terça-feira, 21 de julho de 2020

PORTUGA[L]: Quanto do PIB roubado?



Só para termos uma pequena ideia de quanto do PIB foi roubado a Portugal com a brincadeira do BES, e se fizermos de conta que as oito letras da palavra “Portugal” fazem o PIB total, a perda em dinheiro é equivalente à perda de uma letra. Ou seja, roubaram o “L” a Portugal, um oitavo do PIB. É por isso que fica Portuga. É essa a estimativa das perdas totais da resolução do Banco Espírito Santo (BES), para a economia portuguesa, calculado em percentagem do PIB (Produto Interno Bruto), entre 2015 e 2021.

De casos semelhantes na história, para equiparar, só regressando aos anos 20 e 30 do século XX, para lembrar o caso Alves Reis, em que o impacto no PIB, à época, foi de 2,6%. Alves Reis é um dos poucos que, a título individual, criou tanto impacto numa crise financeira que se aproxima das três crises financeiras em que Portugal, já em tempo de Democracia, teve de ser regatado: 1979; 1983; 2011. Portugal pediu em 2011 um empréstimo de 78 mil milhões de euros à Troika composta pelo FMI, Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Europeia. Dos 78 mil milhões de euros, o empréstimo concedido pelo FMI foi de 26,3 mil milhões.

Com Alves Reis, tudo começou de forma simples: uma falsificação que assumiu escala industrial, e daí degenerou em algo muito maior, devido às dificuldades práticas que a solução encontrada gerou. Alves Reis formou e capitalizou um banco - Angola e Metrópole - cujo projeto se desenrolou e desdobrou com a ideia de desenvolver Angola, e outros tantos empreendimentos. Assim o embuste se foi diluindo no meio de tantas iniciativas, negócios e projetos, que foram assumindo uma dinâmica virtuosa e própria, a tal ponto que fez desaparecer o crime original.

Nem mesmo tomando os maiores vigaristas da última crise financeira, como Bernard Madoffe, encontramos maior génio do que Alves Reis. O maior deles, Jerome Kerviel, da Société Générale, provocou um prejuízo de cerca de 7 mil milhões de dólares em França, em 2007, quantia equivalente a 0,28% do PIB francês desse ano. Nada há de surpreendente no facto de Alves Reis ter deixado uma forte impressão naquela época. Com efeito, enquanto prosseguia o julgamento em 1930, a que Fernando Pessoa assistiu da plateia, e da qual fez várias anotações, a "revolução keynesiana" espalhava-se pelo mundo, embora ainda sem esse cunho que viria a proporcionar. 
Não é possível imaginar por que razão útil (se é que existiu), o poeta consumiu três dias da sua vida na sala acanhada de Santa Clara, a não ser a curiosidade de ver e ouvir de perto o principal ator da tragicomédia financeira que abalou os últimos anos da República e se propagou em ondas de choque, aos primeiros tempos da ditadura. O conteúdo das notas não diverge do que parece ter sido a reação mais comum do público português aos eventos: um deslumbramento contido, prudentemente distante, mas não estranho à admiração. 

Em toda a parte autoridades económicas experimentavam esquemas fiscais e monetários criativos, até então tomados como heréticos, mas que as circunstâncias excecionais da Grande Depressão justificavam. Apesar de no início da sua apresentação, 1936, a teoria geral de Keynes ter sido muito criticada, a verdade é que Keynes tornou-se uma autoridade intelectual pelo sucesso que teve. Mas esta reviravolta keynesiana não foi suficiente para resgatar Alves Reis das prisões de Salazar, um "antikeynesiano".

Portanto, em 1931, com 34 anos de idade era um keynesiano em potencial, sem ainda o saber. Alves Reis publicou três livros, onde escreve esta passagem no terceiro: «Voltaire ... ensinou-me que "os fins intrinsecamente bons justificam os meios intrinsecamente maus". Por isso, os fins da emissão clandestina de notas de 500 escudos efígie Vasco da Gama eram intrinsecamente bons. Dentro dos princípios materialistas, que me orientavam, tinha o direito de usar meios intrinsecamente maus para auxiliar Angola ... Angola precisava de muito dinheiro.» O caso ganhou outra dimensão quando se iniciou em Londres o processo, ajuizado pelo Banco de Portugal, contra os fabricantes das "
notas de 500 escudos efígie Vasco da Gama", a reputada casa Waterlow & Sons, por quebra de contrato e negligência, ao aceitar a encomenda feita por supostos representantes do Banco de Portugal.

Julgado, aos 32 anos de idade, em Lisboa, no Tribunal de Santa Clara, em maio de 1930, e condenado a 20 anos (8 de prisão e 12 de degredo) ou, em alternativa, a 25 anos de degredo. Durante o julgamento, alegou que o seu objectivo era simplesmente desenvolver Angola. Foi preso 3 anos antes do começo da era do Estado Novo. Na prisão, converteu-se ao protestantismo. Em maio de 1945 foi libertado. Quando saiu, a mulher já tinha falecido. Foi-lhe oferecido emprego num Banco, mas recusou. E ainda veio a ser condenado por uma burla de venda de café vindo de Angola. Mas já não cumpre pena. Morre de enfarte do miocárdio a 9 de Junho de 1955, com 58 anos de idade. 

