segunda-feira, 13 de julho de 2020

Oliver Sacks e a Encefalite Letárgica



Oliver Sacks dedica praticamente todo o seu livro "Awakenings" - Despertares em edição portuguesa, de 1992) e várias edições que se foram actualizando desde 1973 - aos extraordinários doentes, vítimas da Encefalite Letárgica (conhecida também por "doença do sono"), enclausurados, em todos os sentidos, em instituições de saúde desde o início de uma epidemia desta doença que ocorreu durante a Primeira Guerra Mundial, e se prolongou depois durante mais alguns anos cujo diagnóstico levou ainda algum tempo a ser compreendido pela comunidade médica internacional da época.

Von Economo, que ao descrever pela primeira vez estes doentes com Encefalite Letárgica lhes chamou vulcões extintos, e que já falamos dele no post anterior, estaria longe de pensar o que passaria a acontecer depois de 1969, quando, por um feliz encontro com Oliver Sacks, esses vulcões extintos entraram de novo em erupção para reviverem. O
itenta ou mais pacientes que há muito tempo eram considerados mortos, não só por quem os via do exterior, mas se calhar também por eles, voltaram ao mundo.

Existiam ainda, em fins dos anos 60, vários milhares espalhados em grandes grupos por instituições do mundo inteiro. Não havia um só país que não tivesse o seu grupo de pós-encefalíticos
Awakenings é o único relato existente a respeito desses pacientes que viveram décadas no seu sono letárgico, e do seu dramático “despertar” a partir de 1969. É, de facto, um caso singular, um neurologista assistir, à moda dos médicos antigos, ao dia-a-dia destes doentes a serem cuidados pelas profissionais da instituição onde esses doentes se encontravam, e por um golpe de magia, ver à frente dos seus próprios olhos o panorama de um verdadeiro acto de ressurreição. 

Ao início, em 1966, o que estava na mente de Oliver Sacks era como entrar naquelas profundezas e perceber os detalhes dos distúrbios que esses doentes tinham no seu cérebro. Para além de estar no início da sua carreira de neurologista, não havia nenhuma ciência de experiência feita acerca daqueles doentes. Ele nem sequer imaginara ser possível a existência de pacientes como aqueles. E a existirem, como ainda ninguém havia falado deles na esfera da ciência médica. Deveria haver pouco médicos que tenham tido a paciência de ouvir e observar, e de discernir as dificuldades desses pacientes cada vez mais inacessíveis. 

Em finais dos anos 50 tinha sido descoberto que o cérebro do doente parkinsónico tinha carência do transmissor dopamina e que, portanto, poderia ser “normalizado” se o nível de dopamina pudesse ser aumentado. Mas as tentativas nesse sentido, administrando levodopa (precursora da dopamina) em quantidades medidas em miligramas, haviam sido persistentemente infrutíferas. Um dia George Cotzias, com imensa audácia, administrou levodopa a um grupo de pacientes em doses mil vezes maiores que as usadas até então. Cotzias publicou os resultados em 1967. E uma súbita e inacreditável esperança surgiu: a de que pacientes que até então só tinham como perspectiva uma incapacidade crescente e mortificante podiam ser (se não curados) transformados pela nova droga.

Oliver Sackes lera a meia dúzia de relatórios sobre a levodopa publicados em 1967 e 1968, mas achava que os seus pacientes eram muito diferentes. Eles não tinham a doença de Parkinson comum (como os outros pacientes estudados), mas um distúrbio pós-encefalítico de complexidade, gravidade e estranheza muito maiores. Como reagiriam estes pacientes, com uma doença tão diferente? Sacks tinha de arriscar.
A levodopa era na época considerada uma droga experimental, e ele precisava obter da Food and Drug Administration uma licença especial de pesquisador para usá-la. Uma condição para a concessão da licença era que se empregassem métodos “ortodoxos”, o conhecido randomizado duplamente cego com placebo, aliado à apresentação de resultados em forma quantitativa.

Assim, Sacks testou a levodopa nas suas pacientes, e no verão de 1970, em carta ao Journal of the American Medical Association (JAMA), relatou os resultados, descrevendo os efeitos totais da levodopa em sessenta pacientes tratados com a levodopa durante um ano. Todos eles haviam de início conseguido bons resultados; mas todos eles, mais cedo ou mais tarde, tinham escapado ao controlo, entrando em estados complexos, por vezes bizarros e imprevisíveis. Mas afirmava que não podiam ser considerados “efeitos colaterais”, mas sim, que deviam ser vistos como parte integrante de um todo em evolução. Era necessária uma compreensão mais profunda e radical.

