domingo, 7 de fevereiro de 2021

Consciência da perda de Si


A vida tem um princípio e um fim: nascimento e morte. Uma realidade de cada corpo que nele se opera a partir do momento em que é dado à luz. A vida humana é uma constante experiência que conduz a uma decadência do organismo, que esgota a sua força vital, por enfraquecimento ou doença do meio interno, e impossibilidade de se ajustar às modificações e agressões do meio externo. Este é um princípio geral a que todos os seres obedecem sem exceção: A mão invisível da entropia, ou a 2ª lei da termodinâmica. Paradoxalmente, a morte é uma consequência da vida. Sem vida não haveria morte. A pessoa humana morre desde que nasce; morre em cada instante, porque a morte não surge no momento. É um processo em movimento desde o nascimento à mercê do Acaso.

Na morte, o homem experimenta a mais profunda solidão, ao reconhecer o seu próprio desaparecimento. Ato único e irrepetível, de impossível relato, a pessoa humana tem experiência da morte através da morte dos outros, o que lhe permite pensar sobre o momento da sua morte, representando, antecipadamente, a interrupção da sua vida ao chegar a essa situação-limite – através da morte alheia, vive-se um pouco a nossa, fruto dos efeitos emocionais e do drama da perda de outrem.

A morte é a única experiência humana que não podemos partilhar – é impossível representar a própria morte, a não ser como espectador, pelo que é sempre através do que acontece aos outros que dela tomamos conhecimento ou proximidade, pois, quando chegar a nossa vez, já não poderemos comunicá-la. Desaparecemos como consciência de nós. Deste modo, a morte impõe a inexorável vulnerabilidade humana e a limitação do Si, do Eu. Mais do que um problema ou uma interrogação à razão, a morte constitui um enigma, um mistério – partida sem regresso, ponto de interrogação no limiar do desconhecido. O horror da morte, a angústia da morte, é o pensamento que perturba a pessoa pela perda da sua individualidade. É a Consciência da perda de Si. O apaziguamento dessa consciência para algumas pessoas é a esperança, a última a morrer, de que há um Além, uma sobrevivência post mortem



Aturo Pérez-Reverte diz: 
Se tivesse que dividir o mundo em dois grandes núcleos de pessoas, não seria entre bons e maus. Seria: entre os que aceitam com naturalidade que vão morrer, na boa;  e os que não o aceitam. As pessoas que aceitam que vão morrer, porque isso faz parte da ordem natural das coisas vivas, são melhores, até nas suas crueldades e nas suas violências — são realmente humanas. Os que acreditam que não vão morrer, porque uma outra vida os espera por trás da cortina cinzenta da madrugada, são estupidamente irresponsáveis, só prejudicam a humanidade, e a atualidade demonstra-o claramente. Saber que um dia tenho de morrer talvez tenha sido o que, paradoxalmente, me manteve vivo. 

Há os sedentários e há os caçadores. Eu sou um caçador, um protótipo, é claro. O caçador é aquele que tem de ir para longe a fim de procurar a comida. Vai e por vezes não volta. O mamute mata-o ou o leão devora-o. Quando o caçador consegue regressar e se senta ao pé da fogueira, é aquele que conta a história de tudo o que lhe aconteceu. É o que se converte em narrador. Sem desprezar o sedentário, o caçador tem a superioridade intelectual de quem saiu, viajou para longe e voltou com novas experiências. Voltar é muito importante. 

Gosto de ter 70 anos (vou fazer este ano) e continuar a acreditar que no fim da madrugada cinzenta pode não haver nada, pode não haver outra. Gostaria que a estupidez da Humanidade me tivesse vacinado contra a compaixão. Repito: gostaria que a estupidez da Humanidade me tivesse vacinado contra a compaixão. Não o consegui, pois sofro ao ver a dor dos outros. No entanto, olho para tudo isto com algum distanciamento. Quando estás a ler Tácito, Tito Lívio, Homero, Virgílio, Catulo, Xenofonte e Sófocles, isso ajuda-te a aceitar as regras terríveis do cosmos e do mundo. Ajuda-te a arrefecer, a serenar. Não te tira a compaixão: permite-te olhar com objetividade. 

Se morrer disto [da Covid-19], vou morrer, não é que seja indiferente, mas estou um pouco de fora, não sei por que razão gritam tanto. É que não é o fim do mundo. Não somos os bizantinos nas mãos dos turcos. Pior foi a batalha de Waterloo, ou ter a peste negra na Idade Média, ou a varíola numa tribo indígena. A Humanidade passou por momentos piores do que este. As pessoas esqueceram-se disso. 

Tenho 70 anos. Acha que na minha idade posso ter uma febre informativa? O que me resta é o meu veleiro, navegar, livros e serenidade. O meu barco é a minha outra vida, troquei a guerra pelo mar. Quando me sinto demasiado aburguesado, navego. Ouça, tenho 70 anos. A vida já não me vai dar mais surpresas. Olho para o mundo com a curiosidade do observador. Isso não é animador, nem otimista, nem bonito, mas é interessante. Pode ser que, se continuar assim, perca finalmente a compaixão. O meu sonho é perder a compaixão. Nesse dia, já nada me irá incomodar. Talvez o consiga. 

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