terça-feira, 14 de julho de 2020

Excertos da gripe Espanhola, 1918-1919


O vírus da pandemia de gripe de 1918, que atingiu os humanos provavelmente a partir do porco onde havia estagiado durante alguns anos alterando a sua virulência, apanhou toda a humanidade desarmada porque não possuía anticorpos eficazes contra ele. A gripe Espanhola, como ficou conhecida, deveu-se ao facto de a Espanha não ter entrado na Guerra de 1914-18, e não ter problemas em ser a primeira a revelar a existência da doença, pois os países beligerantes tinham a imprensa censurada e, só tardiamente, deram conhecimento público da situação. E era a Espanhola em Portugal por maioria de razão porque, para além do inevitável resvalar para o sentido de humor português que dizia: " tudo o que vinha de Espanha era mau, menos as espanholas", foi de lá que os primeiros casos entraram em Portugal.  Mas de onde o vírus vinha, parecendo ser o mesmo conto de fadas de sempre, era da China. Mas na altura corria outra versão: que a epidemia teria começado em março de 1918 nos aquartelamentos do exército dos Estados Unidos, no Kansas, e levada depois para França pelo Corpo Expedicionário Americano. Atingiu rapidamente todos os exércitos no grande campo de batalha que era a França, calculando-se que 80% das baixas americanas foram provocados pela segunda onda da Gripe, e em maio já percorria o sul da Europa, da Grécia até Portugal. Em junho já se tinha espalhado por toda a Europa.

A pandemia desenrolou-se por três ondas consecutivas: a primeira vaga, de março a agosto de 1918, foi a mais benigna; a segunda vaga instalou-se logo a seguir, em setembro de 1918, e prolongou-se até janeiro de 1919. De extrema gravidade e alta letalidade, foi a pior onda, que afectou praticamente toda a população; e a terceira vaga decorreu de fevereiro a maio de 1919 , com consequências mais benignas. 

A Comissão Sanitária dos Países Aliados relata que o que se estava a passar no sul da Europa, era o mesmo que se estava a passar no norte da Europa. Os jovens soldados foram maciçamente atingidos. E quando chegou às cidades, eram as mortes súbitas, os colapsos e a Síndroma de Dificuldade Respiratória Aguda, que apareciam em grande número. As populações entraram em pânico, pois a gripe não estava habitualmente ligada a patologia tão severa. Mas o diagnóstico continuava claro para as autoridades sanitárias. 

Em Portugal, nos meses de feiras e romarias, vindimas e outras colheitas agrícolas, muitas pessoas nessa altura do ano, particularmente os trabalhadores sazonais, deslocavam-se de umas regiões, inclusivamente entre Espanha e Portugal. Assim, a epidemia propagou-se num fósforo. Os estratos sociais mais elevados, com os seus hábitos de ir a Termas no mês de setembro, também não foram poupados, ao ponto de se dizer que a epidemia estava a gozar com os médicos. E os estratos sociais mais desfavorecidos à volta do Porto esboçavam movimentos de revolta. A segunda onda trazia uma particularidade, ao contrário do habitual, os casos mais graves e mortais eram jovens. Este pormenor está pouco estudado. Possivelmente, os mais velhos teriam alguma memória imunitária de contactos anteriores com outros vírus da gripe. 

Em 7 de outubro de 1918 é nomeado Azevedo Neves para Comissário Contra a Gripe, que renuncia no dia seguinte, sendo substituído por Ricardo Jorge, cuja primeira medida foi proibir as visitas aos hospitais, e anular a abertura das aulas no dia 7 de outubro. Curiosamente as salas de espectáculos continuaram a funcionar. Apesar de Ricardo Jorge e outros chamarem a atenção da gravidade da doença, uma Revista Médica em outrubro de 1918 dizia o seguinte: “Pelas informações recebidas, sabemos que no geral a doença não se reveste de gravidade maior...” Mas no início de outubro de 1918 a Direcção Geral da Saúde havia imposto seis medidas preventivas, apesar de o resultado te sido quase nulo. Era: obrigatoriedade dos médicos informarem a DGS de todos os casos conhecidos; controlo das migrações; criação de hospitais improvisados (o Liceu Camões, e um Convento em Lisboa); abastecimento das farmácias com quinino, cafeína e óleo canforado; organização dos concelhos por áreas médico-farmacêuticas; mobilização dos médicos, mesmo os reformados, (note-se que um contingente apreciável de médicos fazia parte do Corpo Expedicionário Português em França); apelos à população para a formação de “comissões de socorro”.

Como em todas as situações limite, o excesso de zelo levou a adopção de medidas caras e inúteis, tais como a lavagem das ruas com cal e o retirar da circulação das notas de tostão por se pensar serem um meio de mais fácil contágio. Na verdade, principalmente em Lisboa, a higiene pública era muito deficiente. Os protestos na imprensa era diários, denunciando o lixo nos pátios e nas escadas dos prédios,e a proliferação de estrumeiras e de pântanos. E o jornal A Capital denunciava que a principal epidemia se chamava miséria. Ma
s na realidade, nem mesmo os mais ricos escapavam. Na fase mais aguda o que vigorava era o caos. 

