quinta-feira, 2 de julho de 2020

O filósofo Giorgio Agamben deve estar louco



Entre 26 de fevereiro e 13 de abril de 2020, Giorgio Agamben escreveu uma série de artigos a refletir sobre a escalada da covid-19 na Itália, desde os primeiros casos até ao pico da doença no país. O filósofo faz comparações entre as medidas de emergência motivadas pela pandemia, especialmente o distanciamento social, e as formas totalitárias de governo, criticando "a crescente tendência de usar o estado de exceção como paradigma normal de governo". No centro das preocupações de Agamben está o sacrifício da liberdade pelas assim chamadas 'razões de segurança' que condena a sociedade a viver num perene estado de medo e de insegurança. Giorgio Agamben, nas suas reflexões sobre esta grande crise, nem mesmo os milhares de mortos, ou o colapso dos sistemas de saúde em diversos países do mundo, o demovem de dizer que as medidas de contenção, como o distanciamento social, são um disparate. 


Giorgio Agamben, filósofo italiano, tem sido considerado pela intelectualidade bem-pensante como um dos principais intelectuais da sua geração. Deu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas. Mas, como protesto contra a política do governo americano, recusou-se a voltar à New York University nos Estados Unidos. Afastou-se da carreira docente no fim de 2009. A sua obra, influenciada por Walter Benjamin, Michel Foucault e Hannah Arendt, incide sobretudo nas relações entre filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. 

Apesar de ser conhecido como um pensador fora da caixa, não deixou de espantar os seus seguidores pela incómoda opinião acerca das medidas de salvaguarda sanitária tomadas pela maioria dos países de todo o mundo, obviamente a coberto do melhor estado da arte que a comunidade científica conseguiu atingir até ao momento. Ele está mais preocupado com a sua própria teoria filosófica do que com o mundo em que vive, sobretudo a Itália que foi muito atacada por esta pandemia desde o início. Portanto, para além de se estar a borrifar para a verdade dos factos transmitida pelos cientistas, demonstra uma obscena falta de sensibilidade em relação às pessoas que já sofreram direta ou indiretamente por causa da infeção provocada por este coronavirus SARS-CoV-2. 

Em nenhum momento considerando a covid-19 como um problema de saúde pública, a pandemia teria sido inventada para restringir liberdades e manter o estado de exceção como paradigma normal de governo. Embora os textos do filósofo italiano estejam a chocar muita gente, deve-se reconhecer que a sua posição sobre a crise do coronavírus é coerente com a sua obra, especialmente com o esquema para explicar a afinidade entre o 'biopoder e o estado de exceção' na modernidade. Dá a sensação de que a tese já estava pronta, apenas estava à espera da melhor oportunidade. Portanto, é o aproveitamento de um oportunista intelectualmente desonesto. As suas reflexões não estão à altura do que a crise pandémica exige. E isso destapa as limitações da sua própria filosofia, construída a partir do binómio: de um lado a máquina governamental que domina, controlando e restringindo as liberdades; e do outro a sociedade invariavelmente passiva. Esta seria a oportunidade, não para ser um oportunista, mas para admitir que a sua filosofia não presta, e reconciliar-se com a sua própria humanidade. 


Não foram poucas as críticas que Agamben recebeu nos dias que se seguiram à publicação de L’invenzione di un’epidemia, 26 febbraio 2020 (A invenção de uma epidemia), acusando-o de irresponsável no tratamento do tema do distanciamento social, e as redes sociais não o poupam a palavras como: lunático; obscurantista; delirante. Quem esperava que Agamben revisse a sua posição em função do aumento veloz dos casos de contágio e morte, bem como diante do colapso do sistema de saúde italiano, frustrou-se. Nos artigos seguintes, ele não apenas não revê a tese da “invenção” como passa a criticar duramente a sociedade italiana pela docilidade com a qual aceita as restrições de liberdades impostas pelo distanciamento social. Em perfeita harmonia com a sua crítica do biopoder, Agamben indica que a raiz mais profunda dessa degeneração das relações humanas, promovida pela ideia do contágio, já vinha de trás fazendo o seu caminho. Tem sido essa a sua tese há bastante tempo: a biopolítica consiste na redução da vida à dimensão biológica, o que implica a perda das suas dimensões política, social, humana e afetiva. Ainda que sem nos darmos conta, seria isso que nos faria sacrificar a liberdade, em nome da segurança e da sobrevivência. A paixão do medo é o ingrediente imprescindível dessa receita, de modo que a biopolítica nos condena a viver em estado perene de emergência e pânico. Ontem era o terrorismo, hoje é o vírus, amanhã o que será? Se os italianos estão “dispostos a sacrificar praticamente tudo” – trabalho, amizade, afeto, convicções políticas e religiosas – é porque “não têm outro valor que não seja a sobrevivência”. Chamando“vida nua”, à vida biológica, valor supremo a justificar todo o estado de exceção, encontra aqui as condições adequadas para a sua perpetuação. Agamben também culpa a ciência, um dos dispositivos na receita do biopoder que se tornou a “religião do nosso tempo”. Alerta que a ciência também pode produzir superstição e medo. Quando isso acontece, temos as condições mais do que favoráveis para a aceitação da suspensão das condições normais de vida, pois o medo cultivado pela ciência é extremamente persuasivo. 

Indignados, os críticos reconhecem, no entanto, que as reflexões de Agamben sobre a pandemia são inegavelmente coerentes com a sua filosofia política, muito cara a uma certa esquerda, porque agora não se reconhece diferença entre o que ele diz e o que dizem Trump e Bolsonaro em relação à pandemia. Agamben, parecendo um neoliberal, não diz uma palavra sequer sobre o papel necessário do Estado no manejo de um problema que, sendo em primeira mão um problema de saúde pública, se transforma rapidamente num grave problema social por via do colapso da economia, em que mais uma vez, são os mais pobres os primeiros a serem afetados. E as desigualdades já existentes, e escandalosas, serão ainda mais aprofundadas se não conseguirmos a coragem para as travar.


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