segunda-feira, 21 de outubro de 2024

A alienação das elites ou a metáfora das moscas na malformação moral



Yahya Sinwar, líder do Hamas na Faixa de Gaza – e agora morto pelas tropas de Israel em Gaza – tem um histórico complexo que muitas vezes é ignorado ou minimizado por certos grupos que apoiam a causa palestina. Sinwar é conhecido por seu papel central em ações violentas e ataques contra Israel, mas também tem sido acusado de reprimir violentamente dissidentes palestinos e opositores políticos dentro de Gaza. Isto revela uma dificuldade em muitos discursos que romantizam a resistência palestina, ignorando a realidade de que a liderança do Hamas também impõe um regime autoritário e violento sobre os próprios palestinos. Muitos cidadãos de Gaza vivem sob um controlo rígido, com liberdade de expressão limitada, e enfrentam duras consequências se criticarem a liderança. Este aspeto é um exemplo de hipocrisia, pois essas ações são frequentemente desculpadas ou ignoradas em nome da luta contra Israel. Isso levanta a questão da integridade no apoio aos direitos humanos: se o objetivo é realmente apoiar os direitos e a dignidade de todos os povos, então também é necessário criticar e responsabilizar os líderes palestinos por abusos e violência contra os seus próprios cidadãos.



Líderes de opinião mainstream lamentam o crescimento da extrema-direita, mas esquecem-se que essa deriva também se deve ao laxismo do status quo das elites a que esses mesmos lideres de opinião pertencem. Esses líderes de opinião, que muitas vezes se posicionam contra a extrema-direita, fazem parte de uma elite que, ao longo do tempo, falhou em lidar com problemas estruturais como desigualdade económica, crise de identidade cultural, e falta de representatividade política.

 A insatisfação de grande parte da população com o establishment, as instituições políticas tradicionais, e o fracasso em resolver questões que afetam diretamente a vida das pessoas, como o desemprego e a precariedade, cria terreno fértil para movimentos populistas e de extrema-direita. Esses movimentos frequentemente capitalizam a sensação de abandono e frustração das massas, oferecendo respostas simplistas e soluções autoritárias. A ironia é que os mesmos líderes de opinião que lamentam essa ascensão, muitas vezes, não reconhecem que fazem parte de um sistema que ajudou a alimentar o descontentamento. Essa alienação das elites, tanto económicas quanto culturais, pode ser vista como uma desconexão entre aqueles que detêm o poder e as aspirações ou temores das classes populares. Muitos analistas também ignoram a crise de sentido — o vazio espiritual e cultural que permeia as sociedades modernas — o que pode estar impulsionando essa viragem à extrema-direita como uma forma de buscar identidade e propósito.

A metáfora das "moscas" na "malformação moral" presente nas ideologias políticas e nos conflitos entre países que leva a guerras, tanto faz ser o nazismo como o estalinismo, reside na disposição de subordinar o valor da vida humana e os princípios éticos a uma causa ideológica, seja ela de direita ou de esquerda. Nesse sentido, o que muda são os "rótulos" — as ideologias que justificam as ações — mas o desprezo pela dignidade humana e a propensão ao totalitarismo permanecem constantes. Ambos os regimes, em suas formas extremas, mostraram uma incapacidade de reconhecer o Outro como plenamente humano e uma disposição para usar a violência, a repressão e o terror em nome de um "bem maior" ou de um ideal utópico. Assim, os horrores do estalinismo e do nazismo compartilham a mesma base moral corrompida, embora sob bandeiras distintas: a luta de classes de um lado e a pureza racial de outro.

A metáfora também aponta para o facto de que, independentemente das mudanças de fachada ou de ideologia, o problema central é a desumanização e a instrumentalização das pessoas. Regimes extremistas, sejam comunistas, fascistas ou de qualquer outra orientação, tendem a se basear no mesmo princípio autoritário: a crença de que o fim justifica os meios, e que o poder pode ser exercido sem limites morais quando se trata de alcançar certos objetivos ideológicos. A reflexão final, portanto, é que a verdadeira batalha não é entre ideologias específicas, mas contra essa tendência humana à desumanização e à construção de sistemas que colocam a ideologia acima da ética e da vida. Trocam-se as "moscas", mas o pasto permanece o mesmo.