Os médicos da época não sabiam como tratar adequadamente a doença, primeiro, por ela ser nova, e segundo, porque a medicina até então não tinha conhecimento suficiente para tal doença. Uma série de medicamentos começaram a ser administrados nos pacientes como tentativa de combatê-la, mas mostraram-se ineficazes. As medidas recomendadas aos doentes para além do repouso na cama e dieta ligeira, eram a toma de aspirina, quinino, salicilato de sódio, um purgante salino de sulfato de sódio, xarope de benzoato de sódio e acetato de amónio para a tosse. Eram aconselhados cuidados higiénicos do nariz e da garganta, que levou muitas vezes a excessos com o aparecimento de lesões rinofaríngeas. 

Os tratamentos dedicaram-se, dessa forma, a aliviar o sofrimento dos pacientes, e, assim, o papel das enfermeiras foi essencial, pois elas mantinham os cuidados diários com aqueles que adoeciam. No entanto, como mencionado, o colapso dos sistemas de saúde ocorreu em diferentes locais onde a doença chegou, e nem todos tiveram acesso ao tratamento devido. Isso levou ao estado de Emergência, com a improvisação de hospitais e de leitos para atender as pessoas que adoeciam. Outro ponto é que os pacientes mais graves e que desenvolviam infecções sofriam consideravelmente, pois, naquela época, não existiam antibióticos para realizar o tratamento deles. 

A morte foi banalizada. Os cadáveres amontoavam-se nas morgues, e a pestilência no ar era grande. Os funcionários dos cemitérios, sem mãos a medir, são acusados de falta de dignidade durante as suas funções, que consistiam também em transportar para valas comuns numerosos corpos embrulhados em sacos de serapilheira. Corriam boatos de pessoas enterradas vivas. Em fins de outubro a imprensa, particularmente A Capital, ataca a Direcção Geral da Saúde, perguntando pelas “brigadas médicas”, pela “estratégia de ataque”, pela “disponibilização de automóveis” e “consciencialização das populações”. Ricardo Jorge responde, alegando a imprevisibilidade das dimensões do surto, bem como o desconhecimento total acerca da profilaxia da gripe. Nos jornais fazia-se publicidade a produtos milagrosos (vacinas, cigarrilhas medicinais ultra-elegantes. Os Armazéns do Grandela promoviam produtos mais necessários para a higiene , e 10% de desconto no vestuário de luto para as famílias. A Casa Áurea propagandeava que a melhor medida para evitar a gripe eram os casacos de lã que a Casa vendia. 

Em todo o mundo civilizado passara-se o mesmo que se passou em Portugal: ataques da imprensa às autoridades sanitárias; resposta destas com a ignorância e a impotência. Os relatos parecem cópias uns dos outros. Sabe-se pouco do que se passou na China e na Índia, onde parece que morreram mais de 20 milhões de pessoas. Nos Estados Unidos são referidos 500.000 mortos. O Comando do Corpo Expedicionário Americano em França tinha pedido reforços, e o governo americano dá resposta, convocando milhares de jovens de todo o país. Mas para serem inspeccionados, correm de uns lugares para outros, o que em plena segunda onda se torna trágico, milhares de infeções e muitos mortos. Como se sabe, os jovens eram particularmente vulneráveis.Como se identificou que a doença era contagiosa, muitos locais adotaram medidas de isolamento social. Assim, foram decretados o fechamento de escolas, igrejas, comércio e repartições públicas em diferentes locais. Em alguns deles, como nos Estados Unidos, adotou-se o uso de máscaras para reduzir-se o contágio. Muitos locais incentivaram a população a entrar em quarentena. A quarentena em alguns lugares, como na Austrália, teve grande sucesso, uma vez que o país foi atingido pela primeira onda da gripe, mas não foi afetado pela segunda. Mas o mesmo combate não existiu em muitos locais de África e da Ásia. Em grande parte ainda colonizados pelos europeus, fez com que milhões de pessoas morressem sem dar nas vistas. Entre 18 a 20 milhões de pessoas morreram só na Índia. A maioria pertencia às castas mais baixas. Outra questão que ficou sem resposta foi por que terá sido mais mortal em jovens entre os 20 e 30 anos.

Calcula-se que morreram cerca de 50 milhões de pessoas com a epidemia de 1918. Portugal, com uma pequena população de 5.500.000, que desde os fins do século XIX até 1910 tinha visto a sua população aumentar a um ritmo razoável, a partir desse ano viu o seu crescimento diminuir, devido não só ao número elevado de portugueses que emigraram, mas também a mais mortes por via de outras epidemias como de tifo, febre tifóide, varíola, para além das mortes da Gripe Espanhola com se sabe. Vítimas da Gripe Espanhola na sociedade portuguesa, são conhecidas algumas personalidades como: os pintores Amadeu de Sousa Cardoso e Guilherme Santa Rita; o maestro David de Sousa, o músico António Fragoso e o vidente de Fátima, Francisco. Lá fora também foram ceifados muitos jovens esperançosos  em todos os ramos do saber, que dado serem muitos aqui fica ao menos um, Apolinaire, o poeta francês mais famoso na época em que morreu. Gravemente ferido em combate, acabou por morrer vitimado pela gripe. 

O Presidente da República, Sidónio Pais, odiado por alguns, e idolatrado por outros, visitava os hospitais e os orfanatos deixando esmolas. Entretanto o país vivia o desfecho da guerra, a crise económica e as movimentações operárias. A situação difícil no Parlamento (cenas de pugilato no hemiciclo), culminam com o assassinato do Presidente a 14 de Dezembro de 1918. Pela leitura da imprensa fica a ideia de que a nação se preocupava mais com os acontecimentos descritos do que com um mero vírus que em poucos meses tinha ceifado “só” cerca de cem mil portugueses... 

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