sábado, 19 de outubro de 2024

As novas esquerdas


As novas esquerdas, abandonando a luta de classes clássica, foi à procura de novas vítimas e novas causas, virando o feitiço contra o feiticeiro com uma espécie de nova inquisição. Essas correntes voltaram-se para novas causas e grupos marginalizados, criando o que muitos críticos chamam de uma "política de identidades". Em vez de concentrar a luta na opressão económica e na exploração do proletariado — como no marxismo clássico —, as novas esquerdas passaram a defender os direitos de minorias raciais, de género, LGBTQ+, e outras categorias sociais.

Esse movimento, para alguns, representou um desvio da análise materialista da luta de classes em favor de uma multiplicidade de causas culturais e sociais, centradas em identidades e experiências subjetivas. Os críticos dessa abordagem argumentam que, ao fragmentar a luta em várias causas menores, as novas esquerdas perderam o foco que sempre se colocou na desigualdade económica sistémica, que atravessa todas essas questões. Além disso, o foco na política identitária tem sido acusado de criar uma "nova inquisição", onde qualquer dissidência ou crítica às premissas dessas causas pode ser vista como um ataque moral, resultando em censura e ostracismo social. Tem sido alvo da crítica de pensadores conservadores e liberais que veem o ambiente político e cultural contemporâneo como marcado por uma forma de vigilância moral e social que foi rotulada como "doutrina de cancelamento" que inverteu a lógica tradicional da opressão. O "feiticeiro" original, representado pelas classes dominantes e pelas normas tradicionais, agora enfrenta uma espécie de repressão moral por parte daqueles que promovem causas identitárias.

Essas dinâmicas levaram a uma esquerda adotando métodos dogmáticos e punitivos, fazendo lembrar as práticas inquisitórias medievais. O resultado é um campo de batalha polarizado em argumentos onde campeia a irracionalidade. O argumento da política identitária é a luta por justiça social e igualdade. É o argumento da "intersecionalidade" que dá cobertura a todo o tipo de discriminados e marginalizados. De acordo 
com essa visão, a transformação social deve abarcar não apenas a economia, mas também as estruturas culturais e sociais que sustentam diferentes formas de discriminação. Em nome dos géneros e das liberdades sexuais, surgiram novos "arautos da boa moral", que, paradoxalmente, lembram os moralistas de outras épocas, mas com um discurso invertido. Esses novos arautos emergiram no contexto das políticas de identidade e da ampliação dos direitos sexuais e de género, promovendo a aceitação da diversidade e combatendo o preconceito. No entanto, em alguns casos, essa luta por inclusão e respeito gerou um ambiente onde a imposição de certos padrões ideológicos tornou-se rígida, resultando numa nova forma de moralismo.

A nova moralidade manifesta-se principalmente na forma do discurso e no tipo de comportamento. Qualquer desvio ou crítica em relação às normas de aceitação plena das novas identidades sexuais e de género pode ser visto como moralmente repreensível. As exigências por uma linguagem correta (como o uso de pronomes ou termos inclusivos) e a expectativa de total conformidade com as novas sensibilidades de género e sexualidade criam um novo conjunto de normas sociais e culturais com caráter punitivo. 
Aqueles que não aderem ou que questionam essas novas normas podem ser rapidamente "cancelados" ou marginalizados socialmente. O que antes era uma luta pela liberdade e contra a repressão sexual parece, em algumas visões críticas, ter-se transformado numa forma de ortodoxia moral. O controlo sobre o discurso público e a punição de quem diverge ou desafia essas normas fazem lembrar o velho puritanismo de cariz religioso.

Temos, portanto, novos guardiões, desta feita, de uma ortodoxia progressista. Para muitos, essa abordagem inverte a lógica da moral tradicional. Se antes a repressão vinha das instituições religiosas ou patriarcais, agora é promovida por segmentos progressistas que, em nome da justiça social e da igualdade, impõem um novo código de conduta moral e discursivo. Se a velha moral legitimava a violência simbólica e estrutural contra grupos marginalizados, a nova moral busca ocupar esse lugar para corrigir injustiças históricas através da promoção de códigos de inclusão. A imposição de um novo tipo de linguagem, faz lembrar também uma outra atitude errada, essa à direita, de que um anterior Presidente dos EUA, George W. Bush filho, exemplificou essa ideia com a invasão do Iraque, de quem queria impor a democracia aos países do Médio Oriente. Tanto a cultura do cancelamento promovida por setores mais radicais das novas esquerdas como a tentativa de George W. Bush de impor as democracias no Médio Oriente refletem uma abordagem similar de querer moldar o mundo à imagem de suas próprias convicções, sem necessariamente respeitar a diversidade e a autonomia dos outros.

Por conseguinte, e à guisa de conclusão, a cultura do cancelamento tenta forçar uma mudança na linguagem e nas normas sociais, muitas vezes punindo severamente aqueles que discordam ou cometem erros. Da mesma forma, a política externa de Bush, ao tentar impor a democracia como um sistema universal, ignorou as complexidades culturais, históricas e sociais dos países do Médio Oriente, levando a consequências desastrosas. Em ambos os casos, há uma certa falta de humildade e uma visão reducionista do outro. O comportamento reflete a crença de que há uma única verdade ou um único caminho correto a seguir, desconsiderando que as realidades sociais e políticas são muito mais complexas e diversificadas. Essas posturas podem alienar, causar resistência e, muitas vezes, produzir resultados contrários aos objetivos originais.

