais difícil e menos recompensado a curto prazo, é frequentemente a única via capaz de preservar a coesão social e garantir soluções sustentáveis para os conflitos. Como a história tem mostrado, sociedades que caem na espiral do extremismo geralmente sofrem consequências devastadoras, enquanto os esforços de moderação, por mais ingratos que sejam, oferecem uma oportunidade para preservar a convivência democrática e a dignidade humana.
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