segunda-feira, 24 de junho de 2024

A propósito do caso das gémeas

 


Ana Gomes no seu comentário em podcast de 23 de junho junta-se aos demais comentadores indignados com o triste espetáculo que se passou a 21 de junho na Comissão Parlamentar de Inquérito com o questionaram feito A uma mãe de duas gémeas com a grave doença – distrofia muscular espinhal – que haviam sido tratadas com Zolgensma no Hospital de Santa Maria em Lisboa e que mais tarde a comunicação social veio a publicar uma reportagem em que tinha havido favorecimento por uma alegada cunha do Presidente da República por intermédio do seu filho.

Independentemente de ser indispensável o apuramento da verdade, não havia necessidade de o parlamento submeter a mãe das crianças a uma sórdida desumanidade. Que papel terá tido Marcelo Rebelo de Sousa depois do contacto feito pelo filho, não pode ficar no ar numa nuvem de suspeição. Isso é claro.



Mas os episódios desta trite novela ainda não chegaram ao fim. A Comissão Parlamentar de Inquérito também agendou o ex-primeiro-ministro António Costa para ser ouvido, para além do filho do Presidente - Nuno Rebelo de Sousa. O requerimento, apresentado pelo Chega, foi aprovado com nove votos a favor, duas abstenções e cinco votos contra. A comissão reiterou ainda a convocatória a Nuno Rebelo de Sousa, que pode optar por se deslocar ao Parlamento a 3 ou 12 de julho. Se não comparecer, o filho do Presidente da República incorre no "crime de desobediência qualificada". João Paulo Correia, deputado do Partido Socialista, considerou que esta “é uma chamada política à comissão parlamentar de inquérito”, sem “relevância mínima”. O socialista garantiu que na documentação disponibilizada “não há a mínima intervenção de António Costa” e que o único objetivo de André Ventura e do Chega “é atirar lama” para António Costa. O parlamentar votou contra a audição, afirmando que esta é mais uma das "tentativas de assassinato político" do Chega contra o ex-líder do executivo.

Como o caso já está a correr no Ministério Público, e Nuno Rebelo de Sousa é arguido no processo, O PSD apresentou um requerimento para que seja desenvolvido um parecer pelos serviços da Assembleia da República que defina com clareza até que ponto os arguidos se podem remeter ao silêncio, depois de António Lacerda Sales, antigo secretário de Estado da Saúde, ter invocado o seu estatuto de arguido para não responder às questões colocadas pelos deputados quando foi ouvido no Parlamento. Também os advogados de defesa de Nuno Rebelo de Sousa já anunciaram que o empresário estará disponível para vir à comissão, mas não vai responder a perguntas.

O Zolgensma tinha sido prescrito a uma bebé diagnosticada com atrofia muscular espinhal (AME) tipo 1, que se tornou amplamente conhecido em Portugal, em 2019, pelo “caso Matilde” devido à campanha de angariação de fundos realizada pelos seus pais para obter o Zolgensma, que na época era considerado o mais caro do mundo, custando cerca de 2 milhões de euros. O medicamento já estava a ser comercializado nos Estados Unidos para não na Europa. Antes da Matilde, que se saiba, só mais um caso havia sido tratado em França com o Zolgensma.

A situação gerou uma onda de solidariedade e discussão pública, culminando na decisão do Estado de financiar o tratamento de Matilde e outras crianças com a mesma condição. O caso da Matilde foi discutido no Parlamento português. Desde então, o Zolgensma foi administrado a 33 crianças em Portugal, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida desses pacientes.

A Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) aprovou em outubro de 2021 o financiamento público do Zolgensma, para tratamento da atrofia muscular espinhal tipo 1, uma doença que atinge cerca de uma em cada 11 mil crianças.

Matilde, aos três anos, apresentava progressos significativos. Segundo a mãe, ela está com a parte respiratória estável, já consegue ficar em pé por alguns segundos e está recebendo tratamento hormonal para ajudar no crescimento muscular e ósseo. A família espera que sua saúde continue a melhorar para que ela possa frequentar uma creche e socializar com outras crianças.