A carta ao JAMA causou furor entre alguns colegas. Mas outros asseveravam que tais efeitos “nunca” haviam ocorrido; outros, que mesmo se houvessem ocorrido o assunto deveria ter sido mantido em sigilo, para não perturbar “o clima de otimismo terapêutico necessário à eficiência máxima da levodopa”. Pensou-se até mesmo, absurdamente, que Sacks fosse “contra” a levodopa. Só que ele não era contra a levodopa, mas contra o reducionismo científico que então começava a lavrar nas hostes mais ortodoxas, e ele considerava-se, nesse caso, um heterodoxo. Convidou os colegas mais recalcitrantes a irem ver pessoalmente a realidade do que ele informara; nenhum deles aceitou. Tentou publicar os artigos nas revistas médicas, mas não foram aceites, porque colidiam demais com a epistemologia médica estabelecida. Ele sabia que tinha algo valioso para dizer. Mas não via como fazê-lo. 

Esse impasse foi rompido em setembro de 1972, quando o editor do The Listener convidou-o a escrever um artigo sobre as experiências. E o trabalho foi publicado no mês seguinte. Nele, sentindo-se livre das restrições que o jargão médico ortodoxo lhe impunha, deu asas à sua veia literária, publicou um  fascinante relato de fenómenos que ele observara em suas pacientes. O artigo no The Listener desta vez gerou uma onda de grande interesse, em contraste com o que tinha acontecido com o artigo do JAMA dois anos antes. Um grande número de cartas e correspondência favorável prolongou-se por várias semanas. Essa reação pôs fim aos seus longos anos de frustração e obstrução, o que lhe forneceu o encorajamento e a aprovação que foram decisivos para o resto da história dos doentes pós-encefalíticos e da levodopa. As reações imprevisíveis à levodopa, as suas repentinas flutuações e oscilações, a extraordinária sensibilidade à levodopa estavam agora, cada vez mais, a ser testemunhadas por todos. Os pacientes pós-encefalíticos, como ficou claro, podiam apresentar essas reações bizarras depois de algumas semanas, às vezes dias. o que era diferente para os pacientes parkinsónicos “comuns”, de sistema nervoso mais estável. Contudo, mais cedo ou mais tarde todos os pacientes tratados com levodopa começaram a apresentar esses estados estranhos e instáveis. E, com a aprovação da levodopa pela FDA em 1970, o número desses pacientes acabou em milhões. Todos então constataram a mesma coisa: a promessa principal da levodopa foi confirmada, um milhão de vezes. Mas também se confirmou a principal ameaça, a certeza dos “efeitos colaterais” mais cedo ou mais tarde.

«Podemos nunca ter visto alguém como Rose R., mas depois de ler sobre ela passamos a ver o mundo de forma diferente; podemos imaginar o mundo dela com uma espécie de assombro reverente, e com isso o nosso próprio mundo subitamente se amplia. Hesitei muito quanto à publicação original da “história” dos nossos pacientes e de suas vidas. Mas eles próprios me incentivaram, dizendo-me desde o início: “Conte a nossa história, ou ela nunca será conhecida”. Na década de 1970, Concetta M. Tomaino tinha acabado de começar a sua carreira em musicoterapia, que na época era uma área de pesquisa nova.» Oliver Sacks
«Oliver Sacks escreveu-me um bilhete que dizia: "Toda a doença é um problema musical, toda a cura, uma solução musical". Despertou a minha curiosidade e perguntei quem ele era. As pessoas diziam: "É um louco britânico excêntrico que escreve os atestados médicos mais surpreendentes; você precisa conhecê-lo." Os pacientes pareciam que estavam em estado semivegetativo, mas quando havia música por perto, via-se que eles estavam mentalmente presentes: eles conseguiam tocar tambor com ritmo e cantar, mesmo não sendo capazes de falar. Os efeitos da levodopa foram, em alguns casos, imediatos e dramáticos.» Concetta Tomaino
«Lola havia passado décadas em estado catatónico e seu despertar ocorreu em segundos. Ela saltou da cadeira e começou a falar. Foi uma cena incrível, e eu duvidaria da minha própria memória, se não fosse respaldada por todas as outras pessoas que também se lembram. Parecia um milagre. Os pacientes podiam conversar, caminhar e sentir alegria novamente. O clima no pavilhão do hospital era de carnaval, era de festa. Era um sentimento de euforia: as pessoas se apaixonavam, queriam sair e fazer coisas, explorar o mundo. Havia realmente um sentimento de magia e milagre... e provavelmente uma expectativa um tanto alarmante. Muitos haviam contraído a doença do sono na infância e despertaram como adultos de meia-idade num mundo completamente diferente. Quando conseguiram entender quanto tempo havia passado, ficaram com medo e estupefactos. Alguns ficaram amargurados por terem perdido tanto tempo, mas a maioria queria viver cada segundo que tinha.» Oliver Sacks
 


