sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Pragmatistas e idealistas


Toda a gente sabe que as pessoas não são todas iguais quanto à habilidade e inteligência para criar e prosperar. Mas a partir daqui a sabedoria divide-se: para o lado direito vão os pragmatistas que entendem que os mais hábeis e inteligentes devem ser recompensados por isso; e para o lado esquerdo vão os idealistas que entendem que devemos ser piedosos e distribuir a riqueza igualmente por todos.

Entre as diferentes perspetivas filosóficas e económicas, os pragmatistas, que acreditam que os mais hábeis e inteligentes devem ser recompensados, argumentam que premiar o mérito e esforço incentiva a inovação, e assim a sociedade avança e ganha com isso. Para eles, a desigualdade é uma consequência natural da diversidade de talentos e esforços e, em última análise, benéfica para o progresso coletivo. Por outro lado, os idealistas defendem uma distribuição mais equitativa da riqueza, fundamentados em princípios de justiça social e compaixão. Para estes, as diferenças de habilidade ou inteligência não justificam a criação de grandes disparidades que podem levar ao sofrimento de muitos. Sua preocupação reside nas condições de vida mínimas e na dignidade humana, acreditando que uma sociedade mais justa deve garantir um nível básico de bem-estar para todos, independentemente das suas capacidades.

Ora, esta divisão taxonómica, descritiva, não é apenas teórica, mas tem ramificações práticas que moldam as políticas públicas, sistemas de impostos e o desenho da socialização. Na realidade, a maioria das sociedades procura equilibrar esses dois extremos, buscando modelos que contemplem o convívio saudável da meritocracia com as medidas redistributivas, que é a melhor forma de promover ao mesmo tempo o progresso com a justiça social.

Se nos servirmos da lente darwinista, a ideia de seleção natural e competição que favorece os mais aptos, os pragmatistas poderão ter a razão do seu lado para serem bem sucedidos. A natureza, nesse sentido, recompensa os mais capazes, os que usam a inovação como a estratégia mais adaptável à sobrevivência num mundo que é mais adverso e hostil do que facilitador e benigno. Essa lógica competitiva, de "sobrevivência do mais apto", reflete um mundo onde o mérito é recompensado e a desigualdade é uma consequência inevitável. No entanto, a natureza também é permeável à cooperação, em que a junção faz a força, uma tática em interdependência. Muitas espécies sobrevivem em ecossistemas que dependem de colaborações subtis entre diferentes organismos, simbioses cujo carácter é apenas de aparente altruísmo. Nesse contexto, os idealistas cuidam dos mais vulneráveis como efeito colateral de um aparente altruísmo. Os mais vulneráveis neste contexto acabam por beneficiar de um efeito que é mais colateral do que essencial. Neste contexto o que é essencial é a sobrevivência do grupo como um todo, e não a sobrevivência deste ou daquele particular, estando de acordo com o princípio de que a união faz a força.

Em suma: a visão dos pragmatistas reflete a competição e o mérito individual, enquanto a visão dos idealistas tira partido da interdependência e da cooperação comunitária. Na realidade, toda a vida humana, enquanto um prolongamento da natureza, está em permanente tensão entre a competição e a cooperação, e talvez a questão seja menos saber qual dessas visões está mais certa, mas saber como equilibrar ambas de forma a que se criem sociedades mais resilientes sem perder de vista a justiça social. Reconhecer o mérito daqueles que são mais hábeis e inteligentes, permitindo que eles prosperem, não é errado em si mesmo desde que não se perca a ideia de justiça. Também temos que ser justos com quem se esforçou mais, independentemente de sabermos se os frutos resultaram mais do esforço do que do talento. Ao valorizar o mérito, estamos reconhecendo a importância da responsabilidade individual, do esforço, e da contribuição que no fim do processo teve para o progresso coletivo. Essa abordagem evita a armadilha da inveja, que, além de ser corrosiva, não oferece soluções concretas para a melhoria da própria condição. Culpar o outro pela nossa mediocridade é um reflexo de ressentimento e de uma visão distorcida da responsabilidade pessoal. 

Estagnar no ressentimento não apenas nega o mérito do outro, como também nos impede de buscar o nosso próprio desenvolvimento. A inveja cria um ciclo de vitimização e imobilidade, em vez de promover o desenvolvimento pessoal e coletivo. É claro que o reconhecimento do mérito não significa desprezo pelos mais desfavorecidos. O que não devemos ter dúvidas é que atender aos dois lados desta equação cria uma sociedade mais justa e equilibrada. O que se tem de evitar é a desigualdade excessiva, que corrói o tecido social, gerando ressentimento e divisão. Portanto, a virtude também reside em não atropelar as oportunidades que estejam disponíveis para todos, sem sufocar a inovação e o talento. Em última análise, a postura virtuosa seria o equilíbrio entre a admiração e a humildade, sem cair na armadilha da inveja.