Um pasto mental muito em voga é o que hoje se dá pelo nome de "narrativas". Um alimento poderoso nas disputas políticas e nos conflitos contemporâneos impingido às massas amorfas para moldar a opinião pública e atrair simpatia ou apoio para diferentes causas. No caso específico do conflito no Médio Oriente, frequentemente destacam-se aspetos que podem sensibilizar a audiência global conforme simpatizamos com um lado ou com o outro. A narrativa de que "mulheres e crianças foram atingidas" é muitas vezes utilizada porque, em qualquer conflito, as vítimas civis tendem a gerar maior comoção e solidariedade. Isso não quer dizer que tais incidentes não ocorram, mas pode haver manipulação de informação para amplificar certos aspetos do conflito. A presença de operacionais do Hamas em áreas densamente povoadas e o uso de civis como escudos humanos, algo amplamente documentado, torna a linha entre combatentes e civis ainda mais turva.

Os intervenientes no mundo mediático, de que os jornalistas e os analistas ou comentadores são uma parte, e a classe política outra parte, podem, conscientemente ou não, ajudar a reforçar essas narrativas ao focar em determinadas imagens e histórias que ressoam emocionalmente. Isso gera uma percepção seletiva da realidade, onde a complexidade do conflito muitas vezes é reduzida a narrativas de "heróis" e "vilões", dependendo da perspetiva adotada. No entanto, é fundamental que a análise de qualquer conflito considere a multiplicidade de fatores envolvidos, sem cair em simplificações ou manipulações, reconhecendo que tanto a imprensa como os grupos envolvidos em conflitos armados têm interesse em influenciar a percepção pública.

A imparcialidade é uma virtude rara, quando até o "nós" e o "eles" ideológico contamina o jornalismo. A imparcialidade, que deveria ser um dos pilares do jornalismo, é muitas vezes comprometida quando o "nós" e o "eles" ideológico permeia a narrativa jornalística. Em vez de reportar os factos de maneira objetiva, muitos veículos de imprensa acabam assumindo uma postura enviesada, seja por pressão política, económica, ou por convicções ideológicas. Essa tendência é particularmente evidente em questões polarizantes, como conflitos armados, questões de justiça social ou debates políticos intensos. Quando o jornalismo se torna refém dessas divisões, ele passa a reforçar as crenças preexistentes de seus públicos, criando uma espécie de bolha informativa. Isso leva à formação de "nichos" de informação, onde as pessoas buscam notícias que confirmem suas visões de mundo, em vez de serem desafiadas por uma análise imparcial e abrangente dos factos.

O verdadeiro papel do jornalista deveria ser o de apresentar os acontecimentos com rigor e responsabilidade, permitindo que o público forme a sua própria opinião baseada em factos, não em interpretações enviesadas. A virtude da imparcialidade é rara porque requer a capacidade de separar as próprias convicções e resistir às pressões externas para moldar a narrativa de acordo com uma ideologia. Infelizmente, essa contaminação ideológica do jornalismo é também sintomática de uma era em que as fronteiras entre opinião e facto estão a tornar-se cada vez mais nebulosas, com o resultado de que o "nós contra eles" se intensifica, em vez de promover o diálogo e a compreensão mútua.




A obra de Zamyatin avisava para os riscos e os custos dos modelos utópicos de alteração e aperfeiçoamento forçado da condição humana. Nós (1920) de Ievgueni Zamyatin é uma das obras pioneiras que alertam para os perigos das utopias totalitárias e dos esforços forçados de aperfeiçoamento humano. Embora tenha sido escrita antes do surgimento pleno dos regimes totalitários do século XX, como o estalinismo e o nazismo, a obra antecipa com uma clareza inquietante as consequências de tais modelos de organização social. Zamyatin descreve uma sociedade futurista em que o Estado controla todos os aspetos da vida dos cidadãos, desde os seus pensamentos até suas emoções e relações pessoais. O indivíduo é totalmente subjugado à coletividade, e a busca pela perfeição humana é realizada por meio da repressão da liberdade, da espontaneidade e da individualidade. O protagonista, D-503, inicialmente acredita na justiça e perfeição do sistema, mas começa a questionar essa utopia mecanizada ao vivenciar emoções humanas incontroláveis, como o amor e a dúvida.