Na linha do desconstrutivismo, especialmente influenciado por filósofos como Jacques Derrida, a linguagem não apenas descreve a realidade, mas, em grande parte, a cria. Essa abordagem contrasta com a visão tradicional de que a linguagem é um reflexo neutro do mundo, sugerindo que a forma como falamos, os conceitos que utilizamos e as estruturas linguísticas que empregamos moldam profundamente a nossa perceção e entendimento da realidade. Derrida, em particular, argumentou que o significado não é fixo, mas sempre em processo de desdobramento e instabilidade, uma noção central no desconstrutivismo. Ele mostrou como a linguagem é inerentemente ambígua e que as palavras só têm significado em relação a outras palavras, nunca de forma isolada. Isso desafia a ideia de que há uma correspondência direta entre as palavras e uma realidade objetiva ou fixa.

Nesse sentido, a linguagem se torna uma ferramenta de poder e controlo, pois as normas discursivas estabelecem os parâmetros daquilo que é considerado "real" ou "verdadeiro" em uma sociedade. A desconstrução, então, visa revelar essas estruturas subjacentes, demonstrando como os significados são construídos, muitas vezes de forma a servir interesses específicos ou manter certas hierarquias de poder. Esse pensamento tem profundas implicações para a política, a filosofia e a teoria social. Se a realidade é construída pela linguagem, então as estruturas de poder e opressão não estão apenas nas instituições físicas ou económicas, mas também nos próprios discursos que definem o que é normal, aceitável ou marginalizado. Isso é visível, por exemplo, em debates sobre identidade, género e raça, onde as categorias linguísticas moldam as experiências e realidades das pessoas.

Assim, para o desconstrutivismo, mudar a linguagem significa potencialmente mudar a realidade, e a luta política ou social pode envolver uma reconfiguração das categorias discursivas para desafiar as estruturas de poder estabelecidas. Esse foco no poder da linguagem também influenciou a crítica cultural contemporânea, incluindo o feminismo, os estudos pós-coloniais e as teorias queer, que utilizam a desconstrução para desvelar e questionar as construções culturais hegemónicas. Qual foi a posição de Allan Bloom nesta contenda entre os "bem-pensantes" do relativismo cultural? Bloom defendeu a ideia da educação dos Grandes Livros e tornou-se famoso por suas críticas ao ensino superior americano contemporâneo, com suas opiniões sendo expressas em seu livro best-seller de 1987, The Closing of the American Mind. [2] Caracterizado como um conservador na mídia popular, Bloom negou o rótulo, afirmando que o que ele buscava defender era a "vida teórica". Saul Bellow escreveu Ravelstein, um roman à clef baseado em Bloom, seu amigo e colega na Universidade de Chicago.

Allan Bloom acreditava que o relativismo, amplamente difundido entre os intelectuais e estudantes "bem-pensantes", havia corroído os valores fundamentais da civilização ocidental, resultando no declínio da educação liberal e no fechamento das mentes dos jovens. Bloom argumentava que o relativismo cultural, promovido em nome da tolerância e da igualdade, negava a existência de verdades universais e objetivas, especialmente em relação à moralidade, à política e à cultura. Ele via essa postura como uma rejeição da tradição filosófica do Ocidente, que se baseava na busca pela verdade e no cultivo de valores transcendentais, como os explorados por Platão, Aristóteles e os grandes pensadores do Iluminismo. Em vez disso, o relativismo, na visão de Bloom, promovia a ideia de que todas as culturas, crenças e valores eram igualmente válidos, o que, para ele, levava à passividade intelectual e ao niilismo. Um dos principais alvos de sua crítica foi a influência das teorias pós-modernas e desconstrutivistas nas academias, que, segundo ele, promoviam o abandono da ideia de verdade objetiva. Bloom via esse movimento como uma ameaça à capacidade dos indivíduos de fazer julgamentos racionais e discernir entre o bem e o mal, o verdadeiro e o falso. Ele acusava o relativismo de desmantelar os fundamentos éticos e filosóficos que sustentavam as democracias liberais e a cultura ocidental em geral.

Além disso, Bloom lamentava a erosão dos cânones clássicos da literatura e filosofia ocidental nas universidades, que, sob a influência do relativismo cultural, estavam sendo substituídos por uma ênfase excessiva na diversidade e na inclusão de perspetivas culturais e identitárias, muitas vezes em detrimento do estudo dos grandes pensadores do passado. Portanto, a posição de Allan Bloom foi de uma defesa vigorosa dos valores e da tradição ocidentais, com ênfase na educação liberal clássica e na busca por verdades universais. Ele via o relativismo cultural como uma ameaça intelectual e moral, que estava levando a sociedade ocidental a um estado de conformismo e superficialidade. Para ele, a educação deveria ser um caminho para a verdade e o desenvolvimento do caráter, não um exercício de celebração acrítica da diversidade cultural ou do pluralismo moral. Bloom era gay. Seu último livro, Amor e Amizade, foi dedicado a seu companheiro, Michael Z. Wu. Se ele morreu ou não de AIDS é um assunto de controvérsia.

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