Há quem não reconheça o mérito de uma herança. Heranças criadas e preservadas para benefício de filhos que foram amados. Se eu souber que vão tirar aos filhos a herança que eu gostaria de lhes deixar, hesitarei se vale a pena dispender o meu esforço em criar riqueza. Esse é um ponto central no debate sobre justiça social. Quem entende que a riqueza que deixamos depois de morrer deve ser redistribuída por toda a gente de uma dada comunidade, argumenta que não existe nenhum mérito nos filhos para serem eles os únicos a usufruir dessa riqueza. Se, de facto, os beneficiário não trabalharam para merecê-la. Sobretudo as grandes heranças, que perpetuam desigualdades, que criam elites viciadas na sua riqueza sem contribuírem para o bem comum. O desejo de construir património, e preservá-lo para seus descendentes por amor e responsabilidade familiar, é um instinto profundamente humano, e está relacionado ao impulso de proteção e continuidade da família, algo enraizado em muitas culturas e sistemas sociais. 

A questão, então, é encontrar um equilíbrio. Por um lado, é justo que a criação de riqueza e o legado familiar sejam respeitados. Por outro, é preciso evitar que heranças megalómanas, sobretudo aquelas que foram criadas com honestidade duvidosa, criem desigualdades estruturais que possam sufocar a mobilidade social. Algumas sociedades optam por impostos sobre herança que limitam a acumulação excessiva de riqueza em poucas mãos, sem eliminar completamente o direito de transmitir bens aos descendentes. Isso busca manter o equilíbrio entre o incentivo à criação de riqueza e a justiça social. O realismo pragmático pode ser mais produtivo. 
Em vez de idealizarmos sociedades perfeitas, talvez o caminho mais virtuoso seja um trabalho contínuo que construa instituições que promovam a justiça, a liberdade e o bem-estar dentro de limites ponderáveis. Isso significa a procura de meios que mitiguem desigualdades com soluções que sejam práticas para os desafios do dia a dia. Essa abordagem poderá evitar não apenas a armadilha do idealismo utópico, mas também uma deriva de cinismo. 

A ideia de paraísos perdidos, sejam eles míticos ou utópicos, frequentemente nasce do desejo humano de escapar da dureza do mundo natural e social. No entanto, o próprio cosmos não nos oferece nenhuma garantia de segurança ou conforto; ele é, por natureza, caótico e perigoso, cheio de forças que estão além do nosso controlo. A vida na Terra, mesmo com todos os avanços da civilização, continua frágil diante das forças cósmicas e naturais. Essa percepção de um Universo agreste nos afasta das ilusões utópicas e nos convida a encarar a realidade com humildade e resiliência. Talvez a verdadeira sabedoria esteja em aceitar a imperfeição, tanto do mundo quanto de nós mesmos, e aprender a navegar essas condições com coragem e pragmatismo. Como disse Albert Camus, o "absurdo" da existência não está no facto de que a vida seja sem sentido, mas no desejo humano de encontrar sentido num cosmos que não o oferece. Assim, a fantasia de um paraíso perdido pode ser tentadora, mas a nossa existência é marcada por uma luta constante de adaptação, sobrevivência e, quando possível, florescimento nas condições que temos.

Reconhecer essa realidade, no entanto, não significa resignação. Pelo contrário, é uma chamada de atenção para que, mesmo diante de um Universo implacável, criemos significado e propósito em nossas vidas, não esperando por paraísos inalcançáveis, mas trabalhando para construir momentos de justiça, beleza e bem-estar, ainda que no meio do caos e de tempestades. Por exemplo, um grande asteroide a colidir com a Terra estaria indiferente à nossa boa vontade. Um grande asteroide, como outras forças cósmicas, é completamente indiferente à nossa existência, boa vontade ou esforços morais. Isso nos lembra o quão insignificantes somos diante das vastas forças do Universo, e que, por mais que nos esforcemos para construir civilizações, sistemas de justiça ou utopias, existem forças naturais que podem, a qualquer momento, alterar drasticamente o curso da vida no planeta. A Natureza ou o Universo não se importam com os nossos ideais. A nossa capacidade de nos adaptarmos, prevenirmos ou mitigarmos desastres é uma das formas mais poderosas de darmos significado à nossa existência em um mundo imprevisível. Não podemos mudar a indiferença cósmica, mas podemos enfrentar seus desafios com ciência, resiliência e preparação.

Sem comentários:

Enviar um comentário