domingo, 12 de julho de 2020

Encefalite Letárgica – também conhecida como a ‘intrigante doença do sono’


Um pouco antes do final da Primeira Guerra Mundial, começou a aparecer uma estranha e até então desconhecida doença. Os soldados na guerra foram as primeiras vítimas a ter os sintomas, que consistiam de um estado de letargia, sono e confusão profundos. Os soldados foram examinados por médicos em Paris, aos quais, de início, lhes foi diagnosticada uma reação ao gás de mostarda, muito usado durante a guerra. Eram os “gaseados”, como se dizia na altura. Foi só quando começaram a aparecer também casos em civis que a nova doença despertou a atenção dos médicos. O que estava a acontecer com os soldados não era devido à exposição dos gases. A misteriosa epidemia espalhou-se pelo mundo até por volta de 1927. A origem era um mistério, mas sabia-se que era uma doença que atacava o cérebro, deixando as vítimas sem fala e sem movimentos voluntários.

Em 11 de novembro de 1918, o armistício entre a Alemanha e os Aliados encerrava o grande conflito após quatro anos de matança - A Primeira Grande Guerra Mundial. Mas o sofrimento da população não iria ficar por aí, porque desde o início desse ano já decorria a pandemia de gripe que veio a ser conhecida como a Gripe Espanhola. E as pessoas começavam a morrer em massa, o que foi um factor naturalmente compreensível para que os casos de Encefalite Letárgica, essa nova tão estranha doença que punha as pessoas como que congeladas, tenha passado despercebida, ou passada para segundo plano. 
De repente, o final da Primeira Guerra Mundial era ocupado com mais uma catástrofe, neste caso, de saúde pública. Os médicos que cuidavam dos pacientes vitimados pela gripe não faziam ideia de que muitos deles também estavam, na verdade, a dormir para sempre por conta da encefalite.


Foi o austríaco Constantin von Economo, que começou a estudar as variações de apresentação da doença: a) movimentos rápidos, espasmos, picos de ansiedade, inquietação; b) forma acinética, semelhante ao Parkinson; c) a forma sonolenta oftalmoplégica, caracterizada pelo facto de o paciente adormecer normalmente sem contar, antes de entrar num estado letárgico e não acordar mais. Era a forma mortal e, aparentemente, irreversível. Os que não morriam ficavam paralisados como estátuas, presos em seus corpos, alguns com os olhos arregalados e outros apenas dormindo, mas bem acordados por dentro. Sem motivo aparente, as mulheres costumavam a ser mais propensas à doença. A neurologia estava a dar os primeiros passos como disciplina científica. 

«... desde o Natal, tivemos a oportunidade de observar uma série de casos na clínica psiquiátrica, que não atendem aos critérios de nossos diagnósticos habituais. Apesar disso, mostram semelhança na sintomatologia, na forma como começou, o que nos obriga a agrupá-los numa única entidade clínica.» Informava Constantin von Economo
«Na Suíça, uma noiva adormeceu no altar; na França, nem as dores do parto despertaram uma mãe.» Informava a BBC, em seus primeiros anos de transmissão.

O conjunto daqueles sintomas já havia sido descrito várias vezes no passado, inclusive por Hipócrates, o grande médico da Grécia Antiga, que batizou o fenómeno de lethargus: febre, tremor, forte fraqueza física com a preservação da inteligência, que afeta indivíduos com mais de 25 anos, sobretudo quando está frio, e que pode levar à morte por pneumonia terminal. 

Constantin von Economo, descreveu em detalhe os sintomas, patologia e histologia da Encefalite Letárgica. O dano cerebral provocado pela doença era semelhante ao da doença de Parkinson; inflamação do córtex e dos núcleos da base. Pesquisadores britânicos concluíram, com uma amostra de 20 casos recentes, que todos foram precedidos de uma infeção da orofaringe de origem bacteriana – um diplococo. Teoriza-se que a Encefalite Letárgica tenha origem numa reação auto-imune, que consiste numa reação inflamatória exagerada à infeção na orofaringe. A hipótese de que a encefalite  poderia estar relacionada com o vírus da gripe comum (influenza) não foi confirmada por estudos genéticos.

Muito embora a doença afetasse pessoas de todas as idades, os jovens e principalmente as mulheres entre 15 e 35 anos de idade compunham o grupo de risco. Assim que afetados, os primeiros sinais típicos envolviam dor de garganta aguda e febre, acompanhadas de dor de cabeça forte. Com isso, a pessoa também sofria de diplopia e fraqueza severa. Os tremores e movimentos espasmódicos vinham logo a seguir, com dores musculares intensas e sensação de que os músculos estavam a encolher. Quando a resposta da consciência dos pacientes diminuía, então eles pioravam drasticamente. As alucinações tornavam o quadro assustador, mas isso era só um aviso de que o sono e a letargia se iria instalar... para sempre. Em pouco tempo, milhares de pessoas estavam a dormir para sempre, em todo o mundo. E aquelas que acordavam, nunca tinham uma recuperação completa. A maioria dos afetados apresentava doença cerebral, problemas de visão, dificuldade na deglutição, paralisia facial, alterações da personalidade e até psicose.

E então as pessoas, a nível mundial, entraram em pânico. Tinham medo de ir para a cama para dormir. Ingeriam altas doses de medicamentos para manter o corpo em atividade, gerando outros problemas de saúde. Não era incomum ver pessoas à janela de suas casas a conversar com os vizinhos e a estimular os filhos a passear pelas ruas com os amigos, a altas horas da noite. Esse tipo de conduta desesperada, para além de ter acarretado outros problemas de saúde, também deu origem a desavenças familiares e até violência doméstica.

O número exato de indivíduos que contraíram a Encefalite Letárgica não se sabe, mas estima-se 1 milhão de mortos em todo o mundo, e milhares
 de pessoas presas dentro de si mesmas, em estado catatónico ou recuperadas, mas com sequelas permanentes. No início, a doença não era de notificação obrigatória em todos os países, muitos dados se perderam. Estima-se que cerca de 50% a 75% dos casos não foram notificados. Aproximadamente um terço dos infetados acabou por morrer. Dos que foram objeto de cuidados médicos, apenas 20% sobreviveu. Menos de um terço desse número teve uma recuperação completa e pôde viver a sua vida normalmente. 

Em 1966, Oliver Sacks, ainda um jovem neurologista britânico, chegou ao Hospital Beth Abraham, no Bronx, em Nova York, onde havia dezenas de pacientes com Encefalite Letárgica.
«Eu nunca tinha visto nada assim: tantos pacientes como aqueles imóveis, às vezes pareciam estar congelados em posições inusitadas. O que estava a acontecer? Pareciam estátuas com alguém vivo lá dentro.» Oliver Sacks numa entrevista à BBC em 1970.

E ele presenciou uma outra coisa espantosa: quando tocava uma música, algumas pessoas levantavam-se e dançavam. Havia algo na música que penetrava e estimulava o sistema motor delas a ponto de entrarem em ação. Era de facto incrível, Oliver Sacks não conseguia entender como era possível. Foi então que se lembrou de convidar Concetta Tomaino, que viria a ser cofundadora e diretora do Instituto de Música e Função Neurológica de Nova York, para ajudar a reabilitar os doentes através da música. Depois, é claro, de ter passado por uma odisseia com o seu pioneirismo, utilizando a Levodopa, medicamento de eleição no tratamento da doença de Parkinson, no regresso desses doentes ao mundo vigil. 



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