quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Hedonistas epicuristas e não-epicuristas




Nas chamadas conversas de café, a palavra hedonismo é utilizada com o significado de inclinação para os prazeres da carne sem preconceitos morais. Ora essa conceção está muito longe do hedonismo epicurista, porque Epicuro, o primeiro grande teórico do hedonismo, que associou essa ideia à felicidade (eudaimonia), compreendeu que prazer e felicidade não eram a mesma coisa. Eudaimonia é um termo grego que literalmente significa: "estado do ser habitado por um bom daemon (génio)". A sua tradução mais frequente, embora haja outras como um estado de plenitude do ser, é felicidade.

E esta sentença fez-me viajar de novo na memória. Quando eu era pequeno, no verão depois de jantar (21 horas mais coisa menos coisa), deitava-me numa pedra de granito de papo para o ar e punha-me a olhar para as estrelas, tentando decifrar a Ursa Maior, a Ursa Menor, a Cassiopeia e Orion. às tantas as costas começavam-me a doer, mas eu não me importava, porque para além das estrelas, ouvia o murmúrio do mar, que saía de dentro da concha de um búzio que encostava ao ouvido, um brinde extra que eu deslocava de um aparador da sala de jantar da minha avó.

Por estes dias da Covid, depois de um bacalhau magnífico regado com um alentejano modesto e uma sobremesa contida, recolhi ao quarto e liguei a televisão. Num canal qualquer estava a passar um anúncio da UNICEF a alertar-nos que cerca de 400 mil crianças estão em risco de morrer de fome. Crianças e mais crianças a morrerem de fome e eu "que diacho, haverá também velhos a morrer assim?" Eu que me considero um velho, a desculpar-me do bacalhau. Mudo de canal e está um especialista em epidemiologia a ser entrevistado e a dizer que praticamente, os mortos da Covid são quase todos velhos com mais de 80 anos. E sigo para outro canal: um velho a ter alta de um hospital após internamento por Covid, e o stafe a elogiá-lo, a felicitá-lo, por ter vencido o bicho. E uma enfermeira dizendo que ele ainda estava ali para viver por muitos anos, e ele a abanar com a cabeça a dizer que não queria.




No meio de tanta notícia sobre os números da pandemia Covid, de tanto depoimento científico, e de tanto comentário político opinativo, veio-me à memória o início dos anos 1980. Estou a lembrar-me de Freddie Mercury e António Variações que morreram de SIDA, a doença provocada pelo vírus HIV, e eles ainda na pujança da vida. Dois músicos ainda hoje muito adorados por quem gosta de música e não só. 

Eram os anos 80 do século passado assolado por uma epidemia que se transmitia durante o contacto amoroso e que, de início, lavrava sobretudo entre os homossexuais. Os fanáticos religiosos não demoraram a vir dizer que se tratava de um castigo divino. A resposta também não se fez esperar, de início levantada nos meios artísticos, mas que depois se estendeu a "gente de bem".

Prazer e felicidade nem sempre coincidem. Às vezes o prazer traz mais infelicidade do que felicidade. Epicuro sabia muito bem que era assim, uma vez que recomendava que fôssemos prudentes quanto aos prazeres da carne, ainda que essa prudência nos pudesse dar um travo melancólico. A noção fundamental de hedonismo pode ser a ausência de sofrimento. Estamos felizes enquanto conseguimos manter longe de nós o sofrimento para além da dor. Aquele velho, que na hora da despedida do hospital rumo a casa de uma filha, disse que não queria mais, talvez nunca tenha ouvido falar de Epicuro, mas cá para mim eu pensei: "ora aqui está um verdadeiro hedonista epicurista".


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