quarta-feira, 9 de outubro de 2024

O mito do Preste João


Como é que surgiu na Europa o mito do Preste João, ainda que mais tarde se tenha tornado concreto com a sua localização na Etiópia? Preste João era uma figura lendária supostamente um rei cristão que governava uma nação cristã isolada no meio de um Oriente adverso. Tal mito começa a aparecer na Europa por volta do século XII. Esse mito tem raízes em várias tradições, rumores e necessidades políticas e religiosas que se impunham na época. Eram os viajantes que propagavam rumores de um mundo que era desconhecido para os gentios.

Viajantes e missionários, como os que retornavam da Terra Santa, durante as Cruzadas, contribuíram com histórias sobre cristãos vivendo em regiões distantes. Há uma Carta do Preste João datada de 1165, uma carta supostamente escrita pelo próprio Preste João enviada ao imperador bizantino Manuel I Comneno e ao Papa Alexandre III. Essa carta descrevia um reino vasto e fabuloso, cheio de riquezas e maravilhas, governado por um rei cristão. A carta, uma clara falsificação, teve um impacto profundo na difusão da lenda pela Europa. Durante as Cruzadas havia um forte desejo entre os europeus de encontrar aliados cristãos para combater os muçulmanos. A ideia de um poderoso reino cristão no Oriente ou na África fornecia uma esperança de apoio e reforço na luta pela Terra Santa.

Inicialmente, o reino do Preste João ficava numa vaga região do Oriente, tanto podia ser na Índia ou na Ásia Central. À medida que a geografia do mundo se tornava mais conhecida pelos europeus, a localização do reino foi-se deslocando para África. No século XIV, viajantes europeus começaram a ouvir falar num reino cristão na África, especificamente na Etiópia. Efetivamente, a Etiópia tinha uma antiga tradição cristã, e era governada por reis cristãos. Isso levou a uma associação natural entre o Preste João e o rei etíope. Vários exploradores europeus, como o português Pêro da Covilhã, viajaram para a Etiópia no final do século XV e início do século XVI. Seus relatos confirmaram a existência de um reino cristão, consolidando a Etiópia como a terra do lendário Preste João.

Preste João inspirou expedições e esforços diplomáticos, particularmente por parte dos portugueses, que estavam interessados em aliar-se a um reino cristão na África contra os muçulmanos. Chegou a ser uma obsessão do infante dom Henrique, também conhecido como o Navegador. Essa busca estava inserida num contexto mais amplo de expansão marítima contra os muçulmanos. Dom Henrique, como muitos dos seus contemporâneos, era profundamente imbuído pelo espírito de Cruzada e pela necessidade de encontrar aliados cristãos em outras partes do mundo para combater o Islão. Ora, a descoberta desse tão falado reino supostamente cristão e poderoso, poderia tornar-se um bom aliado da sua empreitada.

Contestado ou não, o Infante foi uma figura central da Epopeia dos Descobrimentos. Ele patrocinou numerosas expedições ao longo da costa africana, procurando novas rotas comerciais, terras para colonizar e, crucialmente, informações sobre o Preste João. As suas expedições ajudaram a mapear a costa ocidental da África e abriram o caminho para futuras explorações. E 1487, Pêro da Covilhã e Afonso de Paiva foram incumbidos, com o único objetivo, de encontrar o reino do Preste João. Eventualmente terão entrado na Etiópia, embora Afonso de Paiva tenha morrido durante a viagem. Pêro da Covilhã conseguiu chegar à Etiópia e confirmou a existência de um reino cristão. Em todo o caso, não regressou a Portugal. 

Embora o reino do Preste João nunca tenha sido encontrado, a verdade é que a sua procura não foi em vão, dado que as expedições contribuíram significativamente para o conhecimento da geografia africana e asiática, e para o desenvolvimento de técnicas de navegação e exploração. A obsessão de Dom Henrique pela busca do Preste João pode ser vista como parte de um esforço maior para expandir o conhecimento, o comércio e o domínio cristão. Apesar de não ter encontrado o reino exatamente como descrito na lenda, as expedições patrocinadas pelo Infante Navegador abriram novas rotas e trouxeram valiosas informações geográficas e culturais.

