sexta-feira, 24 de julho de 2020

Liberdade de pensamento e liberdade de ação no Ocidente


Parto de uma noção de Ocidente mais no seu contexto político e cultural, não tanto como geografia. Digamos que geograficamente, para simplificar, este ocidente é como se fosse um hemisfério côncavo tendo como centro a que calote pertence – o Atlântico, símbolo de uma aliança política que se selou depois da Segunda Guerra Mundial, e enlaçou democracias liberais dos dois lados do Atlântico contra os dois totalitarismos – fascismo e comunismo. Entretanto deu-se o fim do sistema soviético, a guerra fria acabou e o globalismo acelerou em força no sentido do Oriente. E ao mesmo tempo, a partilha daquele conjunto de valores das democracias liberais e do estado de direito que parecia estarem consolidados nos finais do século XX, começou a abrir brechas com as crises financeiras que, entretanto, surgiram neste século XXI.

Em suma, as sociedades democráticas e liberais ocidentais permitiram à generalidade dos indivíduos realizar o melhor possível as suas aspirações, garantindo-lhes a igualdade de oportunidades para alcançá-las, que não encontrou paralelo em qualquer outra forma de organização das sociedades humanas. Deu-lhes a oportunidade de serem cidadãos com a capacidade única de corrigirem erros e injustiças através do debate livre entre ideias diferentes e a livre escolha de quem os governa em cada momento. Com todos os seus enormes defeitos, continuam a ser as sociedades mais livres, mas também mais justas, à escala global.

Na génese das divergências que hoje existem nos extremos do espectro político está a noção de identidade (cor da pele, classe, género, etc.). E o problema das ideologias é que em nome dos indivíduos, o indivíduo não conta. Ou se conta, é para aceitar que a sua identidade determina a sua individualidade. É, portanto, a negação do liberalismo que nasceu das Luzes e que faz de cada indivíduo, desde que nasce, um ser simultaneamente autónomo e igual a todos os outros. Este princípio definidor das democracias liberais não foi uma revelação divina (embora tenha algumas das suas raízes no cristianismo). Foi obra do pensamento dos homens e, por consequência, a sua aplicação ao longo de mais de dois séculos foi evolutiva e esteve longe da perfeição. Houve, não deve custar admitir, por parte deste liberalismo a aceitação pacífica de impérios europeus racistas, colonialistas, com a desculpa do bom governo a quem não se sabia governar. E do outro lado do Atlântico, os pais-fundadores dos EUA excluíram os escravos do direito de cada um à felicidade a partir da liberdade.

Ora, não é pelo facto de se reconhecer toda essa fileira de abusos no passado nos iniba de continuar a defender a democracia liberal dos ataques de que é alvo actualmente, e que não vêm apenas dos movimentos nacionalistas e populistas da direita e da extrema-direita. Há um radicalismo ideológico filiado no velho alinhamento à esquerda do espetro ideológico político conotado com o marxismo lato senso, cuja visão do mundo é, na sua essência, igualmente autoritária e discriminatória sob o manto diáfano das boas intenções. Por exemplo, para estas correntes, um branco é, por natureza, racista, mesmo que se declare anti-racista. Tal como, no tempo do apogeu marxista soixante-huitard, um intelectual seria sempre um “burguês”, por melhor que quisesse servir a classe operária.

É neste contexto que vale a pena ler Isabel Moreira, constitucionalista:
«A nossa Constituição, enquanto expressão de uma sociedade aberta, não impõe um modelo de tolerância virtuosa, porque, se assim fosse, a lei fundamental negaria o núcleo fundamental da liberdade de expressão e teria de consentir a censura, evidentemente proibida pelo artigo 37º, nº 2. Isto para dizer que o artigo 46º, nº 4, proíbe as organizações, mas não proíbe a expressão individual do pensamento racista ou fascista, por mais condenável que ele possa ser. Temos de distinguir os planos do pensamento, da palavra e da ação. Por vezes, quando se explica o alcance necessariamente limitado do artigo 46º da Constituição, é-se confrontado com alguma perplexidade, como se estivéssemos a proteger os inimigos da democracia. Acontece que faz parte do Estado de direito democrático e, portanto, de uma Constituição democrática, assumir o risco de acolher os intolerantes. As restrições à liberdade de associação e as restrições à liberdade de organização previstas no artigo 46º da Constituição devem ser lidas tendo em conta que as primeiras, introduzidas em 1976, constam de um preceito referente à liberdade de associação, enquanto que as segundas foram introduzidas em 1997 no mesmo preceito, ou seja, sem que o artigo relativo à liberdade de expressão (artigo 37º) fosse beliscado. O artigo 46º da Constituição deve, evidentemente, ser levado a sério, mas não pode ser pretexto político para pretender ilegalizar a livre expressão do pensamento e mesmo da organização política dos nossos adversários políticos quando não estão em causa os reais significados das restrições constitucionais aqui referidas.»

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