quinta-feira, 16 de julho de 2020

Induzidos a culpabilizarem-se, há europeus que se sentem culpados. Eis a questão


Como se pode salvar o europeu de gema quando um seu irmão aceita expiar-se por não merecer perdão definitivo pela desgraça que antepassados – um cruzado, um colonizador, ou um mero catequista a expandir a fé e o império – causaram aos outros povos?

Em primeiro lugar o europeu precisa de recuperar a autoestima. E para isso tem de ser intelectualmente honesto, abrindo-se a si mesmo e aos outros povos. Projetando este princípio para as nações, isto significa que uma nação não pode autoestimar-se e merecer o respeito das outras nações se não desenvolver com elas uma relação baseada na verdade e na autenticidade.

Não há justificação para que o europeu de gema desconstrua o melhor que outra cultura alguma vez conseguiu atingir – inigualável quanto a liberdade, igualdade, fraternidade, estado de direito democrático, carta dos direitos do homem – por causa do ódio disparatado cultivado contra si próprio devido às partes negativas da sua história. Porque também nenhuma outra cultura, pelo menos que se saiba, o faz. E pode pedir meças se acaso haverá por aí alguma outra cultura que tenha feito melhor. A noção de Ocidente não é apenas uma constatação geográfica ou a tradução de uma aliança política e militar entre os dois lados do Atlântico, que se consolidou com a luta contra o fascismo e contra o comunismo – os dois totalitarismos que marcaram o século XX e que foram vencidos pelas democracias liberais. A noção de Ocidente partilha de um conjunto de valores que sobreviveram a todas as adversidades, a todas as crises. As sociedades democráticas e liberais permitem à generalidade dos indivíduos realizar o melhor possível as suas aspirações, garantindo-lhes a igualdade de oportunidades para alcançá-las. Isto não encontra paralelo em qualquer outra forma de organização das sociedades humanas. Com todos os seus enormes defeitos, continuam a ser as sociedades mais livres, mas também mais justas, à escala global.

Então o europeu que sente vergonha pelos seus antepassados, devido ao mal que fizeram aos outros, tem de esquecer essa memória traumática, o que não é o mesmo que negar, e parar com a sua autoflagelação sem qualquer sentido humanista. A reprogramação positiva de si consiste em pôr fim ao erro de se culpar com crenças negativas que podem perfeitamente ser limpas da consciência depois de identificado o seu não-sentido. Assim, terá de compreender que não pode ceder a chantagens indutores da sua culpabilização, tanto mais quando os seus indutores o fazem por oportunismo, manipulando as consciências mais débeis dos demais. A relação terá de ser baseada na honestidade e na reciprocidade. Por exemplo, dizer: “Sim, os nossos antepassados não se portaram bem nas Cruzadas, na Escravatura, etc.” Mas também não ter medo de dizer: “Mas que moralidade tem um sírio de Damasco exigir a um francês uma autocrítica em relação às atrocidades que os seus antepassados cruzados cometeram na terra dele, quando ele acha que não tem nada a dizer à ocupação omíada da Península Ibérica a partir de 711 – o emirado dependente do Califado de Damasco, também designado por Al-Andaluz.

A democracia liberal tem de saber defender-se dos ataques de que é alvo actualmente. Os que mais têm preocupado são aqueles que vêm dos movimentos nacionalistas e populistas da direita e da extrema-direita. Mas não se deve negligenciar também o radicalismo esquerdista, cuja visão do mundo é, na sua essência, igualmente autoritária e discriminatória sob o manto do politicamente correto. Para estas correntes da “cancel culture”, um branco é, por natureza, racista, mesmo que se declare antirracista. Tal como, no tempo do comunismo, um intelectual seria sempre um “burguês”, por melhor que quisesse servir a classe operária.

Na génese destes movimentos está a noção de identidade. De cor da pele ou de classe ou até de género. O indivíduo não conta ou, se conta, é para aceitar que a sua identidade determina a sua individualidade, certamente obra do pensamento dos homens, mas alicerçada em mais de dois séculos de grandes debatas por parte de ilustres pensadores. Houve liberais “imperialistas” ou “racistas”, é certo, que justificaram o colonialismo europeu com a imposição do bom governo a quem não se sabia governar. Mas como se sabe, a governança é um pau de dois bicos, ou uma medalha com duas faces, ou se quisermos ser mais cruentos: uma faca de dois gumes.

Cada civilização desenvolve os seus próprios valores e merece respeito. Portanto, não devemos embarcar na ideia de uns serem superiores aos outros. Todavia, não devemos entrar em mistificações quando uns promovendo a dignidade e a liberdade humana são criticados por outros que persistem na perseguição das minorias, das mulheres ou dos infiéis.

Por conseguinte, nos termos referidos, nem todas se equivalem. Fico perplexo, deste ponto de vista, que alguém por ser solidário com o primeiro, por defender tais princípios, seja linchado no plano mediático com a acusação de racismo ou xenofobia, ou islamofobia.

Se a autoflagelação inculcada nos europeus há décadas, no âmbito da indução do ódio de si, for a causa da fraqueza europeia face à sua afirmação no jogo de poder entre blocos num mundo multipolar e multicultural. E se essa autoflagelação continuar a persistir por muito mais tempo, temo que não se possa salvar da decadência e da insignificância no xadrez da geopolítica do século XXI.

Mas também é claro e lógico, que não é através de retaliações, ódio e expiações, que se pode salvar. Será pela recuperação da sua autêntica identidade sem tibieza quanto ao seu amor próprio.

Pode haver europeus que já tenham desistido de lutar pela preservação da sua identidade e da sua cultura; e que até não se importem que se repita na Europa Ocidental o que aconteceu há dois mil anos com a queda do Império Romano do Ocidente, que em parte chegou a ser reabilitada na época do Renascimento, e onde os Portugueses também contribuíram com a sua quota parte dos chamados e tão famigerados Descobrimentos. E até é verdade que tal possa ser inevitável, como está tão expressivo no problema da demografia. Mas a despeito disso, a decrepitude da Europa não tem de ser inelutável.

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