É um alerta contra a ideia de que é possível moldar a natureza humana de acordo com uma visão utópica. Qualquer tentativa de criar um mundo "perfeito" muitas vezes resulta na repressão das qualidades que nos tornam humanos — a liberdade, a individualidade, o direito ao erro, e a imperfeição. Essa busca por um ideal pode, paradoxalmente, levar à desumanização e à criação de um sistema opressor. O "aperfeiçoamento forçado" da condição humana, como visto em várias ideologias do século XX, levou a massacres e à repressão brutal em nome de uma visão de progresso ou pureza. No livro “Nós” Zamyatin destaca os custos humanos dessa tentativa de reformular a natureza humana e serve como uma crítica não só aos regimes totalitários, mas também a qualquer ideologia que proponha soluções definitivas para os dilemas humanos, à custa da liberdade individual e da diversidade. A obra de Zamyatin, ao lado de 1984 de Orwell e Admirável Mundo Novo de Huxley, é um dos grandes marcos literários que expõem os riscos inerentes à engenharia social autoritária e à supressão das complexidades humanas em nome de um suposto bem maior.

Uma posição moderada e equilibrada é sempre a melhor, mas ao mesmo tempo é muito ingrata porque é atacada pelos dois extremos, e os extremismos não olham a meios. A moderação e o equilíbrio costumam ser as posturas mais racionais e ponderadas, mas, paradoxalmente, também as mais vulneráveis em tempos de polarização. Quem ocupa uma posição moderada tende a buscar o diálogo, a compreensão mútua e a ponderação entre diferentes perspectivas, mas isso frequentemente atrai críticas dos dois extremos, que veem a moderação como fraqueza, indecisão ou até cumplicidade com o lado oposto. Os extremismos, por sua própria natureza, operam com base em certezas absolutas e dicotomias rígidas — "nós contra eles", "certo contra errado". A moderação, por outro lado, reconhece a complexidade e as nuances das questões, e tenta encontrar soluções que contemplem as diferentes partes envolvidas. Isso, porém, é algo que não agrada a quem busca respostas rápidas e simplistas, ou a quem deseja impor sua visão sem concessões.

Além disso, os extremistas costumam usar táticas agressivas, que incluem desqualificação moral, manipulação de informação e, em casos mais graves, violência física ou simbólica. Nesse contexto, o moderado enfrenta um grande desafio: enquanto tenta apelar ao diálogo e ao compromisso, os extremos não hesitam em utilizar todos os meios ao seu dispor para avançar suas causas. O resultado é que as vozes moderadas muitas vezes são sufocadas, não apenas pela agressividade dos extremos, mas também pela natureza dos debates públicos contemporâneos, que tendem a favorecer o confronto e a polarização, em vez do consenso. No entanto, apesar de ingrata, a moderação permanece essencial. Sem ela, as sociedades correm o risco de cair em ciclos de radicalização, onde o debate construtivo é substituído por imposições, e onde a intolerância e o dogmatismo minam qualquer possibilidade de coexistência pacífica.

A virtude da moderação, portanto, está em manter viva a possibilidade de diálogo e em resistir às tentações fáceis de extremismo. Embora seja um caminho mais difícil e menos recompensado a curto prazo, é frequentemente a única via capaz de preservar a coesão social e garantir soluções sustentáveis para os conflitos. Como a história tem mostrado, sociedades que caem na espiral do extremismo geralmente sofrem consequências devastadoras, enquanto os esforços de moderação, por mais ingratos que sejam, oferecem uma oportunidade para preservar a convivência democrática e a dignidade humana.

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