terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Crise epistemológica de um cientista


Os colegas de E.A., médico neurocientista, 56 anos de idade, ficaram estupefactos quando partilhou com eles as suas novas convicções: não ter dúvidas da existência de uma vida para além da morte; e que a nossa consciência existe fora do corpo. Ora no que ele foi acreditar depois da sua Experiência de Quase Morte (EQM), quando esteve em coma induzido 8 dias nos Cuidados Intensivos devido a uma grave e rara infeção cerebral (meningite). E sendo ele um cientista que até aí só acreditava na ciência, passou a acreditar em Deus, na vida para lá desta vida depois da morte física, que a nossa mente existe fora do nosso corpo, que a nossa consciência não é um produto do cérebro.

Ele acabou por ter problemas com os seus pares no hospital onde trabalhava, ao baralhar-se das ideias acerca da morte cerebral e da consciência. Passar a defender ideias completamente erróneas na área da neurologia era uma coisa absurda para quem trabalha logo na área da neurociência. E depois não tardaram a aparecer os casos de má prática médico-cirúrgica. Como poderia ele considerar que o cérebro em coma induzido era um cérebro morto? A rutura epistemológica deste médico, em colisão com o paradigma científico, para além das suas participações no show televisivo da Oprah Winfrey, e das suas palestras em vários eventos religiosos, era de uma gravidade inaudita.
«Era tudo tão real, quase demasiado real, se é que isto faz sentido. À medida que a minha mente científica regressava, mais claramente eu via o quanto as minhas décadas de formação e prática de medicina entravam em conflito com o que tinha vivido, e mais compreendia que a mente e a personalidade continuam a existir para além do corpo. As memórias estavam lá, intactas e claríssimas, exatamente onde as tinha deixado.»
Este tipo de narrativas de pessoas que estiveram em coma, designadas por Experiências de Quase Morte (EQM), geralmente levam essas pessoas a acreditar irredutivelmente no Além. É muito difícil fazer um distanciamento da experiência em primeira pessoa, para que o discernimento do fenómeno seja feito segundo a perspetiva da terceira pessoa, que é a perspetiva que alicerça o conhecimento científico.
«O que eu tinha vivido era mais real do que a casa em que me encontrava. No entanto não havia espaço para isso na mundivisão das pessoas com formação médica e científica, a mesma formação que eu tinha passado anos a adquirir. Como é que eu ia criar um espaço onde estas duas realidades pudessem coexistir?»
Crise epistémica, ou epistemológica, é crise de conhecimento. E esta crise tem a ver com a desvalorização da objetividade, para estar em consonância com um compromisso emocional, e com as suas próprias convicções pessoais. A Epistemologia, como disciplina filosófica, estuda aquilo em que acreditamos. Isso tem a ver com a verdade objetiva, mas também com o que a nossa subjetividade aceita como verdade. Para além disso é preciso compreender as razões de uma crença. E se tais razões têm um fundamento lógico. Que fundamento lógico teve E.A. para romper com o seu paradigma científico, que não separa a mente do corpo, para regressar ao antigo paradigma cartesiano que separa a mente do corpo? Nenhum!

Mas há um tipo de rutura epistemológica mais sério que se deu a partir do último quartel do século XX por parte de uma certa fatia académica das ciências sociais ligada à denominada corrente pós-modernista. As transformações radicais que ocorreram nas ciências sociais gerou um abalo na área da filosofia da ciência/epistemologia, a qual descaracterizou o modelo fundacional assente na razão e na objetividade. Sucede que a partir da década de 1980 ganhou terreno uma nova epistemologia, como crítica à epistemologia convencional, com sede académica em setores da sociologia dita feminista e pós-colonial inspirada em Michel Foucault, e da filosofia pragmatista americana, com notoriedade para Richard Rorty. Esta corrente chegou mesmo a postular o abandono da Epistemologia como projeto filosófico. Este Relativismo, ao nivelar todos os saberes como igualmente respeitáveis, acabou por ignorar as consequências e as implicações desses saberes sobre o mundo.

Segundo Leon Festinger, as pessoas necessitam estruturalmente de uma consistência interior relativamente às suas crenças e comportamentos derivados. Uma desarmonia entre estes dois elementos é rotulada como dissonância cognitiva. Certas pessoas, devido a determinadas situações, como os estados de stress pós-traumático, entram num estado de dissonância cognitiva. A dissonância é assim causadora da negação de evidências objetivas, o que distorce a perceção da realidade. 
A memória, o pensamento e a linguagem desencontram-se por falta de coerência entre elas. E quando dois ou mais processos cognitivos entram em conflito, entramos em sofrimento. E então há que encontrar um ponto que faça sentido dentro do estado psíquico em sofrimento. 

