segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Gisberta


Passam hoje 15 anos que Gisberta morreu, espancada por um grupo de 14 jovens. Uma Mulher Trans que vivia na cidade do Porto, morreu, depois de ter sido agredida durante vários dias, afogada num poço de 15 metros, dentro de um prédio embargado, abandonado, em pleno centro da cidade do Porto.

Gisberta Salce Junior, uma imigrante brasileira a viver na cidade do Porto, era uma Mulher Trans. Havia emigrado do Brasil para França aos 18 anos, tinha 45 quando morreu. Mudou-se para Portugal, onde conseguiu um visto de residência. Gisberta já havia iniciado o seu tratamento hormonal e implantado silicone mamário. Para se manter, apresentava-se em bares e boates como transformista. Contraiu o vírus HIV e, com o tempo, a sua saúde foi-se degradando. Sem trabalho, acabou dentro de um edifício ainda em esqueleto, com a construção parada e abandonada. Em dezembro de 2005, um grupo de rapazes a fazer grafitis descobriram-na. Um deles, filho de uma prostituta que o deixou aos cuidados de uma instituição, e que era amiga de Gisberta, reconheceu-a e passou a visitá-la com frequência. Ela então se abriu e confidenciou a sua doença, o uso de drogas e as dificuldades que vinha enfrentando. Procurando ajudá-la, levavam comida e chegaram a cozinhar para ela no local.

É claro que, ironia à parte, tema para um outro ensaio, um dia a sua história chegou aos ouvidos dos colegas, que quiseram também conhecer Gisberta. E então a ironia da história humana começou a tecer a tal obra de misericórdia que o povo eufemisticamente reclama ser Deus a escrever direito por linhas tortas. Segundo consta no processo, disseram aos demais que conheciam um “homem” com “mamas” e que “parecia mesmo uma mulher”. Foi assim que, parafraseando a canção de Carlos do Carmo, um bando de 14 pardais à solta, ávidos por conhecer a Mulher Trans, chegaram-se a ela, mas já com outro espírito. 

A partir do dia 15 de fevereiro de 2006, passaram a se revezar em grupos para cometer múltiplos atos de violência contra a mulher: espancamentos e sevícias ao longo de três dias, humilhações inenarráveis. Entre os dias 21 e 22 de fevereiro os jovens voltaram ao local e encontraram-na em coma. Acreditando que estava morta, pensaram em formas de fazer desaparecer o corpo. Então atiraram-na para dentro de um poço do edifício, cheio de água. Ela estava inconsciente, mas viva. Morreu afogada.

Um dos estudantes confessou o crime a uma professora e o corpo foi descoberto no mesmo dia. O caso rapidamente entrou nos noticiários, Gisberta tratada no masculino. Apenas com a mobilização de associações LGBT a vítima ganhou um rosto e passou a ser tratada de forma mais humanizada – por vezes, ainda no masculino. A acusação dos jovens foi alterada de homicídio doloso para ofensas corporais qualificadas. O juiz chegou a dizer que o evento foi uma brincadeira de mau gosto de crianças, que fugiu ao controlo.

A intensa mobilização por parte de ativistas que, adotando Gisberta como símbolo da transfobia, conquistaram leis com efeito a partir de 2011. Nos anos que se seguiram começaram a surgir leis voltadas para a igualdade de género, com o objetivo de garantir a pessoas trans maior acesso à justiça, à educação e ao emprego. Além disso, foi aprovada a concessão de asilo a transexuais estrangeiros em risco de perseguição. Portugal transformou-se num dos países mais avançados do mundo no tratamento à igualdade de género. As leis criadas nos últimos 15 anos possibilitaram que um número grande de Mulheres Trans e Homens Trans conseguissem integrar-se na sociedade. 


Gisberta nasceu Gisberto, em São Paulo. Na infância já dava sinais de que estava num corpo que não correspondia à sua identidade de género. Após a morte do pai, confessou à família, ainda na adolescência, que gostaria de ser mulher. Aos 18 anos, com medo da crescente violência contra transexuais na capital paulista, optou por se mudar para a França. 

A ironia está num contrafactual mundo possível, em que Gisberta teria desaparecido sem deixar rasto, caso a realidade histórica não tivesse ido por outros caminhos, dando-nos estes factos. Assim, Gisberta passou para a História com um destaque inestimável para a causa LGBTI em Portugal, onde há um antes e um depois de Gisberta, não apenas em relação ao ordenamento jurídico, mas também em relação à consciência dos cidadãos face a esta grande problemática que é a identidade de género: pois foi transformada em peça de teatro; em documentário; e na canção Balada de Gisberta, composta pelo português Pedro Abrunhosa e que Maria Bethânia tão bem também interpretou. O seu corpo está enterrado em São Paulo. Mas a sua presença ainda é marcante em Portugal, onde se transformou numa bandeira para a igualdade de género e os direitos humanos. 


Sem comentários:

Enviar um comentário