quinta-feira, 23 de julho de 2020

Por veredas que não eram assim



Mas agora é assim, temos de estar atentos para qualquer objeto de entendimento, não entretenimento, sejamos adultos ou infantis, seja o Dumbo, ou o Tristão e Isolda, para não cometermos anacronismos raciais. Sendo assim, é melhor tomarmos atalhos e irmos por carreiros até à próxima estação. E então partirmos daí com papeis colados numa mala, porque a idade já resvala, e o coveiro já se encostou à enxada, para não cair na cova, que ele próprio cavou. 

Em 2018, centenas de professores universitários em Inglaterra tiveram de assistir a workshops para aprender a reconhecer o seu privilégio branco, a sua branquitude carregada de esterco do passado. Ou seja, lavar a sua pele com HOMO, porque HOMO lava mais branco a sujidade do racismo. Até aqui, até estes workshops, brancos muito brancos ainda não se tinham dado conta que era racistas de nascença. Disse o orador: "As pessoas brancas no Reino Unido têm desfrutado de vantagens únicas, única e exclusivamente por serem brancas. O que seria diferente se tivessem outra cor da pele." 

Lembro a controvérsia que emergiu em torno da campeã de ténis, em 2018, Serena Williams, durante a final do Open dos Estados Unidos. Williams perdeu completamente a cabeça com o árbitro, quando partiu a raquete. A tenista foi multada em 17 mil dólares. Recordo que se habilitava a dois ou quatro milhões, conforme ficasse em segundo ou primeiro lugar. Mas o caso não ficou por aqui. Sendo Serena uma mulher, e negra, a Associação Feminina de Ténis, apelidou o árbitro de sexista e racista.
Entre outros, a BBC alegou que as críticas feitas a Serena, pela sua explosão no court, fizeram eco de um longo estereótipo racial de "mulheres negras zangadas". Como? Bem, Carys Afoko, no The Guardian, explicou quão difícil é ser uma mulher negra no trabalho. Já não pode ter um dia menos bom. O que acontece, agora já não é raro, ver-se um homem branco chorar, após uma altercação com uma mulher de cor, por medo de ser acusado de racismo e perder o emprego. Para quem não sabe o que é a interseccionalidade - é um conceito que nos permite compreender que as pessoas vivem vidas multidimensionais.

Hoje vemos com alguma frequência líderes ou responsáveis de instituições anteciparem-se a pedir perdão, e a corrigir os paradigmas do passado que agora envergonham a instituição. Por exemplo, a maioria das pessoas não vê a National Geographic como uma revista particularmente racista. E, todavia, Susan Goldberg, a editora adjunta, disse: “Há coisas que se encontram nos nossos arquivos que nos deixam sem palavras." A revista declarou que as suas edições passadas eram culpadas de muitas coisas. Não deixa de ser caricato, que um artigo de uma Revista publicado em 1916, seja avaliada e auto-criticada, quanto a racismos, por critérios critérios editoriais de 2018. Só por aqui podemos avaliar como está tudo maluco, apetecendo parafrasear dizendo: “O passado é um país estrangeiro e muito esquisito – onde é que os nossos pais e avós tinham a cabeça para fazer coisas daquelas? Valha-me deus . . .” Em 1916 as mulheres na Grã-Bretanha e na América não tinham direito de voto. Os homossexuais masculinos eram presos; lésbicas ainda não havia; o trabalho infantil era a torto e a direito; e ainda havia sentenças judiciais a trabalhos forçados. E diz o inteligente: "Nessa altura as coisas eram diferentes."

Ironia das ironias, não obstante as desculpas apresentadas pela National Geographic, por uma infâmia cometida no passdo e que ninguém tinha dado por isso, a partir do momento em que a Revista o deu a  conhecer de livre vontade, nada iria ficar como antes. Virou-se o feitiço contra o feiticeiro: "As desculpas não foram suficientes". No The Guardian, um articulista sofrendo de paranoia, disse que as desculpas pecaram por tardias. Mas outro articulista de um outro jornal escreveu a páginas tantas: “Mas se é assim, se as melhores pessoas daquela época fizeram coisas tão erradas, como podemos ter a certeza que as melhores pessoas de hoje não serão vistas, pelos olhos dos que hão de vir, como gente infame que só fez porcaria?”

Portland no Oregon, tem estado a ferro e fogo com manifestações antirracistas, ao ponto de as forças policiais Trump terem entrado por ali dentro jorrando gás lacrimogéneo, à revelia do Governador, para pôr ordem na casa. Isto teve por parte do governador, que é do partido Democrata, forte protesto e grande indignação. O Presidente excedeu largamente as suas competências numa questão estadual. Mas Portland não é inédita neste tipo de questões. Já há uns anos a esta parte tem sido notícia pelas diversas manifestações contra todo o tipo de apropriações culturais, sobretudo no campo da comida. Por exemplo, um não-mexicano não se pôde dar ao luxo de abrir um restaurante de comida mexicana;  um não-jamaicano não pôde fazer propaganda nas redes sociais de uma receita de galinha jerck jamaicana. E muitas outras coisas do génro.

O lançar de um simples olhar crítico sobre este fenómeno, confessando que tudo isto são ideias malucas totalmente disparatadas, e dizê-lo na imprensa, televisão ou redes sociais, está sujeito a um dilúvio de acusações e queixas de ofensas identitárias e outras suscetibilidades. E a verdade é que a suscetibilidade a este tipo de críticas infames está a alastrar por todo o mundo. Hoje em dia, humoristas e livres pensadores têm de pensar duas vezes sobre aquilo que podem dizer ao abrigo da liberdade de expressão. Se um romancista tiver o azar de criar personagens que possam colidir com este tipo de suscetibilidades, e responder às críticas dos descontentes assim: “Bem, ser asiático não é uma identidade; ser gay não é uma identidade; assim como também ser portador de uma caixa de óculos, um aparelho auditivo para surdos, ou circular numa cadeira de rodas, não é ser portador de uma determinada identidade” – certamente que nunca mais o vão largar até ele desistir de publicar o romance com esse tipo de personagens. Isto faz-me lembrar o caso de Salman Rushdie quando o Aiatolá Khomeini lhe lançou uma fatwa por causa do seu romance “Versículos Satânicos”, porque ofendia a religião.

A maior parte das pessoas que vivem do lado de fora dos portões das academias podem não fazer ideia do que está por baixo do ruído que passa na retórica dos meios de comunicação social, os média, e dos insultos nas redes sociais. Algumas pessoas num espírito de ressentimento, outras num espírito de afrontamento soberbo, andam aos pulos num terreno de minas. Depois de um período de anomia ideológica, eis que regressam, e em força, as guerras culturais. O campo do jogo está de novo ocupado pelas extremas militantes numa insania que em ocasiões parecidas, em tempos que se pensa sempre que já foram, pré-anunciaram: ou guerra; ou revolução.

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