quinta-feira, 9 de julho de 2020

O Princípio da Incerteza # 3 – Os Espaços em Branco, de Agustina


Da Sinopse 
Com "Os Espaços em Branco", Guimarães Editores, 2003, Agustina Bessa-Luís encerra a trilogia "O Princípio da Incerteza", iniciada com "Jóia de Família", 2001 (Grande Prémio APE do Romance e Novela e transposto para o cinema por Manoel de Oliveira) e continuada com "A Alma dos Ricos", 2002. Os romances são independentes. No entanto, há personagens que se cruzam, ou vamos encontrá-las numa fase mais adiantada das suas vidas.

Em "Os Espaços em Branco" regressa Camila, anjo-demónio, filha de vinhateiros do Douro arruinados, que casou rica com António Clara e, por morte deste, num incêndio numa discoteca, herdou a quinta do Salto da Senhora. Camila está agora casada de novo com o advogado Raul Almeida e tem dois filhos. Abandonou o Douro, foi para Lisboa, mais tarde para Paris, numa contínua divagação em busca de redenção e liberdade.

Num encontro com Gerge Steiner, Oppenheimar afirmou: "O que há de importante na poesia e na filosofia são os espaços em branco". Daí vem o título deste romance, onde Agustina aborda o problema da realidade, com ecos de Conrad e do seu "O Coração das Trevas". Numa escrita mais próxima da coloquialidade, Agustina dá-nos um magnífico retrato destes modernos tempos de incertezas, da "sexualidade triste" ao consumo nos centros comerciais, os sem-abrigo, os toxicodependentes, os imigrantes de leste, a fraude e a corrupção, os novos pobres e os novos ricos, cita poetas e ficcionistas, e não falta sequer um "ghostwriter". Como afirmou Arnaldo Saraiva na apresentação que fez de "Os Espaços em Branco", Agustina "tenta captar os sinais autênticos da vida. Por isso, lê-la, além de um prazer, é uma aprendizagem de nós mesmos, da sociedade portuguesa e do homem universal"

Este livro, tal como a generalidade da extensa obra de Agustina, retrata as emoções e as vivências íntimas centradas numa personagem feminina mas não trata apenas do universo feminino, pois Agustina põe a nu toda uma série de segredos inconfessáveis da alma humana em tudo o que têm de perverso e escuro, e onde as forças ocultas das almas se manifestam com uma intensidade fora do comum. Os princípios da incerteza podem estar situados séculos ou milénios antes dos acontecimentos presentes. O interessante é que são esquecidas com facilidade pelos olhares mais desatentos, ou pela ingenuidade, ou por qualquer outro fenómeno que se acantona nos interstícios da memória/alma, e que não deixa olhar para dentro. E é aí que Agustina Besa-Luís vai buscar os ingredientes para os seus romances. Mundos perdidos e esquecidos nos cantos da memória onde estão vivas e latentes essas reminiscências, responsáveis pela nossa vida e pelos nossos actos no presente.

Uma mulher burguesa que decide deixar todo o conforto da sua vida na cidade pelo amor de um rapaz muito mais novo, de origens muito humildes, com quem decide fugir para se enterrar numa aldeia da serra. Depois, dedica-se a uma profissão humilde e encontra assim a paz de espírito. Bom, na verdade isto existe, mas nunca acontece. Nunca se chega a passar pois trata-se de uma vida paralela numa existência que é mais vasta. É desta maneira que Agustina entra pelos 'mundos possíveis do multiverso' dos novos físicos, e que ela, no mínimo, acha muita piada. Vai aos meandros da física quântica buscar a metáfora do sítio onde se esconde a Alma Humana.

E quando no fim, a verdade é desvendada, ficamos a perceber como a romancista trata os hiatos do tempo, aqueles períodos em que a nossa consciência se evade alcançando uma liberdade inimaginável que se sobrepõe a uma realidade superficial, onde as almas não comunicam. É a outro nível que se dá a comunicação das almas, que permite a existência de múltiplas vidas diferentes na mesma vida. É assim que Camila consegue sair da sua solidão, e vivenciar uma nova experiência, curando o abismo da loucura. Em todo este percurso narrativo o leitor vai sendo confrontado com estados de realidade de fronteiras muito débeis, em que as vivências no fundo se equivalem. A incerteza assume a sua dimensão mais notável e expressiva no branco, no vazio, no não-dito com que, literal e textualmente, emerge o romance superveniente:
          Ele ainda encontrou um bocadinho para lhe trazer o xaile e pôr-lho nos ombros com desvanecido cuidado. Nunca haviam de partir juntos para parte nenhuma, as coisas ficavam como estavam, aconselhadas e protegidas por fantasias, sonhos, crueldades finas como um cabelo. Camila disse (..)
          Por outro lado, paralelamente à incerteza dos desfechos não pensava no Neves nem tinha pena dele. No coração das trevas não há piedade por ninguém; é um magma que se move lentamente e nele estão os desejos dos homens, a sua voracidade de todas as coisas, do amor também. Tudo isso faz com que nos sintamos naquele remoinho onde a dor gira eternamente. 
          Mas o que era extraordinário é que ela se riu como Joana no cemitério de Saint-Ouen. Ria-se com tanto gosto que Vanessa ficou completamente desarmada. Não ia poder nada contra ela, fora levada por Camila à maior ruína e exasperação, e até António Clara a prevenira dizendo que a mulher era um “pássaro do-do”, que não existia nem se sabia se tinha existido. A Vanessa pôs-se a proferir insultos, que não se dirigiam a Camila mas a toda a sua corte de malfeitores e parasitas. Achava que António era um desses parasitas, um piolho da pior espécie. Camila pensou (e riu-se outra vez) se haveria piores ou melhores piolhos.
          Em pouco tempo Camila tomou posse do seu cargo de negro e fabricou alguns livros bem recebidos pelo público, o que ajudou a implementar a ideia de que se escrevia bem e muito em Portugal. Era uma dessas autoras que havia de sobreviver a quatro regimes políticos e que havia de ficar famosa mais pela sua longevidade do que pelos livros que dava à estampa. Albano tornou-se no seu querido, o seu chou-chou, como ela dizia, à francesa. Era a França onde ela ia ainda buscar as ideias mais brilhantes e dignas de plágio que se podiam encontrar, tanto mais que pertenciam a outros negros esquecidos no turbilhão editorial. Não vamos dizer que tudo o que Camila escrevia era original. Copiava, alterava, coloria, pedindo aqui um tema, ali um estilo, além um traço anedótico que já fora batido e só por ignorância despertava o riso nas pessoas.

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