A existência da Etiópia cristã era, de facto, conhecida na Europa medieval, mas a associação específica com o mito do Preste João só foi feita posteriormente, durante os esforços de exploração e expansão europeus no século XV. Esta tardia conotação pode ser explicada por vários fatores. A Etiópia tinha uma longa tradição cristã que remontava ao século IV, quando o cristianismo foi adotado oficialmente pelo Reino de Axum. Os cristãos etíopes estavam em contacto esporádico com o mundo cristão europeu através de missões e peregrinações. 

No contexto das Cruzadas, os europeus estavam muito focados na Ásia Central. No século XIII, os europeus começaram a ter mais contacto com os Mongóis, liderados por Gengis Khan e seus sucessores. Alguns acreditavam que o Preste João poderia ser uma figura dentro do vasto e misterioso império mongol. Os rumores sobre os Hunos e outras tribos asiáticas também contribuíram para essa confusão. À medida que os exploradores europeus, como Marco Polo, começaram a viajar mais para o leste, ficou claro que não havia nenhum reino cristão governado por um Preste João naquelas paragens. Isso levou a uma reavaliação da localização do mito. Com o avanço das explorações portuguesas ao longo da costa africana no século XV, surgiram novas informações sobre reinos cristãos na África, particularmente a Etiópia. Este reino era cristão e possuía uma história rica e complexa que poderia ser adaptada às lendas do Preste João.

Henrique, sendo herdeiro de um país forjado na Reconquista, imprimiu impulsos para a conquista de Ceuta, pois era habitada por mouros como os outros. A longa série de campanhas militares conduzidas pelos reinos cristãos para reconquistar a Península Ibérica dos mouros era o contexto histórico que moldava as ações políticas de Portugal. Inicialmente dom Henrique, desconhecendo a geografia de África, tentou chegar à Etiópia a partir da costa ocidental através do rio que na altura se chamava Rio do Ouro. Durante as primeiras expedições portuguesas, os exploradores ouviram falar de um rio chamado "Rio do Ouro" que se acreditava ser uma via de acesso ao interior do continente africano, onde poderiam encontrar ouro e outros recursos valiosos. Este rio, localizado na região do Saara Ocidental, não levava ao reino etíope, mas as esperanças e a falta de conhecimento geográfico levaram os portugueses a explorá-lo intensivamente.

O Infante Dom Henrique, e seus contemporâneos, viam as explorações não apenas como oportunidades comerciais, mas também como missões religiosas para expandir a cristandade e combater o Islão. Em 1415, Dom Henrique participou na captura de Ceuta, uma cidade estratégica no Norte da África. Esta conquista marcou o início da expansão ultramarina portuguesa e foi motivada tanto por razões comerciais quanto religiosas. Ceuta era um importante entreposto comercial muçulmano, e sua captura foi vista como um golpe significativo contra o poder islâmico. Além de Ceuta, Dom Henrique patrocinou várias expedições contra os mouros em outras partes do Norte da África. Algumas dessas tentativas resultaram em fracassos, mas ele continuou a persistir, impulsionado pelo desejo de enfraquecer o poder muçulmano e expandir os territórios cristãos.

Nessa altura o poder económico dos muçulmanos era forte, com o monopólio do comércio caravaneiro, ouro e escravos. Durante a Idade Média e no início da Era Moderna, os muçulmanos controlavam importantes rotas comerciais e detinham um poder económico significativo. Isso se devia ao seu domínio sobre o comércio caravaneiro, que incluía bens valiosos como ouro e escravos, além de especiarias e outros produtos de luxo que seguiam pela Rota através do Saara, uma das principais rotas comerciais controladas pelos muçulmanos. Essas rotas ligavam a África Ocidental ao Norte da África e ao Mediterrâneo. Produtos como ouro, sal e escravos eram transportados por caravanas de camelos através do deserto do Saara.

O estabelecimento de rotas marítimas diretas pelos europeus minou o monopólio comercial muçulmano. Os europeus começaram a negociar diretamente com os produtores de especiarias e outros bens na Índia e no Sudeste Asiático, reduzindo a dependência das rotas comerciais controladas pelos muçulmanos. Novos centros comerciais surgiram ao longo das rotas marítimas portuguesas, como Lisboa e outros portos europeus. Isso mudou a dinâmica do comércio global, deslocando parte da riqueza e do poder económico dos muçulmanos para os europeus.

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