Às vezes, isso era um desafio para a equipe do hospital", completou rindo. Sacks, por sua vez, se sentia muito responsável por eles e, às vezes, se perguntava se havia feito a coisa certa, porque quem eram eles agora que estavam acordados? Concetta Tomaino
A euforia durou pouco. A levodopa começou a perder efeito. E, depois de algumas semanas, em alguns casos, a medicação parou de funcionar, o que levou à recaída. Alguns mantiveram mais funções que outros, mas nenhum recuperou completamente de novo. Durante aquele breve período de Despertar, Sacks encorajou os pacientes a descrever como tinha sido viver imóvel num limbo; os relatos foram valiosos para se entender mais tarde muitas condições neurológicas. Concetta M. Tomaino foi uma das pessoas que leram os diários escritos pelos pacientes. Eles descreveram como os cuidados eram horríveis quando estavam incapacitados, e isso ajudou a mudar a maneira como os tratavam. Mas a música permaneceu como sendo uma das soluções. Lola, que adorava cantar e dançar,  quando regrediu não tinha controle da língua ou das mãos. No entanto, quando tocava tambor, conseguia acompanhar o ritmo com a voz. Ela fazia isso tão bem que acabava sempre por desatar a rir à gargalhada. Lilian era um pouco mais autista e gostava do aspecto mais intelectual da música. Ela amava Rachmaninoff e, quando escutava, movia os dedos como se estivesse a tocar piano. O que Tomaino e Oliver Sacks estavam a descobrir através das suas experiências era inovador, mas naquela época alguns cientistas eram muito céticos quanto a isso, e comentavam o caso com apreensão. Na década de 1980, os neurologistas não acreditavam que alguém pudesse recuperar de uma lesão cerebral. Mas a verdade é que os factos podiam ser observados por qualquer um.

Pesquisas subsequentes mostraram que a musicoterapia podia melhorar e até ajudar a reparar lesões cerebrais. Essa é a beleza e o fascínio da música: permite que algumas áreas onde ocorreu uma lesão retornem as suas funções. Tom, ritmo, padrões complexos de sons que ocorrem simultaneamente activam muitas das redes cerebrais que estavam paradas por via da partilha com outras formas de funções cognitivas.

Cinco anos mais tarde aconteceu que um dos neurologistas que tanto criticara carta de Sacks ao JAMA, dizendo que as observações de Sacks estavam para lá da realidade, acabou por presidir a um evento no qual o documentário filmado sobre "Despertares" foi exibido. Havia um determinado trecho do filme em que vários “efeitos colaterais” bizarros e instabilidades de reação à droga eram mostrados em sucessão estonteante, e Sacks, confessou mais tarde, o gozo que lhe deu ver a cara desse colega ao ver as imagens a passar. Primeiro, ficou boquiaberto, com reacção de espanto, quase infantil, ao ver pela primeira vez uma coisa que nunca imaginou vir a acontecer. Mas a seguir o seu rosto foi tomado por um rubor escuro e raivoso. Se era de embaraço ou mortificação, Sacks não saberia dizer. Estava a ver exatamente aquelas coisas que ele tinha ridicularizado, mas agora era obrigado a ver mesmo que não quisesse. Coisas que ele recusou ver na altura em que Sacks lhe havia feito o convite. Depois ele desenvolveu um curioso tique, um movimento convulsivo da cabeça, não parando de virá-la para longe da tela que já não suportava olhar. E então, finalmente, com muita brusquidão e violência, resmungando com os seus botões, levantou-se num rompante no meio do filme e saiu a correr da sala. Comportamento extraordinário e instrutivo, a mostrar o quão profundas, quão absolutamente esmagadoras podiam ser as reacções ao “inacreditável” e “intolerável”.

Ele retomou o assunto no mês seguinte, dizendo que ficara fascinado com o caso de Martha N. e com o facto de ela ter reagido à levodopa de seis modos diferentes. “Por que foi diferente em cada uma das vezes?”, perguntou ele. “Por que não é possível fazer as coisas se repetirem várias vezes?”. Indagações para as quais Sacks não tinha resposta em 1973. Sacks só se lembrava de Alexander Luria (#), o génio que tanto admirava, e que ficaria fascinado com o caráter 
variado, irreproduzível e imprevisível das reações dos pacientes. Ao passo que os seus colegas neurologistas, de um modo geral, haviam sentido temor e desânimo com o facto de esses pacientes terem a "ousadia" de violarem as suas bases epistemológicas que tanto lhes havia custado consolidar.

(#) Alexander Romanovich Luria (Russian: Алекса́ндр Рома́нович Лу́рия, IPA: [ˈlurʲɪjə]; 16 July 1902 – 14 August 1977) was a Russian neuropsychologist, often credited as a father of modern neuropsychological assessment. He developed an extensive and original battery of neuropsychological tests during his clinical work with brain-injured victims of World War II, which are still used in various forms. He made an in-depth analysis of the functioning of various brain regions and integrative processes of the brain in general. Luria's magnum opus, Higher Cortical Functions in Man (1962), is a much-used psychological textbook which has been translated into many languages and which he supplemented with The Working Brain in 1973. Wikipedia

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