O acesso ao medicamento voltou a ser notícia na sequência de uma reportagem da TVI, transmitida na sexta-feira, segundo a qual duas gémeas luso-brasileiras vieram a Portugal em 2019 receber o Zolgensma. Totalizou no conjunto quatro milhões de euros. Esta situação levou a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) a abrir um processo de inspeção para verificar "se foram cumpridas todas as normas aplicáveis a este caso concreto", conforme avançou o Infarmed à agência Lusa. De acordo com o Infarmed, o medicamento foi administrado a 33 crianças, em tratamentos realizados no Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, Centro Hospitalar Lisboa Central, Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, Centro Hospitalar do Porto, Centro Hospitalar de São João, e Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho.

No entanto, de forma a esclarecer algumas informações relacionadas com o preço do medicamento Zolgensma, salientamos que após o processo de financiamento (negociação com o laboratório de forma a garantir as melhores condições para o SNS, permitindo o acesso a todos os cidadãos que necessitem do medicamento), o preço ficou substancialmente mais baixo do que o indicado

O pagamento é feito através de um contrato de partilha de risco assente no tipo de doente e no resultado clínico, é feito num prazo de quatro anos, e após o pagamento de uma primeira percentagem (anual) se o tratamento não apresentar as melhorias expectáveis, não existirá lugar à continuação do pagamento do medicamento por parte das unidades hospitalares.

Este "Caso Matilde" faz lembrar uma parábola muito antiga que traduzo assim: «um pequeno feito quando acontece está longe de fazer prever que pode fazer desencadear uma sucessão imparável de acontecimentos de contornos imprevisíveis e incontroláveis.»

Para se ter uma ideia, quando no início de junho de 2019 foi feito o diagnóstico à Matilde, o Zolgensma só estava a ser autorizado nos EUA. E a família tinha lançado uma plataforma de angariação. O objetivo assumido era conseguir recolher a verba necessária (quase dois milhões de euros) para que a criança tivesse acesso ao medicamento. Nas notícias dizia-se que o medicamento mais caro do mundo poderia chegar a Portugal ainda esse ano. O pedido de autorização para a comercialização deste medicamento na Europa tinha sido entregue à EMA (Agência Europeia do Medicamento) em outubro de 2018 pelo laboratório de biotecnologia Avexis, que o desenvolveu e, entretanto, foi comprado pela gigante farmacêutica Novartis. O medicamente estava ainda a ser avaliado pela agência, que não avançava datas para o desfecho desse processo.

Um outro medicamento chamado Spinraza, comercializado na Europa a partir de 2018, parecia conseguir “apenas” travar a progressão da atrofia muscular espinhal. Outras nove crianças diagnosticadas em Portugal com a forma mais grave da doença, como acontecia com Matilde, já estavam a ser tratadas com este medicamento, comparticipado a 100% pelo Estado.

Nos meses que antecederam a aprovação do medicamento pelo FDA, um denunciante informou a Novartis que certos estudos do medicamento haviam sido sujeitos à manipulação de dados. A Novartis demitiu dois executivos da AveXis que considerou responsáveis, mas informou a FDA sobre a questão da integridade dos dados apenas em junho de 2019, um mês após a aprovação do medicamento. Em outubro de 2019, a empresa admitiu não ter informado a FDA e a EMA sobre os efeitos tóxicos da formulação intravenosa observados em animais de laboratório. Devido ao problema de manipulação de dados, a EMA retirou a decisão de permitir uma avaliação acelerada do medicamento.

Em dezembro de 2019, a Novartis anunciou que doaria 100 doses de Onasemnogeno abeparvove (Zolgensma) por ano para crianças fora dos Estados Unidos por meio de um sorteio internacional. Isso foi recebido com muitas críticas pela Comissão Europeia, uma vez que alguns reguladores de saúde europeus e Associações de doentes do Reino Unido viam nisso um tipo de manipulação emocional, eticamente questionável. A Novartis não consultou familiares ou médicos antes de anunciar o programa.

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