A maioria dos grandes criminosos de colarinho branco da era moderna opera de dentro, como insider numa grande organização, valendo-se de uma posição de confiança para perpetrar fraudes e desfalques. Falsários e falsificadores bem-sucedidos, actuam de fora e se fiam em habilidades refinadas, no zelo desmedido pelos detalhes, e com comparsas bem treinados para obter as condições favoráveis à sua atividade. Artur Virgílio Alves Reis, o amador que concebeu o crime, não possuía nenhuma dessas vantagens. Em relação ao Banco de Portugal, e ao mundo dos impressores de papel-moeda, ele era um completo estranho e, àquela altura, em 1924, encontrava-se praticamente sem dinheiro. Além de não se destacar por nenhuma habilidade criminosa, com frequência negligenciava os detalhes. Além disso, os três homens que escolhera para auxiliá-lo não podiam conhecer toda a verdade, pois qualquer um com um mínimo de bom senso veria que aquele esquema delirante não tinha a menor hipótese de sucesso. A despeito da sua evidente desqualificação, Alves Reis foi bem-sucedido. Triunfou porque tinha a imaginação fértil dos ignorantes, a segurança dos desinformados e a sorte absurda dos principiantes.

A enorme repercussão do seu êxito deu a Portugal o pior choque económico desde o grande terramoto de 1755. E deu origem à mais duradoura ditadura do século XX na Europa. O brilhante esquema de Alves Reis teve reflexos duradouros, que por décadas interferiram na vida da mais prestigiosa atriz holandesa, na prosperidade de várias famílias portuguesas, na afluência de um fabricante francês de aparelhos elétricos e, até mesmo, nos ásperos debates nas Nações Unidas sobre a Angola portuguesa.

Quase todos os criminosos são imitadores sem imaginação. Fazem o que outros criminosos fizeram antes deles. Os mais espertos trazem alguma inovação técnica, planeiam de modo mais elaborado, calculam com maior cuidado. Apesar disso, durante o século XIX, os comboios que transportavam valores foram assaltados centenas de vezes. E caixas-fortes de bancos aparentemente inexpugnáveis foram rotineiramente violadas, nos fins de semana. Desde que os chineses inventaram o papel-moeda, não há sequer uma matriz que não tenha sido falsificada. E, numa rotina similar, falsificam-se milhares de cheques todas as semanas. O crime de Alves Reis, todavia, além de jamais ter sido feito antes, apresentava também uma limitação intrínseca: não poderia ser repetido. Era - e é - o crime único, algo tão raro que ocorre apenas uma vez na história de uma civilização. Ele concebeu e executou um plano perfeito de falsificação.

Matrizes grosseiras resultam em notas grosseiras. Qualquer caixa de banco atento identifica as notas falsas. Tome-se o segundo grande obstáculo: quem se pode recrutar para correr o risco de passar as notas falsas em pequenos estabelecimentos comerciais e restaurantes? Para isso, só se pode contar com os marginais do submundo. cuja própria aparência é suficiente para que o mais negligente comerciante examine com redobrada atenção uma nota que lhe caia nas mãos. Há ainda os criminosos que adquirem as notas no atacado, ao custo de grandes descontos, os quais colocam em risco o próprio falsificador devido à sua natural ansiedade para se livrar o mais rápido possível das notas, e assim despertam de imediato a atenção dos bancos e do governo.

No fim, há a inevitabilidade do inquérito, prisão e condenação. A falsificação de dinheiro representa para o Estado uma ameaça só comparável ao crime de traição. Aos falsificadores se aplicam penas severas e rápidas. Bem além de uma questão restrita à justiça, e muito mais do que um problema de imagem para o Estado, trata-se de autodefesa. O funcionário que se corrompe, o homem que mata o amante da esposa ou o escroque que aplica um golpe na empresa, todos podem esperar e, até mesmo, comprar a indulgência. No entanto, nenhum Estado admitirá qualquer indulgência em casos de falsificação, quer de um punhado de moedas, quer de um milhão de notas de banco.

Esses três obstáculos são bastante óbvios, e muitos dos melhores profissionais do crime ousaram enfrentá-los no passado. Todavia, Artur Virgílio Alves Reis foi o primeiro a encontrar uma solução eficaz. Elaborou um esquema de falsificação perfeitamente lógico. Até mesmo os seus concorrentes, naturalmente, havia muitos, foram obrigados a reconhecer o brilho desconcertante e a lógica luminosa do seu plano. O Estado, na condição de seu principal inimigo, assim se manifestaria, muito mais tarde, por intermédio de um dos seus mais eloquentes representantes: «Para Alves Reis não havia o que se costuma chamar de dificuldade lógica. Nele, a conceção precede imediatamente a execução. ... Dotado de imaginação extremamente fértil e de atividade mental assombrosa e quase febril ... jamais se perguntou se uma ideia que lhe passava pela cabeça era exequível. Tudo o que imaginava parecia-lhe possível e, até mesmo, fácil.»

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