Foi o que aconteceu neste caso do médico E.A., com uma epistemologia inconsistente com a natureza científica do seu conhecimento anterior. A experiência por que passou foi suficientemente forte para se sobrepor à razão, a injunção da esfera emocional sobre a esfera racional, e abalar as suas convicções científicas com um investimento num processo de cariz puramente religioso, para sua salvação.
 
Não há nenhuma evidência científica de que a consciência continue após a morte. Mas essa é uma crença muito antiga, e quando digo antiga recuo até ao tempo dos Neandertais. Enterros fúnebres atribuídos aos Neandertais por antropólogos e arqueólogos, fundamentam-se no achado de flores e outros motivos simbólicos que ornamentavam os corpos cuidadosamente deitados nas covas encontradas.

Em todas as culturas e em todos os tempos históricos até aos nossos dias a crença em vida após a morte tem raízes perenes. Isto tem implicações notoriamente culturais, daí o facto de existirem conceções diferentes acerca do caso, conforme as tradições culturais: a ressurreição na tradição Cristã, e um pouco semelhante nas religiões ditas do Livro ou Abraâmicas; a reencarnação nas religiões da Índia, com forte implantação no Budismo; ou então na Doutrina Espírita herdeira de Allan Kardec

Um grave erro científico deste médico, a que a comunidade médica não foi parca em críticas, diz respeito ao que ele veio a afirmar acerca da morte cerebral, dizendo que o seu cérebro durante o estado de coma esteve morto. Ora, por causa das transplantações e órgãos, este aspeto foi muito estudado e sujeito a um grande debate nos últimos cinquenta anos. Só era possível retirar um órgão de uma pessoa doadora se ela estivesse inequivocamente morta, ou seja, no estado definido de cadáver. Assim, era preciso determinar o momento exato da morte porque, para o órgão ter viabilidade no recetor do transplante, a colheita de órgãos não podia demorar muito a seguir ao falecimento, e o órgão ser transplantado o mais rápido possível. A antiga definição de ausência de respiração e ausência de batimentos cardíacos não servia para este efeito. Por outro lado, o aperfeiçoamento técnico nas manobras de ressuscitação de pessoas em paragem cardíaca e pulmonar veio mostrar que ainda era viável a vida com qualidade de uma pessoa que fosse reanimada até 15 minutos após ter entrado em paragem. A partir daqui, o critério de morte utilizado pelos médicos para poderem encetar a colheita de órgãos para transplante passou a ser o de morte cerebral.

A morte cerebral é definida pela cessão de atividade elétrica no cérebro, mas mesmo aqui há correntes divergentes. Há aqueles que mantêm que apenas a atividade elétrica do neocórtex deve ser considerada a fim de se definir a morte. Por padrão, é usada contudo uma definição mais conservadora de morte: a interrupção da atividade elétrica no cérebro como um todo, incluindo, e sobretudo, o tronco cerebral, que é a parte que controla 
atividades vitais essenciais como a respiração e os batimentos cardíacos. O neocórtex é o que que está associado à consciência propriamente dita. Vários hospitais possuem elaborados protocolos para a determinação da morte, envolvendo entre os parâmetros mais básicos, várias eletroencefalografias em intervalos precisos, avaliados no mínimo por dois médicos diferenciados.

Seja como for, culturalmente, a questão do que acontece durante e após a morte, é uma interrogação e uma questão intuitivamente latente na mente humana. Tais questões vêm de longa data, e a crença numa vida depois da morte com uma posterior reencarnação ou mesmo a passagem para outros mundos, embora muito antigas, são ainda muito difundidas socialmente. Mas isto não é mais do que uma procura de consolação. A crença em vida após a morte pode, para esses, trazer algum consolo. Quanto ao inferno, já lá vai o tempo em que era uma questão muito temida. 

Que fique bem claro, do ponto de vista científico, não há evidências que corroborem a existência de espíritos ou algo com função similar que sobreviva após a morte. A consciência existe unicamente como resultado de correlações cerebrais. Essa hipótese é a que encontra corroboração científica atualmente, a vida cessa de existir no momento da morte. O que mais são doutrinas espiritualistas e outros cultos de neopaganismo para explicarem certos fenómenos psíquicos e êxtases místicos. A consciência tem uma origem física e precisa de um cérebro para se relacionar com o mundo. 

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